domingo, 14 de abril de 2024

118 - Flora

 

Fazia tempo que não via a minha amiga. Bastante tempo, por sinal, o que era estranho. Praticamente, todos os dias nos cruzávamos na universidade sénior, ela por uns motivos, eu por outros, mas sempre acabávamos por nos encontrar.

Durante alguns anos, ela andava sempre à boleia comigo, para cima e para baixo. A certa altura, as atividades dela começaram a divergir das minhas e deixei de tê-la como companhia. E não é que não sentisse a sua falta, mas a vida é feita de mudança e cada um tem o direito às suas opções.

De qualquer modo, era frequente vermo-nos na universidade, assim como acontecia com quase todos os outros colegas. Porém, a dada altura, deixei de vê-la por completo. Liguei-lhe uma outra vez, mas ela não atendeu nem respondeu. Isso não era muito estranho, porque Flora anda sempre super ocupada, sem grande ou nenhum tempo para tagarelices. Em todo o caso, eu sentia no ar a falta dela.

Um dia de manhã, ao acordar, tinha tido um sonho. Um sonho do qual me lembrava perfeitamente. Era simples e curto, mas muito agradável. Estava num lugar que identifiquei como sendo a universidade, num espaço à entrada do edifício, onde todos nos cruzamos uns com os outros, nos vários sentidos, e de repente ela apareceu do nada, vindo na minha direcção, cumprimentando-me como de costume, com um forte abraço e beijos, perguntando se estava tudo bem. Olhei para ela surpresa por há muito não a ver, respondi que sim, tudo bem e ali, durante alguns minutos, ficámos olhando uma para a outra, em jeito de contemplação, duma maneira amistosa e agradável como sempre.

Ela estava bonita, com o bom astral de sempre, os olhos azuis que lhe iluminam o rosto emoldurado de cabelos louros e um sorriso meigo, tranquilo, bem ao seu jeito. Era a minha amiga Florinha de sempre e como eu tinha saudades!

Flora é uma presença muita activa na universidade sénior, muito participativa, sempre envolvida em mais projectos, sempre prestativa com os outros, ajudando em tudo o que pode, para que tudo seja mais e melhor. Nesse domínio é a figura número um, sem dúvida alguma e eu, pessoalmente, tenho uma grande admiração por quem ela é. Ela sabe abordar cada um, sabe como chegar-se à frente e tem sempre as palavras certas na hora certa.

Com ela aprendi muita coisa e uma delas foi precisamente melhorar a minha comunicação com os outros, deitando abaixo as barreiras, vencendo a timidez e outras coisas mais com que eu ainda lutava. A ela devo isso.

Naquela manhã, ao acordar, relembrando o sonho, senti-me muito bem, com uma sensação muito agradável. E pensei que aquilo era sinal de que naquele mesmo dia iria finalmente encontrá-la. Sim, porque um sonho nunca mente. Eu sei quando um sonho traduz uma realidade e quando é pura fantasia. Este, eu sabia que era uma antecipação do que iria acontecer – premonição. Tinha a certeza absoluta.

Levantei-me, tratei de mim, fiz o que tinha a fazer e saí de casa em direcção à universidade, agora acompanhada de outra colega que é minha vizinha e anda sempre comigo. Lá fomos as duas para as aulas da manhã. E logo que chegámos, lembrando o sonho, achei que ia encontrá-la logo por ali, como costumava ser. Mas enganei-me. Flora não estava, pelo menos, não que a pudesse ver. Talvez estivesse numa sala a fazer as suas coisas habituais, mas não nos conseguimos encontrar.

Fomos à primeira aula e, no final, no intervalo entre a primeira e a segunda, saímos. Estava um dia lindo, digno de um excelente início de Primavera abençoada, porque de Inverno estávamos todos fartos. Cansados do frio, da chuva, dos dias tristes e desagradáveis, mas que fazem parte da vida.

Naquele dia dávamos graças pelo sol que nos abraçava, pelo calor que nos chegava e pela luz que nos iluminava e tudo tornava mais leve, mais colorido. Novamente me lembrei da Flora, olhando em volta, mas nenhum vislumbre dela. Perguntava a mim mesma por onde andaria, porque eu estava certa de que nos iríamos encontrar. Não!?

Chegou o professor e fomos à segunda aula. Terminada esta, fui chamada à secretaria para esclarecer uma questão. A minha amiga, entretanto, ficou lá fora com os colegas, falando, descontraindo, rindo uns com os outros disto e daquilo. Lá estive na secretaria em conversa com a colega que trabalha lá e outras que depois apareceram para resolver assuntos e o tempo foi passando.

Quando terminei o que tinha ido ali fazer, despedi-me e fui lá para fora juntar-me ao grupo para aproveitar uns minutos de descontração e convívio. No meio de tudo isto, continuei a farejar, no intuito de dar voz ao meu sonho. Eu tinha sonhado com a Flora. Ela tinha aparecido e foi tão real como bom, muito bom, tê-la visto. Mas nem rasto dela.

E assim, deduzi que, afinal, contra todas as expectativas estava enganada, sentindo-me idiota, porque atraiçoada exactamente pela minha pessoa. Porque tenho sempre que acreditar em coisas em que ninguém se lembra de acreditar? Mas também os outros acreditam em coisas que eu não acredito. Contudo, devo acrescentar que aquele assunto dos sonhos, é um assunto que para mim é “sagrado”, digamos. 

Eu sempre soube quando um sonho é premonição e quando não significa nada. A minha intuição nunca falha a esse nível. Muitas vezes estive em situações que parecia que ia falhar e depois, no último instante, quando tudo parecia que não ia dar certo e que era a coisa mais absurda, a situação revertia-se, acabando por dar tudo mais que certo. E na verdade sempre penso que é desta vez que vai falhar e depois lá vem a resposta, fazendo-me ver que afinal não falhei.

Pois é, mas para tudo há sempre uma primeira vez. E esta seria mesmo a primeira vez, custasse o que custasse, era para admitir. Ninguém é perfeito. Ali não havia volta a dar e eu tinha-me enganado. As minhas faculdades estavam a falhar. Que tristeza!

A conversa estava muito boa, mas cada um começou a despedir-se para ir à sua vida. Estava na hora do almoço e disse à minha amiga para irmos andando porque ainda tinha coisas para fazer, por isso também nos despedimos e fomos em direção ao carro.

Em casa, enquanto preparava o que ia comer e mesmo depois enquanto almoçava, ia pensando nisto e naquilo, mas não me saía da cabeça o sonho e a estranheza de não ter visto a Flora, que não dava certo. Depois da refeição ainda tinha uns minutos para descansar e a seguir voltava para a universidade, porque tínhamos uma aula à tarde.

Na hora certa, saí de casa, encontrei novamente a minha amiga e colega, que entrou no carro para seguirmos uma vez para a universidade. A aula de Jogos dura hora e meia e é sempre uma aula muito divertida, animada, em que todos sem excepção aproveitam para desopilar ao máximo pela natureza da própria aula. Dizem-se e fazem-se todos os disparates e mais alguns, com que todos se riem até mais não poder. Aproveitam-se as asneiras uns dos outros, segue-se o caminho e a brincadeira nunca mais acaba. E mais uma vez não fugiu à regra. Às vezes chega a doer o estômago de tanto rir.

Era fim do dia de aulas e fim de semana, também. Na semana seguinte mais haveria para nos preencher o tempo com uma certa qualidade e em comunidade. Mas a risada e a gozação continuaram. Fui novamente à secretaria para me despedir da Cristina e mais uma vez aproveitei para dar uma olhadela em volta à procura da Flora. Mas nem vê-la. Nada de Flora. Despedi-me da Cristina e saí da Secretaria para chamar a minha amiga, que logo veio ao meu encontro para regressarmos a casa.

Uma vez mais lamentei que o sonho não tivesse dado certo e não conseguia compreender e muito menos aceitar. Era de todo muito estranho. Mas aquele assunto ia encerrar ali, admitindo que estava errada e não queria pensar mais nisso, que me estava a perturbar mais da conta, o que era inadmissível. Assunto encerrado.

Virei as costas para batermos em retirada e… de repente… e mais, surpreendentemente, aos quarenta e cinco do segundo tempo, como se costuma dizer, quase esbarro em alguém que estava precisamente no meu caminho… cara a cara, olhos nos olhos, que bonita que ela estava! A Flora. A Flora!?

sexta-feira, 29 de março de 2024

Didi - 117


Didi entrou no meu carro com uma novidade: a nora estava grávida. Depois dos cumprimentos e de uma breve troca de palavras habituais, atalhou rápida e expressivamente, para dizer que tinha uma coisa para me contar. Pelo ar, expressão e todo o astral, era uma coisa boa, só podia, porque ela não cabia em si de tanta vivacidade. Indo direita ao assunto, porque estava muito ansiosa, falou tudo duma só vez. A nora estava grávida, à espera do segundo filho.

Compreendi a excitação, porque se fosse comigo, não estaria menos. Além de que a nora já tinha uma certa idade e foi muito difícil conseguir a primeira criança. Após várias tentativas “in vitro” e depois de vários abortos, lá veio uma gravidez que conseguiu chegar a bom termo e uma menina nasceu, a Isabela.

De vez em quando falava no assunto, repetindo vezes sem conta que aquela criança tinha sido muito difícil e que a nora tinha muita dificuldade em engravidar. E também tinha vindo a dizer que ela queria muito ter outro filho, mas nas condições dela, era praticamente impossível. Era quase um milagre.

Há uns tempos ela veio com a conversa que suspeitava que a nora e o filho andavam a planear outra gravidez, porque nalgumas conversas ao telefone com o filho, ele lhe dizia que estavam no hospital, sem especificar o motivo, pelo que começou a desconfiar que andavam novamente a tentar, embora ela achasse que não valia a pena, tanto pela idade como pela dificuldade. Mas isso era problema deles.

Agora vinha entusiasmadíssima e feliz da vida, porque a vinda de outro neto estava anunciada, ainda que temendo que a nora abortasse, como aconteceu outras vezes. Em todo o caso, o filho tinha-lhe garantido que estava tudo bem com esta gravidez e que ia dar tudo certo. A Isabela já estava com três anos e a coisa vinha na hora certa.

Enfim, fiquei feliz por ela, e reforcei que daria tudo certo, com certeza. Porque não? Era bom para todos. Uma criança é sempre um presente dos céus. Uma mãe, por variadíssimas razões, pode não querer ter mais filhos, é compreensível. Mas uma avó quer sempre ter mais um neto. Venham os que vierem, sempre serão muito bem-vindos. Era só aguardar e pensamento positivo para que tudo desse certo.

A conversa mudou de rumo para o usual, fomos à nossa vida e o tempo passou. Foi passando com tudo a andar normalmente. As confusões da vida, a política, as guerras, etc… etc… etc.

Uma semana depois, era mais um dia. Um dia de universidade sénior, de tarefas caseiras, um dia de rotina. Íamos para as aulas e Didi tinha acabado de entrar no meu carro. Como de costume, a conversa começou com ela a pôr tudo em dia. O que acontece e o que não acontece. Mas logo de seguida fui surpreendida com uma conversa de um sonho que teve. E estava louca para me contar. Fui ouvindo sem ligar muita importância, como fazia com tudo o que ela dizia. Mas desta vez, falava-me muito animadamente de uma coisa diferente das suas conversas habituais. Dizia que raramente sonhava, mas que naquela noite tinha tido um sonho muito estranho.

Aí, foquei um pouco a minha atenção, apenas porque os sonhos são um assunto de suma importância para mim. Eu sei que a maioria das pessoas não liga, mas para mim é vital. Dependendo do que é, têm a sua importância. Eles trazem muita informação. Aquilo que às vezes pode parecer uma coisa tola e sem significado nenhum, apenas para descartar, muito pelo contrário, pode ser uma mensagem altamente codificada, impregnada na sua muito própria linguagem holística, projectada pelos registos akáshicos, a qual é preciso saber ler, porque contêm informação muito preciosa para nos guiarmos, assim como conhecimento. Por isso é preciso estar bem atentos.

Foi por isso que, quando ela me falou num sonho que tinha tido, embora não me dissesse respeito, fiquei um pouco curiosa. Além disso e, apesar de ser um sonho dela, eu poderia ajudá-la na interpretação. Portanto, agora eu estava bastante atenta ao que de lá vinha, para perceber se faria algum sentido. E ela continuava a falar, dizendo que nunca sonhava, mas este sonho era como se tivesse sido real, como se tivesse acontecido e isso já era um dado importante. Só o facto de nunca sonhar, ou seja, nunca se lembrar, isso já significava que ali havia coisa, caso contrário o subconsciente não o teria registado para ser acessível ao consciente.

Didi tinha sonhado com o marido que tinha falecido há três anos e com quem nunca sonhou depois da sua morte. Era como se ele estivesse ali ao pé dela. Como se estivesse vivo! Estava bem, de óptima disposição, falando com ela animadamente, mas (!)…, mas… e aqui é que está o cerne da questão. Dizia-lhe que queria ir com ela para a cama. Com efeito, ela olhava para mim com um ar espantadíssimo, como se fosse uma coisa extraordinária. Ela dizia-me que ele tinha tido um relação extra-conjugal, ou seja, traía a mulher com uma amiga dela, que também era casada. Mas nunca se quis divorciar dele, apenas para não lhe facilitar a vida. Agora, no sonho, ele estava com ar feliz e queria sexo com a mulher. Ela estava espantada, aceitando aquela realidade holística como se ela fosse real, misturando um pouco o mundo material com o “fantástico”, digamos.

Enquanto ela falava sobre o sonho e sobre o marido, não dei especial importância. Podia ser apenas uma necessidade de união de almas, tanto mais que ela tem o hábito, só porque sim, de ir ao cemitério levar flores, etc. Contudo, assim que ela falou que no sonho ele queria ter relações sexuais com ela, a minha atenção redobrou, porque aí soou o alerta. Era esse o ponto central da questão. Imediatamente, percebi que, na verdade, o sonho era uma revelação que ele estava a tentar passar para ela. Só que nem todas as pessoas se situam nessa dimensão e até acham tudo isso uma parvoíce.

Didi estava viúva há três anos. Nos últimos tempos, o marido não falava noutra coisa senão nessa menina, porque queria fazer uma grande festa em família. Já não foi a tempo, porque fez a sua passagem uns dias antes do nascimento. A sua alma já antevia a possibilidade da reentrada ou reencarnação numa outra vida, no seio familiar. Contudo, por razões que desconhecemos, não foi possível. O “tempo” deve ter sido o factor. O tempo é apenas uma dimensão que não tem nada a ver com a nossa medida. A alma precisa de tempo=espaço para se desligar, limpar o karma e entrar na outra dimensão que lhe permitirá abrir novo ciclo de reencarnação.

A nora, apesar de tudo, não teve tanta dificuldade em gravidar pela segunda vez, o que deveria ser mais difícil do que da primeira. Três anos depois volta a engravidar, estranhamente sem grande dificuldade.

No sonho, ele apresenta-se a ela deixando-a com a nítida sensação de que está vivo, ali ao seu lado. Vivo e feliz. Ela estranha ainda o facto de ele querer ter sexo. Ela não estranha, digamos que fica impressionada. O sexo é o acto que nos permite procriar. Sem sexo não há procriação e procriação é a continuidade da vida. Há, claro, nas sitiações “in vitro”, como é o caso. Mas para isso teve que haver sexo, sozinho ou acompanhado. Sexo é aquilo que se sobrepõe à morte, fazendo com que a vida seja mais forte do que a morte.

Ele vem dizer, nem mais nem menos, que vai reencarnar, ou seja, já reencarnou, nesta nova criança que vai nascer e que, em princípio, tudo vai correr bem e vai voltar para o seio familiar, através, nada mais nada menos, desta criança. Bem-vinda!


sábado, 3 de fevereiro de 2024

Vazio - 116

 

O vazio é uma sensação estranha e perturbadora, por vezes. O próprio nome já por si diz tudo. Nada. Nada mesmo. E será apenas uma sensação ou uma condição? Mas o vazio acontece, assim como o contrário, a plenitude ou a realização.

Era o mês de Julho e eu estava na Grécia, numas férias de verão, com um calor arrasador. Hermíoni é linda e atrai muitos turistas de variadíssimas nacionalidades. O Riaz, com quem tive uma relação durante sete anos, foi para lá trabalhar. Estávamos sempre em contacto, mas as saudades eram muitas e, aproveitando o facto, fui ter com ele.

Não tinha a menor ideia do que me esperava, mas adorei e como! A Grécia tem a água de mar quente, maravilhosa para ir ao banho. A Grécia tem o céu azul com um sol maravilhoso e uma terra óptima, que dá frutos e legumes soberbos. A minha estadia foi muito para além do que eu poderia imaginar. Pela primeira vez na vida tive uma praia à beira de casa, com que sempre tinha sonhado. Era só abrir a porta, atravessar o jardim, sentindo no ar o perfume das flores e em especial das imensas roseiras de várias cores e tonalidades, passar para o outro lado da estrada e entrar naquela água deliciosa. Foram umas férias abençoadas. Mas, é claro que, o facto do Riaz ser Paquistanês e, portanto, muçulmano, deu uma nota diferente a todo o contexto da situação.

Se eu fosse uma turista qualquer, sem esta ligação “especial”, teria passado completamente despercebida, como todos os outros. O facto de ser a mulher europeia e portuguesa, de um indivíduo muçulmano, de nacionalidade paquistanesa, deixou as pessoas deveras intrigadas. O que não é muito de estranhar, porque até as minhas colegas da televisão achavam estranho e curioso. Isto foi há mais de trinta anos. Se fosse agora, ainda assim seria intrigante, quanto mais naquela altura! Era uma grande admiração por causa das coisas que tínhamos que mudar em nós, para que a nossa relação pudesse funcionar. Contrariamente ao que os outros pensavam, não tínhamos certas atitudes por obrigação, muito pelo contrário, o que mudávamos em nós era porque queríamos, era pela nossa vontade e jamais obrigados a isso. Compreendo que não era fácil os outros entenderem, porque para nós também nem sempre era fácil. O relacionamento entre duas pessoas é sempre complicado. Uns mais, outros menos, mas nunca é fácil. Nestes casos é muito mais difícil. Por isso eu entendia a estranheza dos outros. Mas é uma escolha.

Um dia aconteceu uma coisa inusitada, que até hoje não esqueci. Acordei, numa manhã de sol, tão linda como as outras. Estava na cama, num quarto que não era muito grande. Na parede em frente, tinha um guarda roupa e de ambos os lados havia as mesas de cabeceira com candeeiros pequenos. Do lado do Riaz havia uma cómoda e do meu lado não havia nada, além da mesinha de cabeceira. Abri os olhos, tive consciência de ter acordado e estava virada para a parede branca. Imediatamente ao abrir dos olhos tive a sensação de que estava sozinha. Claro que o Riaz dormia comigo, mas naquele dia acordei e soube de imediato que ele não estava. Não é que isso representasse algum problema, mas se eu estava virada para a parede, portanto, de costas para ele, como poderia saber que ele não estava na cama? Essa é que foi a grande questão.

Porque razão me teria ocorrido tal coisa? Acordar, simplesmente, pensar que estava na Grécia, que iria fazer isto ou aquilo, e quando me virasse, logo perceberia, que ele já se tinha levantado, isso é que era o normal. Abrir os olhos e na primeira sensação do acordar, sentir o vazio da falta dele, não fazia muito sentido, dado que eu até estava virada para o outro lado. Ele até poderia estar quieto, a dormir tranquilamente. Mas não, não foi nada disso. Acordei e, em menos de um piscar de olhos, antes mesmo de ter consciência fosse do que fosse, soube que ele não estava lá. Em vez dele, havia um completo vazio que me deixou muito intrigada, pela sensação desse reconhecimento, sem base alguma. Apenas o meu “sexto” sentido, ou será que há aí alguma coisa mais? O quê, então? E porquê?

As perguntas que não têm resposta e vice-versa, porque há respostas para as quais não há perguntas. E tudo começa por aí. Primeiro a pergunta, depois a resposta. Neste caso, rapidamente, pensei que podia estar enganada e isso tranquilizava-me. O Riaz podia perfeitamente estar lá, como nos outros dias. Porque não estaria? Apenas porque eu tive a sensação de que ele não estava? O problema é que não foi a sensação de que… mas sim a consciência e, portanto, a certeza, a certeza de que ele não estava. E tudo por causa do vazio que senti. Uma sensação desconfortável, como se me faltasse alguma coisa, não sabendo bem o quê, porque eu estava inteira.

No meio desta aflição, tentei resolver o problema, revertendo o pensamento, determinando de imediato que estava simplesmente enganada e que tudo aquilo não tinha razão de ser. Claro que ele estava. Era eu que, para começar o dia, tinha tido um devaneio. Portanto, nada daquilo era válido. Tonteiras da minha cabeça, a que eu já devia estar habituada. Contudo, sempre me surpreendia.

Fingindo-me tão calma quanto tranquila, porque estava de férias na Grécia e não havia razão para não estar, porque estava tudo mais que bem, tudo era lindo, maravilhoso… virei-me para encontrar o Riaz, acordado ou a dormir e acabar logo com aquela charada filosófica ou existencial.

Vazio. O mais completo vazio.

 

sábado, 6 de janeiro de 2024

Ofélia - 115

 

Ofélia!... Ofélia… tão doce, tão suave… uma querida. A Universidade Sénior é um mundo e uma segunda família para cada um de nós, porque depois da reforma, é o lugar onde voltamos a conhecer pessoas, fazer novas amizades e outro ritmo, absolutamente necessário nas nossas vidas, para além de ficar sentado no sofá a ver televisão.

Na Universidade Sénior descobrimos muitas facetas que até então desconhecíamos, porque até aí a vida era só trabalho e casa. Somente e apenas isso. O tempo não chegava para mais e o cansaço também não ajudava.

Com a Universidade Sénior um novo caminho se abre, para quem está disposto a continuar com uma certa qualidade de vida. E a descoberta de coisas que não sabíamos que tínhamos, é fascinante! Podemos descobrir o caminho das artes: desenho, pintura, artes manuais (as mais diversas), a escrita, enfim. Com toda a certeza tudo isso sempre esteve dentro de nós. Pois é, mas tempo para acender essa chama e a poder aplicar concretamente? Esse é o problema.

E as amizades, o convívio que tanta falta faz, em qualquer idade!? As afinidades que descobrimos ao enfrentarmo-nos com os outros? Os novos laços que se formam, são mais caminhos para descobrir, aproveitar e tirar o melhor partido disso tudo.

Ofélia, como tantas outras pessoas era uma querida, muito simpática e muito comunicativa. Uma mulher linda e ainda nova, apesar dos seus sessenta e tal anos. Branca, loura, de olhos azuis, com umas feições muito perfeitas e um sorriso delicioso. Ofélia era casada, tinha filhos e netos, como a maioria de nós, porque nem todos se casam, nem todos têm filhos, nem todos têm netos. Alguns nem família têm.

Aparentemente, era uma mulher feliz e realizada. Mas tudo isso já era, porque à data, tinha problemas no casamento. Mas quem os não tem? O marido tinha mudado de repente, nos últimos tempos, e segundo ela, só piorava de dia para dia, o que tornava difícil o convívio e a comunicação de ambos.

Nas minhas aulas de meditação eu dava oportunidade às pessoas de exporem os seus problemas pessoais, a fim de serem avaliados e confrontados por todos e, muitas vezes, ouvimos Ofélia falar do que a atormentava. Era uma maneira de desabafarem, sem julgamentos, podendo até ter ajuda psicológica uns dos outros. Todos sabemos que, só o facto de se poder falar abertamente sobre os assuntos que nos incomodam, pode ajudar no campo emocional. Receber a compreensão e o apoio dos outros é, no mínimo, consolador.

Mas, então, veio o Covid e tudo se acabou. As aulas da Universidade Sénior, como em todo o lado, deixaram de ser presenciais para serem online e nem todas. Foi o isolamento e o silêncio total. As pessoas foram obrigadas ao recolher obrigatório e esperar, esperar que a crise passasse. Para falarmos uns com os outros só mesmo por telefone. O desejo e a saudade de tudo e de todos, foi a única coisa que sobrou, durante um longo período de tempo. Mas como tudo passa… um dia, as coisas, lentamente, começaram a voltar ao normal. E assim, a universidade começou também as suas aulas presenciais. Só que a frequência baixou consideravelmente. Muita gente ainda tinha medo. Outros, acomodaram-se. Mas a universidade retomou a sua actividade dentro do possível e como pôde. Com poucos, é verdade, mas foi o que foi. E no ano seguinte percebemos o aumento, e a pouco e pouco as pessoas foram perdendo o medo e percebendo que a vida era para continuar e não podíamos de maneira nenhuma parar. Parar é morrer.

Mas nunca mais foi o mesmo, isso não. Por essa razão, dávamos por falta de pessoas. Pessoas a que éramos mais agarrados, com quem tínhamos mais afinidade, com que nos relacionávamos melhor, etc. De alguns conseguíamos ter notícias através de outros, mas de muitos, nem isso. Parecia que tinham desaparecido completamente do mapa.

Ofélia, por exemplo, foi uma dessas pessoas que desapareceu completamente. Nem adiantava perguntar, porque ninguém sabia do seu paradeiro. Às vezes eu pensava numa ou outra pessoa e mais tarde essa mesma pessoa acabava por aparecer. Outras não apareciam, mas sabíamos através de outras, onde estavam, o que faziam. Muitas vezes os números de telefone “desaparecem” ou as pessoas não atendem.

Mas Ofélia, e praticamente todas as pessoas com quem ela mais se dava, também não voltaram depois da pandemia. Quando as pessoas desaparecem de circulação eu costumo apagar os números, porque é uma lista interminável e se não são usados, não fazem falta. É assim.

Ofélia, porém, eu gostaria muito de saber dela, de ter notícias, perceber o que se estaria a passar. Paciência. Talvez um dia ela ainda voltasse. Ou talvez não. Ela nem sequer morava para as minhas bandas. Era uma zona completamente oposta à minha. Por isso, encontrá-la, era muito pouco provável. Mas a cada dia que passava eu ficava mais fixada na ideia de chegar e ela de alguma maneira. Porém, o tempo é curto para tanta coisa que há a fazer e as coisas sucedem-se uma após outra e a pergunta vai ficando sem resposta, embora sem se apagar da nossa cabeça.

O dia a dia é uma solicitação constante de afazeres inadiáveis que vão tirando a oportunidade a outras coisas aparentemente secundárias. Foi o caso. Todos os dias eu pensava na minha amiguinha, mas acabava sempre ficando por aí. Eu só queria vê-la. Saber se estava bem. Como estava a vida dela, com todos os problemas que tinha com o casamento e a família.

Mas pronto. Já me estava a conformar em não conseguir uma aproximação com ela. A vida é como é e o almoço e o jantar estão primeiro, portanto, nada a fazer. Ou continuar à espera de uma oportunidade, quem sabe?! Mesmo tendo que aceitar isso, continuava a pensar nela, o que também já me parecia uma obsessão, sem razão para isso. Porque haveria de estar sempre a pensar nela?

Era hora de almoçar e não tinha preparado comida, por isso decidi ir ao take away, ali mesmo, do outro lado da rua, depois de sair a Praceta. Entrei, escolhi a ementa e fiquei à espera de ser atendida. Olho para a minha esquerda, na direcção da caixa de pagamento, para ver se havia muita gente… impressionante!

No lugar mais inusitado possível, completamente fora da sua zona! Já eu, vou ali de vez em quando e aquela era mesmo uma dessas vezes, de vez em quando. Sem mais nem menos, onde jamais pensaria, mas como que respondendo ao meu chamado, isso sim, espantosamente e sem qualquer outra explicação, lá estava ela, igual a si mesma, igual ao de sempre… tão doce, tão suave… Ofélia!


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Os documentos - 114

 

Carlos aproximou-se de mim, beijando-me com a mesma ternura como sempre o faz e a que já estou mais do que habituada. Só que desta vez era especial.

Cerca de meia hora antes, acabara de me dizer que não sabia dos documentos da mota. Achava que os tinha guardado no bolso das calças ou do casaco, mas já tinha procurado e revirado tudo, sem sucesso. Por isso, deduzia que os tinha perdido, o que o deixava muito chateado. Perder os documentos, significava ter de ir à loja do cidadão, perdendo horas de trabalho, o que não lhe dava jeito nenhum.

Disse-lhe que deviam estar na roupa, para procurar melhor, mas ele insistia que já tinha visto tudo e não encontrava. Estava convencido de que os tinha deixado cair na bomba da gasolina e, porque já era noite cerrada, não tinha dado por isso. Voltei a dizer-lhe que, garantidamente, estavam num bolso qualquer. Qual, eu não sabia, mas estava decidida a ajudá-lo a procurar.

Era dia de Natal e eu, em especial, estava embrenhada nos preparativos para irmos almoçar a casa do Henrique, onde estaria a Sofia, minha neta, a passar o dia com o pai. Talvez por isso, não lhe tenha dado uma atenção mais merecida e porque também estava perfeitamente convencida de que os documentos estavam em casa, algures na roupa dele. Mas podia estar enganada!

Achando que não podia fazer mais nada, decidiu alhear-se daquele assunto, para não estragar o dia. Tanto mais, que ele sabia como era importante o facto de irmos a casa do Henrique. Além de que Carlos, é uma pessoa cem por cento positiva, o que muito me encanta e aprecio. E assim, os dois continuámos a preparação para o almoço.

Chegou a hora de nos vestirmos para sair. Escolhi cuidadosamente a roupa, calçado, bijuteria… dei um jeito no cabelo, uma ligeiríssima maquilhagem, escolhi um casaco comprido de pelo sintético, porque estava muito frio e fui para a sala acabar de fazer uns embrulhos.

Daquele dia eu só queria que desse tudo certo. Não era um almoço qualquer. Era um almoço de Natal com o Henrique, meu filho. E isso, por razões que agora não vem ao caso, era de suma importância para mim. Carlos tinha essa noção e isso também o influenciou a esquecer momentaneamente a chatice dos documentos, que eu continuava a acreditar que não estavam perdidos. Ma enfim… enquanto não apareciam, estavam perdidos. Essa era a verdade.

Voltando ao almoço, se tudo desse certo, isto é, se não houvesse nenhum mal-entendido e tudo corresse na santa paz, ou no mínimo, em harmonia, o meu dia estaria ganho e a minha alma estaria feliz, muito feliz. Era como que um resgate de muitas horas, muitos dias de angústia, raiva e outros tantos sentimentos negativos, que me tinham deixado completamente de rastos, sem opção de dar a volta ao assunto. Mas agora, parecia que tudo tinha ido na corrente e já não voltariam mais, para me atormentarem de todo. Era uma enorme dádiva do universo. Eu tinha consciência, reconhecia e estava infinitamente grata, assim como pronta para aceitar essa mudança, mais do que tudo. O vento trouxera, a brisa levara para bem longe. Era tudo o que eu queria.

Quase prestes a sair, Carlos chega novamente perto de mim e, coisa que nunca faz, pergunta-me que casaco deve levar. Hum!... Fiquei a olhar para ele, curiosa pela pergunta, mas rapidamente, respondi que levasse o casaco de cabedal, que era óptimo e ficava-lhe muito bem.

Na noite anterior, tínhamos ido jantar a Setúbal, a casa do João, com mais família, e ele não me questionou sobre o que vestir. Isso é o normal nele. É um homem com uma figura bonita, como poucos, e fica bem com tudo o que usa. E por si mesmo, decidiu levar um sobretudo que raramente veste, muito bonito. Podia ter-lhe respondido que levasse o mesmo casaco da noite anterior. Mas não sei porquê, veio-me à ideia o blusão de cabedal e achei que esse estaria bem, no meio de tantos que tem. Podia ter dito outro qualquer, mas foi aquele que visualizei e foi aquele que disse.  Portanto, quase sem pensar, respondi-lhe que levasse o tal blusão de cabedal. Sem comentários, deu meia volta e foi para o quarto.

Estava tudo bem. Estava tudo mesmo a correr muito bem. Só era pena a história dos documentos. Parece que tem sempre que haver um senão. Paciência. Há coisas piores.

Cerca de cinco minutos depois, e voltando ao início da história, estava agora de volta de mim, enchendo-me de beijos e agarrões e, no meio do seu característico ataque de ternura que, apesar de já estar habituada, nunca deixa de me surpreender, acrescentava ainda que eu era uma pessoa muito especial, uma alma preciosa, iluminada… e sei lá que mais o quê. O seu olhar estava diferente, com um brilho notável e parecia leve que nem uma pluma. É que a minha sugestão de levar o blusão de cabedal tinha um fundamento, e embora inconscientemente, tinha resolvido o único senão para um almoço de Natal perfeito.

Carlos estava mais do que aliviado. Os documentos da moto, que para ele estavam perdidos, e que poderiam estar no bolso de qualquer outro casaco, estavam precisamente nesse mesmo blusão que vestiu seguindo a minha orientação.


domingo, 8 de outubro de 2023

Um sonho - 113

Ju(ventino) tinha um sonho: ir ao Canadá acompanhado e não sozinho, como sempre fizera a vida inteira, por não ter a companhia certa, a companhia desejada. A irmã, dois anos mais nova, casada, vivia no Canadá com o marido e os filhos. Por esta altura, já eram emigrantes há cerca de vinte anos, onde tinham uma vida razoável. Ambos trabalhavam e estavam perfeitamente adaptados à sua rotina, no país que tinham escolhido. Ju, todos os anos tirava férias para ir ver a família. Naquele ano tinha decidido que não iria mais sozinho. Na verdade, estava cansado de sempre ter sido visto como um solteirão, sem uma apreciada companhia feminina, o que fazia com que permanentemente o interrogassem sobre a sua vida privada, deixando-o sempre desconfortável.

Quando a Rádio se juntou à RTP, apareceu uma nova imagem da empresa, com caras novas, novos colegas e muitos conhecimentos se fizeram. Um ano depois de me ter mudado, porque a minha Direção foi a última, um dia, vi a figura entrar pelo open space dentro. Tinha um ar um pouco estranho, não posso negar. Um ar difícil de definir porque, por um lado, um aspeto intelectualizado, talvez pelos óculos demasiado pesados, de lentes muito grossas, por outro, parecia um pouco alucinado. E ambas as coisas me confundiram, impedindo-me de traçar um perfil exato.

Deixei que saísse e perguntei à colega com quem foi falar, e que era o seu apoio administrativo, quem era, apenas porque nunca o tinha visto, o que era natural. Afinal, era tanta gente nova, que muito provavelmente não chegaria a conhecer muitos deles, como não conhecia toda a gente da RTP. Respondendo à minha pergunta sobre o colega, ela disse-me quem era, o que fazia e pouco mais. Para meu grande espanto ou talvez nem tanto, nunca tinha casado e, em princípio, vivia sozinho. Um solteirão veterano, com cinquenta e quatro anos.

Cerca de uma semana mais tarde, Ju, voltou ao lugar. Pensei para comigo mesma que nunca na vida tinha visto aquele sujeito e, agora, em tão pouco tempo, era a segunda vez que ali vinha. Percebi que aquela criatura me intrigava por demais. Ele era estranho, sem dúvida. Mas o que é isso? Há tanta gente estranha! Quem sabe se algum vez não me acharam estranha a mim, que acho que sou uma pessoa normalíssima!? É tudo muito relativo. E desta vez falou com outra colega, também da Rádio. Aproveitei para me aproximar e logo ela tentou despachá-lo para mim, por ser eu a secretária da Direção.

Ju, não ficou indiferente, tendo mostrado um certo interesse na minha pessoa, a colega nova, que ele também não conhecia. Apercebendo-se disso, depois da sua saída, as colegas da Rádio vieram falar comigo, alertando-me de que ele não era para mim, isto é, que eu merecia uma pessoa diferente e muito melhor. Fiquei intrigada, mas elas continuaram martelando, dizendo coisas nada abonatórias a seu favor e justificando o facto de nunca ter casado, com o seu mau feitio e as suas esquisitices. Em todo o caso, para mim, havia nele um pormenor importante: o facto de ser solteiro e sozinho. Eu também estava sozinha! Pelo menos, podíamos tentar uma aproximação e perceber como seria o nosso relacionamento, sem grandes consequências!? Porque não uma boa e nova amizade?

Começámos a falar um com o outro, aproveitando as questões de trabalho, depois combinando almoços aos fins de semana e, finalmente, a sair juntos para algumas coisas, até que chegou o dia em que ele ficou na minha casa. A partir daí, começou a ficar com mais frequência e só ia a casa quando tinha mesmo necessidade.

Ju, não era o homem mais bonito do mundo, nem o mais simpático, nem o mais inteligente, etc… mas era solteiro e isso era importante. Na faixa etária em que os encontrávamos, não era fácil encontrar pessoas sozinhas. Com o tempo, apesar de ele achar que eu tinha um bom feitio, que não implicava e para parafrasear as suas próprias palavras “era fácil viver comigo porque eu não chateava em nada”, pensei para comigo mesma, que era fácil enquanto ele deixasse, caso contrário, não seria mesmo nada fácil. Contudo, aprendi a lidar com o “machismo” dele, com a mania de que era o “melhor” dos profissionais no trabalho que fazia, pois exagerava e muito na sua performance, apenas para se convencer de que os outros o achavam o máximo dos máximos.

O problema é que a opinião dos outros era o oposto do que ele idealizava. Uma das coisas de que me avisaram sobre a sua pessoa, é que ele bebia e não era pouco. E muitas outras coisas, definindo-o assim como doido, maluco, enfim… nada abonatório. E toda a gente queria que me afastasse dele, por causa de tudo o que ele representava. Em todo o caso, verdade seja dita, eu não tinha do que me queixar. Os defeitos dele eu conseguia ultrapassar e nunca deixei de ser eu mesma com ninguém, portanto, isso não iria acontecer com ele.

Voltemos ao sonho. Todos temos sonhos. Todos temos sempre algum desejo secreto ou não, que alimentamos nas profundezas do nosso ser, tornando-se um sonho. E como já disse, o sonho de Ju era uma companheira que viajasse com ele até ao Canadá, para não ir sozinho, e poder apresentar à família, como uma pessoa com potencial para um eventual futuro. Por isso, logo nas primeiras conversas, veio à baila o assunto “férias”, com o programa viagem ao Canadá. Estava implícito no seu discurso, que ele queria muito que eu fosse com ele. Até se propunha pagar-me a passagem, coisa que eu logo descartei por completo. Já íamos ficar em casa da família, pelo que não pagávamos alojamento nem alimentação, o que era ótimo, portanto, jamais eu deixaria que ele me pagasse a passagem.

O facto é que concordei em ir. Nunca na vida tinha pensado ir ao Canadá. Mas o que já viajei por esse mundo fora, foi muito mais o que teve de ser, do que o determinado por mim. As coisas vêm, proporcionam-se e é esse o caminho. Portanto, uma vez mais, o destino abria uma porta desconhecida. E coisas assim eu sempre considerei um presente, um presente da vida. Porque negar? Não fazia o menor sentido. E assim foi.

A viagem ao Canadá foi muito boa. Sem dúvida, enriqueceu o meu conhecimento, o meu património cultural, a minha pessoa e diverti-me bastante. Eu estava mais completa, por assim dizer. E não posso negar que Ju foi impecável comigo, preocupando-se em me mostrar isto e aquilo, levando-me a todos os lugares que ele achava importante, etc. A família e os amigos acolheram-me muito bem e todos manifestaram o seu agrado na minha ligação com ele. Ainda que a irmã não escondesse de mim todas as suas dúvidas, o que não deixei de agradecer, porque tinha consciência de que o irmão era um pouco “doido” e sempre seria. Mas isso era uma decisão minha e só a mim cabia julgar. E por enquanto não tinha do que reclamar. Por enquanto, sim… por enquanto.

De regresso a Portugal, as coisas mudaram. Melhor dizendo, tudo mudou. Não me vou alongar com os pormenores, mas tudo virou de cabeça para baixo. Foi então que, aquele Ju(ventino) de que todos me falavam na empresa e que a irmã no Canadá reforçou, veio ao de cima. O comportamento dele alterou-se e deu uma volta de cento e oitenta graus. Começou a aparecer bêbado na minha casa. O feitio dele começou a ser insuportável, até que uma noite pirou de vez. De tal modo, que fiquei bastante assustada e me fez pensar que assim não. Não mesmo. Eu não ia aturar cenas daquelas a ninguém. Ele já tinha realizado o seu sonho e eu não precisava de um homem como ele. Não havia nada de bom. A cabeça batia mal de todas as maneiras. E assim, fui obrigada a pôr um fim àquele episódio. Tinha vivido com ele sete meses, que tinham sido muito bem aproveitados. Estava na hora de terminar.

As nossas vidas continuaram com cada um para seu lado. De quando em vez, encontrávamo-nos de passagem na empresa, mas nem sequer havia assunto ou vontade de falar. Ele continuava com aquele ar alucinado de que todos me falavam. E percebi que realmente ele me tinha escolhido para ir com ele ao Canadá e por isso me mostrara o melhor dele. Só isso. Tudo bem.

Doze anos passaram. Eu já estava reformada havia dez anos. Um dia, ao fim da tarde, sentindo-me um pouco cansada, deitei-me no sofá, a fim de fechar os olhos e relaxar um pouco. Tive um sono muito, muito superficial, em que dormia e acordava, dormia e acordava. Mas estava confortável. De repente, uma vez mais, fechei os olhos. Mas então, comecei a sentir um mal-estar, que rapidamente foi aumentando. Uma energia muito ruim tinha-se apoderado de mim, sem que eu a conseguisse expulsar. Um frio de morte percorreu todo o meu corpo, que gelou por completo. Sem entender porquê, senti realmente a presença da morte. Mas eu sabia que não ia morrer. Aquela morte não era minha, mas era a anunciação de uma morte. Foi horrível. Nunca tinha tido uma sensação daquelas. Naquele preciso momento, fiquei a saber que alguém, relativamente próximo, ou do meu conhecimento, tinha partido. E como fora ruim! Uma coisa muito má. Horrível de descrever. Mas era a morte, sem sombra de dúvidas. Isso eu sabia. Depois de ter percorrido todos os cantos do meu corpo, passou, deixando-me finalmente liberta. Alguém, naquele preciso momento, tinha sido levado pela morte. Quem seria?...

Dois dias depois eu estava ao telefone, falando com uma amiga, que mantinha contacto com colegas que ainda estavam na empresa. Sabes quem morreu?... Perguntei:  quando?

Ju(ventino) tinha partido naquele exacto momento em que senti a energia da morte percorrer todo o meu corpo.

Apesar de tudo, eu tinha tido alguma importância na sua vida. Eu tinha realizado o seu sonho. 


quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Dezoito - 112

 

Andar nos supermercados nem sempre é fácil. Uns vão para fazer compras, outros parece que vão passear. Uns levam uma listinha, mas outros nem por isso. E depois levam o que nem precisavam e o que realmente era preciso não chega a casa. No meio disto tudo acho interessante olhar para os carros e respetivos “donos”. Tem tudo a ver. Normalmente, os mais gordinhos são os que levam os carros recheados de tudo o que não deviam. Quantas vezes me dá vontade de chegar perto e perguntar se não tem vergonha de levar as porcarias que leva, não tendo em conta a saúde. Mas cada um tem o direito às suas escolhas, porque não?! E quanto maior é o supermercado maior é a canseira.

Por regra, vou sempre ao mesmo supermercado, mas às vezes vou a outro, porque não encontrei o que queria ou porque quero uma coisa diferente. Por exemplo, gosto muito do pão de alfarroba, além de que alfarroba é bom para o fígado. E, apesar de raramente comer pão, quando me apetece, é o pão de alfarroba que tenho de comprar. Não há no meu supermercado habitual. Só há num a que raramente vou. Portanto, quando quero, vou lá propositadamente, o que é um pouco estranho, ir a um espaço tão grande só por causa disso. Mas vou.

Um dia, estando numa fase dessas, lá fui ao Continente, para apenas comprar o pão de alfarroba. Claro que sempre invento mais qualquer coisa, só por vergonha. Todos os outros vêm com os carros cheios e eu com um pão na mão!? Aproveito para trazer uma salada diferente, uma aveia também diferente da habitual, com a desculpa de que é bom variar, etc… e depois de escolhidas as compras, dirigi-me para a fila da caixa, a fim de pagar e sair dali para fora.

As caixas são numeradas e é preciso ficar na fila para chegar a vez de cada um. Chegada a vez, temos de nos dirigir para a caixa correspondente à chamada. Portanto, lá fui eu para a fila, com umas quantas pessoas à minha frente, aguardando vez. Enquanto estou na fila, que aos poucos vai avançando, vou dando uma olhadela para as pessoas e respetivas compras e fazendo as minhas silenciosas observações e considerações, achando que aquilo sim, aquilo não, como se alguém estivesse a dar importância ao meu pensamento.

E foi aí que aconteceu uma coisa interessante. Ou talvez não. Dependendo de cada um. Aquilo a que alguns chamam simplesmente de coincidência, para mim, não deixando de ser uma coincidência, tem muito mais do que isso. Não é uma coisa vã, passageira, do momento. É muito, mesmo muito relevante. As coincidências. Sempre as coincidências, que nos deixam a pensar se se trata de uma coisa sem importância ou se, pelo contrário, tem realmente importância, porque é muito mais do que uma coincidência.  E o que seria mais do que isso? Capacidades das quais não temos conhecimento e que nem sonhamos ter?!

Um cérebro que foi feito para ser muito maior do que o uso que até hoje lhe damos. Claro que se a coincidência não for devidamente evidenciada e levada em conta, não serviu de nada e cai por terra, desfazendo-se na poeira global. E aí passou, talvez, uma grande oportunidade de nos defrontarmos com o que não sabemos, com o que desconhecemos.  E se não mudarmos a nossa atitude em relação a isso, isso e outras coisas ainda mais importantes, nunca serão direcionadas para o mundo a que pertencem.

Ah, mas não sabemos nada disso, nunca ninguém nos falou disso… etc. Cabe a cada um de nós lá chegar, sem o empurrão de ninguém. Trata-se da evolução individual da espiritualidade, um mundo que nos liga a outra dimensão mais elevada do que esta que temos atualmente. Que existe e está há séculos ou milénios, para não dizer, desde sempre, à nossa espera e para o qual, sempre teimamos em fechar os olhos. É um deslumbramento a que parece que fazemos questão de não querer assistir. Porque temos medo, insegurança e nos tira da nossa zona de conforto. Teimamos em continuar parados, fazendo todos o mesmo caminho. Mas esse caminho é já muito velho e, embora muito gasto, ninguém se quer desviar dele.

E assim, dia após dia, hora após hora, continuamos a mentir, cada um a si mesmo, para não sermos perturbados pela nossa consciência que, contudo, não deixa de, continuamente, apelar ao seu deus, quem quer que ele seja, onde quer que ele esteja ou exista, para ser feliz, e isto e aquilo. E das coisas mais importantes do ser humano a “independência”, onde fica ela no meio disto tudo? A independência que revela ou desmascara a real natureza o “homem”, porque perdeu a sua liberdade e não a consegue recuperar. Em cada coincidência há o censor da grandiosidade do ser humano que pode muito bem começar nas pequeníssimas coisas.

Eu estava na fila e já só tinha duas pessoas à minha frente. Pensei, só mais dois números e depois eu, que número será? Dezoito, veio à minha cabeça. Disparate, pensei, sei lá que número é, e depois o que é que isso interessa? Pus-me a olhar para um lado e para o outro, para dispersar as minhas habituais parvoíces. Ouvi chamar vinte e tal. E a pessoa da frente seguiu em direção à respetiva caixa. Passado um bocadinho, novamente vinte e qualquer coisa. Posicionei-me no lugar certo para a próxima chamada que seria eu. Neste entretanto, ainda pensei, mas o dezoito existe, não existe?! Se estão a chamar vinte e tal! E de novo, em pensamento, ralhei comigo mesma, por continuar a dar crédito a uma coisa que não tinha ponta por onde se pegar, pois qualquer número serviria para apenas poder chegar à caixa e pagar.

E finalmente, a chamada veio, dando resposta ao meu dilema e mostrando-me, uma vez mais, que este tipo de coisas acontece por uma razão muito simples. É quando a mente entra pelo tempo dentro, a caminho do futuro, longe ou perto, não interessa. Ali foram apenas uns minutos. Mas muito ou pouco, ela entra na linha do tempo, avançando o necessário até onde está a resposta, para imediatamente voltar à posição do aqui e agora. E assim, para minha grande surpresa, mas nem tanto, porque eu sabia que não era uma simples coincidência, o número de chamada aparecia no écran, ao mesmo tempo que uma voz dizia: dezoito.