terça-feira, 25 de agosto de 2009

O meu primeiro namorado - 7


Eu tinha dezanove anos quando conheci o Pedro, o meu primeiro namorado com carácter sério. Quando o conheci vivia num lar para estudantes. Uns tempos depois mudei-me para uma casa arrendada com uma amiga do lar, a Lídia. Ela era da província e muito solitária. Tinha dificuldades em se relacionar e não tinha amizades, coisa que eu tinha de sobra. Era um pouco mais velha do que eu, mas apoiava-se muito em mim por falta de confiança e muita timidez. Era uma pessoa muito simples e muito apagada, mas com o tempo consegui transformá-la um pouco na sua aparência e enfim, com as minhas amizades, fazê-la sair um pouco da "casca". Isso foi muito interessante porque, de repente, ela começou a desabrochar, a ver-se como "gente" e até já conseguia dar um ar da sua graça, começando a despertar as atenções.

 

O Pedro era uma pessoa bem formada, responsável, com vinte e dois anos era licenciado em engenharia mecânica e dava aulas no Instituto Superior Técnico, enquanto procurava um emprego que o satisfizesse. Moreno, 1,80 de altura, muito bem constituído, como ele mesmo dizia não era qualquer um que se metia com ele. Eu gostava dele, mas ele era muito possessivo, achava que era meu dono, perguntava e queria saber tudo e não me dava espaço. Todavia, a nossa sintonia era muito forte. De tal modo, que eu pressentia a chegada dele, os telefonemas, tudo. Onde quer que eu estivesse, em casa, no trabalho, sem mais nem menos, a minha conexão com ele estabelecia-se automaticamente. Era tão marcante que às vezes achava que aquilo não era normal.

 

Um dia, para tirar dúvidas e ter testemunhas do que se passava comigo, resolvi começar a falar com a minha amiga acerca disso. Quando sentia que ele ia telefonar, chamava-a e dizia-lhe exactamente o que estava a sentir naquele momento. Por exemplo, "Lídia, o Pedro vai telefonar", dizia eu. "Agora?" respondia ela. "Sim". Eu olhava para o relógio da sala e dizia-lhe concretamente dentro de quanto tempo. Ela sorria e perguntava como é que eu sabia. Eu respondia "sei, só isso". "Ah!"...dizia ela e sorria. Depois o telefone tocava e ela punha-se à escuta, porque ficava curiosa a ponto de querer confirmar se era ele ou não. Eu atendia o telefone, ela ficava parada a olhar e sorria. "Já sabias?", perguntava ela. "Não, não sabia", respondia eu. Ela limitava-se a deixar escapar o "ah!..." de um certo espanto ou uma certa dúvida. Eu dizia-lhe, "Lídia, ele vem aí". "Mas não telefonou?" Perguntava ela. "Não, mas eu sei que ele vem aí. Eu sinto. Daqui a meia hora, mais ou menos, está a tocar à campainha, vais ver!" Daí a meia hora a campainha tocava e ele aí estava. Ela olhava para ele, para mim, com um meio sorriso intrigado e estava na cara que não sabia o que pensar, como eu, aliás. Mas era um facto. E estas cenas repetiam-se diariamente. "Lídia, ele hoje não vem nem telefona". "Ah, como sabes?" Eu encolhia os ombros. "Lídia, ele vai telefonar a dizer que não sabe se pode vir, mas vem".

 

E isto durou cerca de dois anos. Por fim, ela já não dizia nada, só sorria, dizendo que achava engraçado, porque nunca tinha conhecido ninguém assim. Não se pode dizer que fosse uma questão de hora, porque nunca havia horas. Não havia nada de consistente, nada em que nos pudéssemos basear para justificar fosse o que fosse. Era assim, simplesmente. Ela ficava de queixo caído e eu atónita. Apesar de estar habituada, não deixava de ser estranho e não via aquelas coisas acontecerem com ninguém, só comigo.

 

Era garantido que eu nunca podia saber nada da vida dele, onde estava, com quem estava, quando nos víamos ou quando me telefonava. Era tudo por conta dele. Era ele que geria a nossa relação, coisa que hoje seria impossível. Nem os contactos dele eu tinha. Não conhecia ninguém de família, nem amigos, nada. Se ele quisesse, pura e simplesmente desaparecia da minha vida. Dava aulas no IST, era a única coisa que eu sabia. E mesmo o apelido dele, só o soube muito mais tarde. 

 

Também sabia em que zona ele morava, mas nem imaginava a rua, o prédio, fosse o que fosse. Tinha pais e uma irmã casada com um filho e era tudo o que eu sabia, porque ele me tinha dito, de modo que era impossível que as minhas informações tivessem uma suposta origem. O Pedro era super possessivo, tinha que saber tudo da minha vida, ao mais pequeno pormenor, da minha família, dos meus amigos... mas o contrário não se aplicava. A liberdade que queria para ele era impensável querê-la para mim. Eu suportava tudo isso porque gostava muito dele e sobretudo, porque não tinha a mínima experiência da vida. Mas não é esse o assunto.

 

A Lídia era a minha única testemunha. No trabalho, também havia colegas que presenciavam o mesmo, mas eu não me alargava muito. As pessoas em geral definem tudo como "coincidência". Mas eu sabia que aquilo não tinha nada a ver com mera coincidência. Isto era uma constante. Eu sentia o momento em que a minha sintonia com ele se estabelecia. Eu captava o pensamento dele, se estava bem disposto, se estava chateado, tudo passava para mim. Era assim.

 

Três anos depois, estava eu com vinte e dois anos, tive a feliz oportunidade de ir trabalhar para os Açores. Mudei-me com carácter definitivo, sendo que nada nesta vida é definitivo. Abria-se um novo capítulo na minha vida. Terminei a minha relação com o Pedro e preparei-me para recomeçar tudo do zero. E assim aconteceu, porque quando eu abro os olhos, não há quem me segure.

 

Era tudo muito bonito. Era tudo novo e eu não conhecia nada nem ninguém. Fiz novos amigos, novos colegas, a ilha de S. Miguel era muito bonita e eu tinha tempo bastante para passear e curtir aquela mudança radical que eu considerava um verdadeiro presente da vida.

 

Trabalhava na Delegação da RTP que ficava em Ponta Delgada, mas ia com frequência ao Emissor da Barrosa, o ponto mais alto da Ilha, porque adorava esse percurso. A estrada tinha muitas curvas, pelo que havia muitos recantos bonitos. Os campos eram muito verdes e praticamente não havia casas. Uma aqui, outra ali, quase passavam despercebidas. Contudo, havia uma que, embora isolada como as outras, não ficava muito longe da estrada, posto que, quem passava de carro, dava perfeitamente para ver. Era bonita, com rés-do-chão e primeiro andar. Toda branca, com os telhados vermelhos, tinha umas varandas largas com arcadas e tinha um pátio muito grande no rés-do-chão, com as arcadas iguais. Não era exageradamente grande mas também não era pequena e sobressaía no meio do verde. Todas as vezes que aí passava, parecia que me enfeitiçava e sentia uma atracção, via-me lá dentro com filhos, família, como se fosse uma outra vida que não tinha nada que ver com o meu presente.

 

O tempo foi passando, eu já conhecia a ilha, já tinha visto outras casas igualmente bonitas, mas nenhuma me chamava a atenção como aquela. E não era por ser mais ou menos bonita do que as outras. Era como se eu tivesse ligação com ela. Ela exercia sobre mim uma estranha força, como se tivesse um segredo escondido e esse segredo fatalmente me incluísse.

 

Havia decorrido apenas um mês desde que eu tinha chegado a S. Miguel. Um dia, saio de manhã como de costume para ir trabalhar e a meio do caminho, um táxi pára na minha frente. A porta abre-se e um homem sai: o Pedro, sem tirar nem pôr. Fiquei perplexa, sem pinga de sangue. A minha sintonia com ele tinha acabado, o que fazia sentido. Eu não tinha tido nenhum pressentimento, não sabia o que fazer, o que dizer. Sei que fiquei muito chateada, pensando que o meu sossego e a minha liberdade tinham sido invadidos e isso eu não queria. Ele vinha ao meu encontro para recuperar o que tinha perdido, só que eu não estava disposta a isso de jeito nenhum. Eu estava com vinte e dois anos e queria outra oportunidade na minha vida, a oportunidade de ser feliz.

 

Decorreram dois meses massacrantes porque não havia um só dia em que ele não me procurasse para ter uma conversa e explicar-se e pedir que o aceitasse de volta com planos de futuro para nós, etc... e eu não queria, não queria mesmo. Estava tudo muito bom até ele aparecer e tudo o que eu queria era a minha liberdade, o meu espaço. Todos os dias lhe repetia a mesma coisa e todos os dias a conversa era a mesma. Mas isto não vem ao caso. O que interessa é que um dia em que ele realmente já estava cansado e a perder a paciência, como último recurso, quis que eu fosse com ele a um lugar, porque tinha uma surpresa para mim. Depois de muita coisa, não tive outro remédio e fui com ele.

 

Pelo caminho, disse que me ia mostrar uma casa que seria nossa, caso eu voltasse atrás. Já tinha contactado o proprietário e estava garantido que podia ficar com ela. Ele falava e eu, para ser sincera, não ligava a menor importância. Achava que tudo aquilo era inútil, porque eu não voltaria com a palavra atrás.

 

O caminho, eu conhecia-o muito bem, era o da Serra da Barrosa. Parámos e lá estava ela a olhar para mim. A casa, a dita casa! Lá estava ela. Pensei que finalmente estivesse lá gente e ele fosse falar com alguém, quando ele me diz, "esta casa é nossa, se aceitares ficar comigo". Eu não queria acreditar no que acabava de ouvir. Jamais me passou pela cabeça, com tanta casa noutros lugares, que ele fosse escolher precisamente aquela, a misteriosa casa que me hipnotizava, me fascinava e me deixava confusa.

 

Assim terminou definitivamente a nossa sintonia. Ou não? Nada é definitivo...

 

Pois é... ele voltou para Lisboa, seguiu a vida dele e eu a minha, feliz e contente, em S. Miguel.

 

Durante o tempo que andámos juntos eu pensava em ter um filho. Às vezes falávamos nesse assunto mas nunca comentei com ele que, se um dia tivéssemos uma criança e caso fosse menina, ela se chamaria Joana. No entanto, eu sempre pensava nisso. Era certo que se um dia tivesse uma filha com ele se chamaria Joana. Ninguém me tirava isso da cabeça. Mas nunca tinha falado com ele acerca disso. Era coisa minha, só minha. Seria para falar apenas na hora certa, caso viesse a acontecer.

 

Bem, o tempo passou. Um dia conheci o António, que viria a ser o meu marido e que era Açoriano. E um dia, passeando com ele pela cidade, parei em frente de uma montra de uma loja de brinquedos, que tinha bonecas de pano. Vi uma que tinha uma cabeleira de lã grossa amarela, muito engraçada e tinha o tamanho de uma criança. Fiquei encantada a olhar para ela, de tal modo que ele me disse, entra e compra, se gostas tanto! E foi o que fiz. Entrei, comprei a boneca e toda feliz fui para casa com a minha "Joana", claro, tinha que ser Joana! A Joana era gira, todas as crianças que iam lá a casa, filhas de amigos nossos, queriam brincar com ela, mudar a roupa, fazer trancinhas, trocar a maquilhagem e até tinha óculos. A Joana sobreviveu a muita coisa.

 

Quando o meu filho nasceu, tinha os brinquedos dele, brinquedos de rapaz mas, de vez em quando brincava com ela. O engraçado é que sempre tinha o cuidado de realçar que era a "Joana da mãe". Era assim que lhe chamava porque ele sabia que não era um brinquedo dele, embora eu nunca lhe tivesse dito nada, porque não havia nada a dizer.

 

Mas voltando atrás, um dia, eu já estava casada, já tinha regressado a Lisboa depois de ter vivido quatro anos nos Açores, já tinha o Henrique nessa altura com seis anos e estávamos de novo em S. Miguel, de férias. Todos os anos íamos estar com a família do meu marido no período de férias. Com o lazer e as horas mortas passou pela minha cabeça o passado. Lembrei-me do meu namorado Pedro, que um dia se deu ao trabalho de me seguir até lá. Foi nessa altura que fiquei sabendo pormenores da vida dele que nunca antes tinha sido possível. Onde ele morava, o nome completo e até ao B.I. tive acesso, só que já não estava interessada. Era tarde. Mas passou pela minha cabeça telefonar-lhe. Que seria feito dele? Gostava que ele soubesse que eu tinha o Henrique. Mas a questão não é essa. O ponto da questão é que eu falei com ele, ele estava casado e tinha uma filha com menos um ano do que o meu filho. E como é que a menina se chamava? Nem mais nem menos: "Joana".

 

Passou rápido pela minha mente, "onde foi parar a minha Joana? Aquela era para ser a minha Joana!..." Claro que não... não passava duma grande coincidência. 

 

Hoje eu sei que toda a minha vida e todas as minhas escolhas têm sido uma perfeita sintonia comigo mesma, em estado de alerta constante. Daí, que os meus relacionamentos mais profundos têm lugar nessa simbiose universal e já nada é estranho, pelo contrário, tudo é perfeito, tudo natural. 


E se eu achava que a minha telepatia com o meu primeiro relacionamento, o Pedro, tinha sido uma coisa espantosa, mais tarde eu iria perceber que tudo aquilo não tinha passado de uma gota de água no meio do oceano, comparado com o que viria a acontecer depois, com outras pessoas, pelo caminho fora.


Portanto, não tinha sido uma coisa de circunstância com aquela pessoa, com aquele acontecimento. Era uma coisa minha, que eu haveria de confirmar com o tempo. Podia até ninguém saber, ninguém acreditar, mas eu sabia, pertencia-me, quer eu quisesse ou não e isso ninguém me poderia tirar.