quarta-feira, 22 de junho de 2022

Viagem à Rússia - 103


O ano de 2020, o ano do “rato”, de acordo com o zodíaco chinês, tinha acabado de dar entrada. A Direção da Associação Sénior de Odivelas estava reunida para mais uma reunião, a primeira do ano, na qual estavam presentes todos os seus membros.

A senhora Presidente, dirigindo-se ao colega Celestino cujo pelouro são as viagens, pergunta se já tem alguma coisa em vista para a viagem internacional da ASO. O colega Celestino é uma pessoa de eficiência total. Prepara a sua parte com todo o cuidado e com uma antecedência espantosa, pelo que está sempre pronto a responder a qualquer questão que lhe seja posta. Portanto, não seria agora que ia falhar e por isso, uma vez mais, ele já tinha o trabalho de casa perfeitamente elaborado, pronto para ser apreciado por toda a direção, a fim de se planear a viagem sem falha.

Das várias propostas apresentadas à mesa, a mais apelativa para ele é uma viagem de cinco dias à Rússia. E depois de distribuída toda a informação sobre este assunto, para que todos pudessem avaliar e formar uma opinião, um a um, todos se manifestam a favor da Rússia, incluindo a srª Presidente, que faz questão de afirmar que em seu entender é a melhor escolha e vale muito a pena. Ela tinha estado lá com familiares, muito recentemente e adorou, dizendo maravilhas da Rússia.

Enquanto isto, limito-me a ver e ouvir o interesse por parte de todos, sem me pronunciar. Achando estranho, a senhora presidente pergunta porque razão ainda não proferi uma palavra sequer em relação à viagem. No mais profundo silêncio, de facto, eu era a única que não se manifestava. Todos pareciam unânimes em votar na viagem à Rússia. Porque razão eu não me manifestava, era a pergunta da senhora presidente e agora dos outros também. Não queria ser desmancha prazeres, mas a minha única resposta era “não”. A viagem seria feita, uma vez que todos concordavam, mas eu não iria. E intrigados começaram a levantar questões, porque eu sou sempre muito animada com as viagens internacionais e não falho uma. Sem dúvida, mas à Rússia não.

E começa uma espécie de “batalha”, com todos exigindo da minha pessoa uma resposta concreta e objetiva, uma resposta cabível, que tenha fundamento. Não que eu tivesse obrigação, mas por uma questão de princípio e como vogal da direção, deveria pronunciar-me, só isso. Mas essa resposta eu não tinha. A única coisa que sabia é que assim que ouvi falar em Rússia, a minha intuição deu de imediato alerta e a resposta era um não, sem sombra de dúvida. Porquê, eu também não iria explorar muito essa questão, nem para mim mesma, pois há muito que aprendi que em casos destes, a resposta a seu tempo virá. Mas à Rússia era certo que não iria. Paciência. Era dinheiro que eu não ia gastar, mas não era por essa razão. Não tinha nada que ver com isso. Outros valores se sobrepunham.

E a senhora presidente insistia que não compreendia a minha decisão, continuando com perguntas a que eu só podia responder com “não”. Não tinha nada contra, apenas não iria à Rússia, para obedecer rigorosamente à minha intuição, que vinha não sei de onde, mas isso também não importava. Era não e tudo o que eu pudesse dizer, não teria o menor fundamento, o que não tinha qualquer importância, nem tão pouco me constrangia. O importante é que eu estava a ser fiel a mim mesma e à minha verdade. À Rússia não iria. 

Não foi muito fácil lidar com este assunto, porque os outros não compreendem nem têm que compreender. Não se pode exigir isso de ninguém. Ali, o elemento “estranho”, por assim dizer, estava a ser eu, que continuava irredutível e imperturbável, sem me incomodar absolutamente nada. Não valia a pena era estar a inventar desculpas para satisfazer os outros. Isso também não. Achavam estranha a minha atitude? Pois iam ter que se aguentar. Eu própria já passei por isso em relação a mim mesma. Quantas e quantas vezes me interroguei em situações análogas, sabendo qual a resposta, quando não percebia porque haveria de estar a ser empurrada, por assim dizer, para uma decisão que conscientemente ainda não tinha sido tomada por mim mesma, mas que na verdade, vinda não sei de onde, era muito mais forte do que tudo e acabava por me indicar o caminho!? Independentemente de o fazer ou não, mais tarde lá vinha a resposta ou as consequências positivas ou nefastas. Por isso, era o que era.

Ainda não há muito tempo, talvez dois anos ou talvez menos, comecei a ensinar português a uma rapariga indiana, que queria muito aprender para poder arranjar trabalho, mas não sabia onde, nem tinha dinheiro para isso. E por ter sido pedido e falado por quem foi, eu acedi. A rapariga em questão ligou-me, conversámos e combinámos o dia em que daríamos início às aulas. Uns dias antes de ela vir comecei a ter uns sonhos esquisitos, meio embrulhados e acordava estranha, sem perceber nada do que estava a acontecer. E na noite anterior ao dia em que ela veio pela primeira vez, tive um sonho horrível, um pesadelo medonho, que me fez acordar com vontade de não ter acordado ou então, com vontade de acordar e sair daquele horror. Só me apetecia chorar e vomitar, para me livrar daquela sensação tão negativa, na qual me sentia completamente aprisionada.

Satti veio a meio da manhã, conforme combinado e traçámos um plano. Houve empatia entre nós, é verdade, mas ela dificultava muito o trabalho e parecia que não dava a importância que dizia. Dizia uma coisa e depois na prática tinha um comportamento que não correspondia. Estava sempre a atender chamadas no telemóvel e coisas do género. Queria falar de tudo, menos de português. Uma bagunça. Se estivesse a pagar não faria isso, com certeza.

E um dia, novamente na noite anterior, tive o mesmo tipo de sonho, que me deu um mal-estar de arrasar, ao acordar. Era um mal-estar tão forte que eu perguntava a mim mesma, porquê? Mas a resposta eu sabia qual era. Era não estar mais disponível para ela. E por não entender porquê e querer a toda a força uma resposta coerente, dei-me muito mal. Apenas porque não fui fiel à minha intuição.

Ela estava constipada. Tinha apanhado muita chuva e nesse dia várias vezes espirrou. Nós não tínhamos máscaras para pronunciarmos as palavras o melhor possível. E apesar de haver uma certa distância entre as duas e de estarmos na varanda com as janelas meio abertas, não serviu de nada. Nos dias que se seguiram ela não apareceu, ficou muito doente e ao fim de uma semana fez um teste que deu positivo à Covid. Ligou-me para me dizer isso. Lamentei e desejei-lhe as melhoras, só que depois comecei a pensar, e se eu também estou? Lembrei-me dos espirros dela e a minha cabeça começou a trabalhar porque, entretanto, eu já tinha estado muito de perto com mais pessoas, por isso, para aliviar a minha consciência, liguei para o SNS, que me mandou imediatamente fazer um teste, apesar de eu não ter sintomas. Passado poucas horas veio o resultado e surpresa das surpresas, estava positivo, com todas as letras, o que significava que, apesar da ausência dos sintomas - talvez por causa das duas doses de vacina que já tinha tomado - ordens expressas do SNS, tinha que ficar dez dias em casa, sem qualquer contacto, completamente isolada. E foi aí que comecei a sentir-me mal, muito mal. Os meus níveis de ansiedade subiram drasticamente, de uma forma incontrolável e passei mal. Tive que ligar para o SNS e estive uma hora ao telefone com uma psicóloga que tentou acalmar-me e para o efeito até me mandou tomar um banho quente, etc… mas foi horrível. Parecia de tinha entrado no inferno. Senti de novo todo aquele mal-estar do sonho, que tinha tido aquando do primeiro dia da rapariga indiana e que eu não percebia, ou melhor, percebia e sabia, mas rejeitei, por achar que não fazia sentido e que tinha que “ultrapassar” essas coisas.

Definitivamente, há coisas que estão acima, muito acima do nosso entendimento. Não adianta barafustar, procurar entender, não adianta nada disso. Só uma coisa é certa, por mais estranho ou relutante que pareça: aceitar. É a intuição a sobrepor-se ao nosso universo tridimensional, quando existem dimensões tão superiores a isso. Não conseguimos lá chegar, estamos muito longe dessa compreensão. Em todo o caso, somos filhos do universo e o universo está connosco, tentando comunicar-se. É preciso ouvir, escutar a voz do silêncio, as orientações cósmicas, que têm diferentes formas de chegar até nós. Não podemos dar luta porque quem sai perdendo somos nós próprios. Além de que estamos a rejeitar a sua proteção. É como desperdiçar comida.

E agora, à mesa da reunião, com todos esperando ouvir de mim uma explicação ou um voltar atrás na palavra dada, nada disso aconteceu, porque a minha posição foi irredutível, continuando sem me alongar nas explicações, porque não convém nada.

O tempo passou, com os números do Covid a aumentar, os países a tomarem as suas medidas, os aviões a não levantarem e tudo o resto a que nenhum ser humano pôde ficar indiferente, porque nos atingiu a todos, directa ou indirectamente. E o que é que aconteceu? A viagem à Rússia não pôde ser realizada. E vieram os confinamentos e o mundo inteiro foi condenado. A minha resposta estava mais do que justificada. “Não” à Rússia, porque a viagem teve que ser cancelada, versus adiada.

E chegou o ano de 2021, o ano do boi. Se o ano do rato é chato, porque o rato nos faz partidas e aparece onde não devia aparecer e é nojento e ninguém gosta deles, o búfalo tem cornos e é marrento. E quando a Direção de novo começou a preparar-se para, enfim, dar oportunidade aos seniores de irem à Rússia, pois o mundo teve que aprender a lidar com o Covid e agora já havia as condições mínimas para se poder fazer a viagem, recomeçam-se os preparativos com mais pessoas a juntarem-se ao grupo. E mais uma vez sou questionada, por acharem que agora a minha disposição seria outra. O problema é que não era nada com a disposição. O problema era outro. Mas achavam que ainda estava em tempo de voltar atrás e aproveitar essa malograda viagem. Aconteceu isso com muitos colegas, que não se tinham inscrito anteriormente e agora tinham ido a correr fazer a sua inscrição. Mas a minha intuição continuava a dizer “não”. E então pensei para comigo mesma, nem agora nem nunca. Talvez numa próxima reencarnação. Nesta não. Porquê? Não sabia e não estava interessada em saber. Mas a seu tempo saberíamos.

Vinte e quatro de Fevereiro de 2022: o ano do Tigre! A Rússia mostra as suas “garras” e decide entrar em acção, fazendo guerra à Ucrânia, à europa, ao mundo. Fazer o quê?

Viagem à Rússia? Esqueçam. Infelizmente agora estava dada a resposta. Adiada sine die, porque nem para mim nem para ninguém.