quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A Isilda - 87


Era uma terça-feira, dia da minha aula de Meditação. Entrei nas instalações seguida de algumas pessoas que aguardavam, aproveitando o tempo para um curto convívio antes de começar a aula. Entrei no espaço que dá acesso ao jardim de Inverno e estavam três colegas sentadas num banco, aguardando a minha chegada. Mas uma delas não fazia parte da aula. Cumprimentei todos e foi então que a Isilda, que por qualquer razão não tinha nada naquela hora, de repente, me perguntou se podia assistir à aula ao que logo lhe respondi que sim, claro, sem problema algum. Ela agradeceu e demos entrada no anfiteatro, enquanto todos procuravam o seu lugar.

No início, quando comecei com este projecto, ou seja, quando me aventurei a iniciar as aulas de meditação na Universidade Sénior, todas as semanas me dava ao trabalho de preparar minuciosamente cada aula. Pensava em cada passo que daria. E nem por isso as coisas corriam de modo desejável. Quando acabava, sentia um peso enorme, e era uma luta de todo o tamanho com a minha preocupação de cumprir o que tinha planeado. Com o tempo fui relaxando e preparando-me cada vez menos nesse sentido, até que cheguei ao ponto de não preparar absolutamente nada e então percebi que as coisas fluiam de uma maneira espantosa.

Aprendi que quanto menos coisas levar na cabeça, quanto menos preparação e ideias prévias, mais aberta e receptiva estou ao momento. A partir daí, é quando chego, olho e vejo o número de pessoas e as pessoas presentes, o ambiente e outras informações subjectivas e precisas desse exacto momento que chegam até mim nessa hora, que me conduzem e me dizem que caminho percorrer. Se me perguntar a mim mesma ou alguém me perguntar, o que é que vamos fazer hoje? Não tenho a menor ideia. Apenas espero, tal qual como os outros, para começar a perceber qual é o caminho.

A Isilda entrou e sentou-se mesmo na fila da frente, do meu lado direito. Como de costume deixei que todos entrassem calmamente e tenho que dar bastante tempo para que a folha das presenças corra e todos assinem e também para que se acalmem e façam cessar as conversas que às vezes já vêm de fora e nunca mais acabam. E até que tudo esteja dentro do espírito necessário leva uns minutos. É aí que começam a chegar até mim as primeiras impressões. É como se uma voz vinda não sei de onde me começasse a dizer o que devo fazer. É como se uma porta ou uma janela se abrisse e eu começasse a ver as coisas. É um momento decisivo, quase mágico.

E estava eu nesse ponto, quando esbarro o meu olhar na Isilda que vinha pela primeira vez assistir a uma aula comigo. A Isilda é uma pessoa “especial”. Todos temos problemas de toda a ordem, mas a Isilda é das pessoas que consegue ultrapassar os outros nesse aspecto. Em face disso, tem problemas de saúde que não são poucos. Toma imensos comprimidos e tem excesso de peso. Uma vida muito complicada. Desde o primeiro momento em que pisou os pés na nossa universidade percebi que era uma pessoa que precisava de um acompanhamento e um cuidado especial e mais atento.

E estando naquele preciso momento em que as vias se abrem e começo a receber indicações vindas do universo, digamos, para dar início aos trabalhos, olho para a Isilda e não havia o que hesitar. Se ela estava ali é porque ela era o motivo daquele dia. E comecei a falar, dando início a mais uma aula, dizendo que naquele dia teríamos uma pessoal especial que iria partilhar a sua experiência de vida e nós estaríamos abertos a ouvir e a estar atentos. Expliquei que era alguém com problemas delicados que necessitava de ser ouvida e o facto de estar ali hoje connosco era uma oportunidade tanto para ela como para nós. É claro que ela nem sonhava que essa pessoa era ela porque, muito provavelmente, se soubesse, nem lá teria ido. Mas as coisas são como são. Ela conscientemente não teria ido, mas o seu inconsciente fê-lo por ela. Estava numa fase de um culminar de problemas e a vida dirigiu os seus passos. O facto de ter ido ali, com ou sem propósito não importa nada. É para isso que existe o inconsciente, para se sobrepor quando já perdemos o controlo do consciente.

E quando acabei de explicar tudo acerca dessa pessoa e o motivo por que a íamos ouvir, percebi que havia uma grande expectativa no ar. Quem seria essa pessoa?!

Estico a mão na direcção da Isilda ao mesmo tempo que pronuncio o seu nome. “Isilda, vem aqui, aqui ao pé de mim”… e a Isilda sem poder imaginar que se tratava dela, completamente apanhada de surpresa, reagiu de modo assustado. Ai, eu… disse ela. Levou as mãos à cabeça, baixando-a, num misto de timidez e de grande embaraço. Isilda, continuei, vem cá, continuei eu, sem lhe dar tempo a desistir, ao que ela manifestamente atormentada se levantou vindo para o pé de mim.

E com todos olhando para a Isilda, comecei a falar um pouco por ela, basicamente o que já tinha dito, que ela tinha uma vida realmente com imensas dificuldades, um trajecto complicado e que ela própria nos daria o seu testemunho. Perante isto, a Isilda respirou fundo e começou a falar com todos os olhares e toda a atenção concentrada na sua pessoa.

E assim que começou a falar logo começou a ficar emocionada, dizendo que não sabia que eu a ia chamar, que não tínhamos combinado nada, ao contrário do que alguns poderiam estar a pensar. Começou a falar dos seus problemas, que alguns sabiam mas a maioria não fazia ideia. E à medida que ela ia falando, algumas pessoas se emocionaram tanto quanto ela, e sempre fazendo notar que não fazia a menor ideia que iria estar ali a falar dela, a expor-se perante todos, que realmente não tínhamos falado nada, etc… e os seus problemas continuavam a ser revelados para grande espanto de alguns, para outros nem tanto.

Como já referi, nesta altura já tinha descartado a preparação prévia das aulas. Nesta altura já tinha aprendido a deixar fluir e a ficar apenas atenta às primeiras impressões, aquando da minha chegada, recebendo a informação proveniente da energia do grupo das pessoas presentes, daquilo que elas inconscientemente me transmitem na altura. Apenas indo ao encontro daquilo que é pedido, nada mais. Não há nenhum mistério, nenhum segredo. É assim que as aulas correm. É só estar atenta às percepções que nos chegam.

Assim foi. Quando a Isilda me pediu para assistir à aula, como qualquer outro professor teria feito, limitei-me a dizer que sim. Mas aí ainda não tinha consciência de que ela seria o instrumento daquela aula. À medida que fui entrando e caminhando por entre as pessoas que estavam presentes, a energia da Isilda começou a ser mais forte, começou a ganhar força e quando chegou o momento certo de dar início e começar a falar, vi que ela estava ali mesmo na frente e percebi que ela, sem ter essa consciência, tinha ido ali para preencher aquela aula. Tinha captado a mensagem e a direcção da aula estava traçada. Perceber isso é uma sensação muito boa. É a confirmação de que estamos a fazer exactamente o nosso trabalho como tem que ser feito.

E a Isilda deixou sair tudo o que lhe estava na alma contido, aprisionado. Tudo o que precisava de sair. Precisava apenas que lhe dessem um pouco de atenção para se sentir apoiada, acarinha amada. Para se sentir gente. As lágrimas caiam-lhe à medida que falava em coisas mais dolorosas, mas também ia ficando mais aliviada. Aquilo estava a fazer-lhe um bem tão grande que ela tinha necessidade de a pouco e pouco fazer lembrar que não sabia e nós não tínhamos combinado nada, o que era verdade absoluta. E que ela só tinha ido ali à última hora porque não tinha a aula dela por falta do professor. E esse pormenor para ela era uma coisa espantosa. Ela percebia que aquilo parecia que tinha sido tudo combinado. Ela percebia isso. Só que na verdade não tinha. E esse pequeno pormenor, da coincidência, aos olhos dela, da alma dela, era uma coisa um pouco para além do “normal”. Ela percebia com efeito que a mão do destino estava presente e que o universo, através da minha pessoa, se tinha encarregado de lhe trazer a ajuda que tanto precisava. 

E o relato dela continuava dizendo que nesse último fim-de-semana esteve tão mal que pensou em suicídio. Estava na cozinha com uma grande faca na mão quando pensou que a podia espetar nela para acabar com a vida. Só que o marido, percebendo a gravidade da situação, pegou nela e a levou para irem passar a noite fora de casa. E então ela se acalmou e a coisa passou. Por isso precisava de falar e desabafar.

Perante este episódio a sala toda ficou consternada. O silêncio imperava o anfiteatro. Ninguém sabia o que dizer.

Não existem acasos. Existe um plano em prol do qual o universo trabalha.