segunda-feira, 23 de outubro de 2017

O semáforo - 65



Eram umas onze horas da manhã e eu estava bem tranquila, parada no semáforo bem pertinho de casa, porque o sinal estava vermelho.

 

Quando comecei a subir a rua ainda estava verde, mas resolvi abrandar a marcha porque calculei que não ia chegar lá a cima ainda no verde. E foi o que de facto aconteceu.

 

Naquela zona, com quatro escolas nas imediações e passadeiras necessárias, não é exactamente o lugar certo para acelerar. E enquanto estava parada, concentrada na luz vermelha à espera que passasse a verde, vejo pelo rectrovisor um smart branco, que vindo da estrada nacional, entra na Luis de Camões, a rua em que eu estava, começando a subir. Exactamente o mesmo percurso que eu tinha feito. A questão é que, assim que o smart surgiu lá ao fundo, no início da rua e que eu apenas vi de relance pelo espelho, imediatamente me passou pela cabeça isto: “ele não vai parar no semáforo”.

 

Mas logo dei por mim a reagir àquele pensamento, justificando-me comigo mesma. Porque não haveria de parar? Era disparate. Claro que ia parar. Até porque, entretanto, o sinal já poderia estar aberto, mas não havia motivo algum para pensar que ele não iria parar. Não era pelo andamento, porque vinha a uma velocidade perfeitamente normal. Então porque haveria de ser? E continuando à procura de justificativas para não dar como certo aquele pensamento que me havia ocorrido, foquei a atenção novamente no sinal vermelho.

 

É claro que tudo isto se passou em fracções de segundo. E focada no sinal decidi esquecer o smart e a questão de ele passar ou não. Se ele passasse era complicado. Havia um semáforo à direita e outro à esquerda, na perpendicular à rua onde estávamos. E naquele sinal só estava eu, pelo que ele haveria de posicionar-se atrás de mim. Continuei a olhar para a luz vermelha e esqueci o smart. Era estupidez minha. Claro que ia parar. Mas porque razão aquele pensamento me tinha ocorrido assim que o vi? A isso não sabia responder.


Nos quatro anos que vivi nos Açores, em S. Miguel, aconteceram-me cenas incríveis. Foi nos Açores que tirei a carta de condução, há cerca de quarenta anos atrás. Mas não aprendi a conduzir em nenhuma escola de condução. A minha escola foram os pilotos de rally. O meu marido, entre outras coisas, na altura era rádio amador e os rádio amadores juntavam-se para fazer a cobertura das competições. No final das provas fazíamos grandes farras, todos juntos e isso promovia a nossa amizade e a nossa intimidade como grupo. Então, era frequente sairmos nos carros dos pilotos e eles convidarem-nos para conduzir, aproveitando para nos dar dicas que faziam uma grande diferença na condução. Isto era frequente. Bem antes das provas, lá apareciam os pilotos para testar os carros, os caminhos e tantas outras coisas que estavam em jogo. Mas havia sempre a oportunidade para pormos as mãos nos volantes dos carros deles, em ameno passeio e era uma sensação e tanto. E assim aprendemos a conduzir.

 

O inusitado da coisa é que, não raras vezes eu advertia para o facto de que adiante encontraríamos polícia de trânsito e  se fôssemos apanhados a conduzir sem carta era complicado. Eu nem queria pensar. Portanto, o meu alerta era sagrado e assumidíssimo por todos. No início, o pessoal achava aquilo estranho, como é natural. Até eu achava estranho! Como é que ela sabe que vai aparecer polícia se a estrada está livre, sem o menor sinal deles? O facto é que, mal eu recebia esta mensagem ou este pensamento, imediatamente parávamos para fazer a troca e pôr no volante alguém com carta. E um pouco à frente, na verdade, a polícia aparecia.

 

Era coincidência? Não, não era coincidência porque, do mesmo modo que eu alertava para a ameaça de polícia, também sabia quando não havia perigo algum. E às vezes, na brincadeira, quando queriam fazer graça com o assunto, perguntando se ia haver polícia, eu respondia com toda a clareza que não, que estava tudo calmo e sereno. Com efeito.

 

Eu apenas seguia a minha intuição. Mas não é só isso, é um pouco mais do que isso. Eu era absolutamente fiel à minha intuição e por isso ela se activava e se mantinha alerta, caso contrário falharia, como falha tudo aquilo que não é usado e que não responde, porque não tem utilidade. Não houve uma única vez que eu não reagisse, quando a minha voz interior se fazia ouvir. E só por isso ela nunca me deixou ficar mal.

 

Mais tarde, quando estava em plenas funções do meu papel de mãe e o meu filho ainda pequeno me perguntava se podia ir para a rua brincar, eu ouvia a mim própria antes de tomar uma decisão. E às vezes dizia-lhe que esperasse um pouco, só um pouco. E ele esperava até que eu dissesse que podia ir, sem qualquer reserva, porque sabia que as minhas decisões tinham a sua razão de ser. Alguma coisa não ia dar certo quando lhe dizia para esperar um pouco. Alguma criança dava uma queda, uma briga se desencadeava, e ele nunca contestava porque sabia que a minha única preocupação era sempre a segurança dele.

 

Há alturas em que ando mais desligada, é verdade, mas nunca completamente cortada do cordão umbilical do eu mais profundo, que sabe verdades que nós próprios desconhecemos.

 

 

E aí estava eu focada na luz vermelha do sinal, divagando sabe-se lá por onde e esperando que passasse a verde, já esquecida do smart branco que tinha avistado lá atrás, quando de repente, ainda com o sinal bem vermelho, apercebo-me de um carro que me ultrapassa, passando o traço contínuo e entrando na contramão vira à direita, como se fosse a coisa mais natural do mundo, trazendo-me de volta à circunstância, perplexa e sem entender – o smart branco, conduzido por um indivíduo que mal deu para ver, tinha cumprido a sua mensagem, isto é, deliberadamente, passou, impecável, sem parar no semáforo. 

 

domingo, 3 de setembro de 2017

A tia Guida - 64


Havia uma pessoa na minha família que não me era nada, porque veio no pacote do segundo casamento do meu pai e era tia da minha meia irmã. Faleceu com idade perto dos oitenta anos.

A tia Guida era uma pessoa de uma certa complexidade. Durona e fria, não era fácil nem acessível. Vivia apenas para ter. A sua razão de ser baseava-se inteiramente no objectivo de alcançar mais e mais dinheiro e bens materiais. Depois, a nada disto dava uso nem tirava partido algum. Mas tinha e queria cada vez mais.

Sozinha, nunca casou, nunca teve filhos, nunca se lhe conheceu um namorado sequer. Vestia-se de uma maneira simples demais e basicamente nunca a vi arranjada, muito menos maquillada. Tinha todo um perfil muito próximo do masculino. Gostava de dar ordens em toda a gente e achava que punha e dispunha de todos, falando sempre com a peculiar superioridade de quem pode tudo. Não era fácil.

A única coisa que eu queria era nunca ter problemas com ela, porque não ia deixar que me hostilizasse sem motivo e motivo eu jamais lhe daria. Muitas vezes a vi sendo dura e áspera com o meu pai, com a minha madrasta, para não falar de todos os que a rodeavam, porque ela era assim. E com a minha meia irmã que era a sua sobrinha predilecta, indirectamente, era ela que guiava o seu futuro, coisa que com os outros não podia fazer. Enfim, quando digo que não era uma pessoa fácil, não era mesmo.

Com a idade veio o Alzheimer e o Parkinson, obrigando-a a deixar os negócios, as lojas, tendo que ficar cada vez mais em casa, onde mantinha uma empregada a tempo inteiro para tomar conta dela. Assim, foi ficando cada vez mais sozinha e saindo cada vez menos, também.

Certo dia, em que fui a casa do meu pai que vivia muito perto dela por causa da irmã, a empregada telefonou para a minha madrasta dizendo que a patroa não estava nada bem. Posto isto fomos lá, inclusive eu, ver o que se passava com a tia Guida.

De facto, não estava nada bem. Havia algum tempo que não dizia coisa com coisa, sendo raros os momentos de lucidez, mas naquele dia a coisa tinha piorado. Estava enfiada no seu quarto de dormir, sentada numa beira da cama e transtornada de todo, mais que nunca. Fazia pena. A irmã falou com ela, a sobrinha tentou falar com ela, mas não sabiam o que dizer e ninguém a arrancava daquela situação. Tentaram falar-lhe à razão, mas como pode uma pessoa naquele estado ser chamada à razão, se a razão está totalmente perturbada? Ela não tinha noção de quem era mais. Estava completamente perdida. Até reconhecia os outros, o problema é que não sabia quem era ela própria.

E isto, a irmã não conseguia compreender nem conceber. A irmã, que toda a vida tinha sido sua cobaia e vítima dos seus desmandos, estava agora por cima da situação, porque não estava num estado de senilidade tão avançado como o dela. E então, ralhava com ela, parecendo querer vingar-se de toda a vida se ter deixado levar por ela, sem nunca ter tido voz activa. Mas, nesta vida, para tudo impera a lei do mais forte. E dizia à outra que ela tinha que saber quem era e que tinha que saber o que tinha. A tia Guida só dizia: “não sei”, “não sei”, “não sei”. E insistia: “mas como é que não sabes? Então não sabes o quê?” E a outra, entre o desespero, a raiva e as lágrimas, gritava: “não sei”, “não sei!...” Olhava-se no espelho, como que a ver se se reconhecia e voltava a gritar desesperadamente “não sei(!)”, pondo a outra cada vez mais furiosa, sem ter a mais pequena noção do real estado da irmã.

Era uma coisa aflitiva. A minha meia irmã estava aterrada, sem palavra, porque não sabia lidar com coisas que saíssem fora do seu controle e fora da sua zona de conforto. O meu pai, um pouco afastado, deixando tudo por conta das duas, porque também não tinha como intervir. A empregada, calada, sem um pio, porque a função dela era receber ordens e nada mais. E eu presenciava aquela cena triste, onde o tempo tinha deixado as suas marcas grosseiras, bem como as suas garras devastadoras, sem dó nem piedade. Aquela mulher que toda a vida tinha sido um expoente máximo de comando e autoridade, estava agora reduzida a zero. Ela que sempre sabia de tudo, ela e só ela é que sabia disto, daquilo, de todas as coisas e mais algumas, estava agora confinada àquelas palavras duras de ouvir de qualquer pessoa, quanto mais vindas dela: “não sei!” Era a única coisa que dizia, mas percebia-se que o “não sei” era apenas um código que se referia ao maior dilema que um ser humano pode ter. Quem sou eu mesma que nunca me encontrei, nunca soube quem eu era? Estive sempre ausente, apenas e somente a representar um papel e nunca parei para pensar em mim, para me descobrir, para saber quem eu era! Como posso, agora que tudo passou e que já quase não sou eu, saber quem fui ou quem é o que ainda resta de mim? Perdi tudo. Passei pela vida a ser aquela, uma outra qualquer, mas nunca, em momento algum, fui eu. Agora, na recta final, alguém que me diga quem sou eu, afinal?

Era isto que aquela linguagem codificada por duas palavras apenas – não sei – queria dizer. É triste. E já não eram os gritos dela, da voz dela, mas os gritos da alma. Da alma aflita, sem uma identificação genuína. De uma alma que se sente anónima, porque sempre mascarada, sem uma revelação do seu eu. Isto não é fácil de entender. Aquele “não sei” era um verdadeiro e sentido pedido de socorro. Interpretar aquilo como uma simples loucura ou um qualquer delírio era um drama e tanto. Era um sofrimento deplorável. E com a cabeça entre as mãos, continuava gritando para a irmã: “não sei!” Então não sabes quem és? Entre soluços, respondia: “não sei”. Mas não sabes o quê(?): “Não sei… não sei”. Mas o que tens, afinal? “Não sei”… não sei nada”, concluía, do que lhe restava em consciência. E eu já não sabia o que mais me estava a incomodar: se as perguntas impertinentes de uma ou a resposta fatídica da outra. A quanta loucura e perturbação o ser humano pode estar sujeito!?

Aquilo não podia continuar.

Cheguei junto da tia Guida que continuava sentada na beira da cama com a cabeça entre as mãos e pus as minhas mãos sobre as dela. Esqueci completamente quem era aquela pessoa fria que punha todos à distância e rejeitava a vida no que tem de mais belo: o amor e todos os sentimentos que o envolvem. Ela aninhou-se a mim como se fosse uma criança desprotegida, precisando de conforto e segurança. Baixei-me, trazendo as mãos dela nas minhas até ao regaço, sempre com as mãos bem apertadas, olhando-a de baixo para cima. Soltando uma das mãos, comecei a acariciar-lhe o rosto. Ela olhou para mim e ficámos, olhos nos olhos, sem nada dizer. Em silêncio, pensei naquela palavra maravilhosa: Namasté! (O eu que há em mim saúda o eu que há em ti para promover a paz e a luz). E por um momento a lucidez veio à tona, trazendo-lhe a paz que precisava. O rosto que antes estava perdido, transfigurara-se rapidamente numa súbita e profunda alegria. Havia um rasgo de luz no seu olhar. De repente, a fria e dura tia Guida revelara-se uma criatura doce, meiga e afável, carente de todo o afecto possível. E nesse exacto momento ela compreendera que tinha acabado de achar a resposta que tanto exigia; ela tinha acabado por se revelar a si mesma. Tinha acabado de encontrar o seu verdadeiro eu. No meio daquele turbilhão de emoções, dramático e avassalador, acabava de resgatar o encontro consigo mesma. Tinha-se descoberto. Tinha-se finalmente encontrado. Fora uma vida inteira escondida entre os escombros do materialismo, mas agora estava ali, inteira, por breves instantes, à luz de um breve presente, que valia muito mais do que toda uma vida. Aquela era ela. A máscara caíra. O rosto transfigurara-se por completo. A alegria pela descoberta do eu, num misto de compaixão e humildade, tinham feito um verdadeiro milagre. Estava feliz. Tinha finalmente chegado a algum lado e como tinha valido a pena! O amor incondicional tinha sido activado no seu ADN, só isso.

 

Não tinha importância nenhuma o facto de nunca termos tido empatia alguma uma com a outra. Naquele momento ela estava perfeitamente consciente. Estava de regresso e era ela, não à outra. Estava acessível e tinha rompido com todas as barreiras que a impossibilitavam de ser ela mesma. A luz divina tinha chegado até ela e por isso estava verdadeiramente extasiada, maravilhada com essa nova realidade. As defesas caíram e ela fora capaz de dizer com toda a sinceridade da sua alma, aquilo que muito provavelmente nunca tinha dito a ninguém em toda a vida, na sua voz mais doce e comovente, que deixou a todos sem palavras: “obrigada”... 

 

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Era ele - 63


Era ele. Não era, não podia ser. Mas era como se fosse. Eu não queria acreditar no que os meus olhos viam. A impressão que tive era tão forte que não conseguia admitir que não era ele.

A noite estava quente. Nem uma brisa corria. O mar calmo, tranquilo. A rua começava a encher-se de gente. Gente para lá, gente para cá. Gente de todas as idades e de todas as nacionalidades. Os feirantes já instalados nas suas bancas iluminadas davam à noite um ar animado. Cada um com seu comércio. Desde as tatuagens às exibições artísticas, nada faltava. Para não falar das lojas abertas e cheias de movimento. E eu olhava descontraidamente quem passava, ao mesmo tempo que espraiava a vista no horizonte escondido pelo cair da noite, onde mar e céu se confundiam.

Um grupo de músicos preparavam o seu habitual show, passando fios, cabos eléctricos, etc… e de repente, olhando para eles… era ele! Era ele sem tirar nem pôr. Desviei o olhar porque senti um arrepio pela coluna de cima a baixo. Não, não podia ser. Isso era certo. Estávamos a cerca de duzentos e cinquenta quilómetros de distância um do outro. Recompus-me do choque emocional e olhei de novo. Estava sempre de costas, mas era a mesma figura. Faltava-lhe um nadinha de altura e era ligeiramente mais forte, mas assim, de repente, a sensação é que estava ali, a escassos metros de distância. Como? Porquê? Porque é que me estava a passar aquela cena pela cabeça? Eu sabia que não era. Em momento algum duvidei da minha certeza. Mas o arrepio que senti quando olhei a primeira e a segunda vez, eram sinal de alguma coisa. Alguma coisa estranha.

A noite estava óptima. As pessoas lá em baixo passeavam com prazer e descontraidamente, apreciando a temperatura que se fazia sentir e dando atenção às bancas por onde passavam. As crianças acompanhavam os familiares, uns de mãos dadas, outros soltos, alguns até correndo e gritando. E havia os mais românticos, que desciam até à beira mar para fazer umas selfies captando o mistério da escuridão nocturna, o brilho da lua na água, ou simplesmente para sentir uma vez mais os pés na areia macia e mergulhá-los na espuma prateada.

Mas eu não conseguia ignorar a “visão” que tinha tido e pela terceira vez olhei. A noite estava ainda mais escura. E a imagem dele persistia em aflorar e tornar-se cada vez mais forte. E quanto mais eu negava, mais forte era aquela coisa que me agarrava com uma impetuosidade efervescente. Até chegava a doer. Que quereria aquilo dizer? Se ele pudesse sentir o mesmo que eu estava sentindo(?)… era como se o meu corpo estivesse enrolado no dele, com aquela chama acesa e ao mesmo tempo uma sensação de paz que ele sempre me passava. Uma coisa indescritível! Era como se os dois fôssemos um só… era deveras bonito, lindo de mais. Aquela visão tinha-me feito chegar tão perto daquelas lembranças. Era tão forte! Que quereria aquilo dizer? Não era normal. Algo estava acima do meu entendimento. Seria possível que estivesse a sentir o mesmo que eu, naquele momento? Quem poderia responder? Não era possível que eu estivesse a sentir aquilo sozinha. Era um sentimento forte demais para ser unilateral. Transbordava da minha pessoa. Transbordava sem limites. Nunca me tinha acontecido nada igual. Aquilo realmente era sintomático. Mas como poderia eu saber se ele estava a sentir o mesmo?

E de repente, pela terceira vez, parei o “delírio”. Achei por bem sair da varanda e ir para dentro. No mesmo instante o telemóvel disparou sinal de mensagem. Quando ouvi, pensei: “Só pode ser ele!” Só isso justificava o que eu estava a sentir.

Era ele.


sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Dois de Agosto de 2016 - 62



Aeroporto da Portela, dois de agosto de 2016. Eu tinha ido levar a minha norinha e a sua filhota ao aeroporto para seguirem viagem de regresso a Nova York, onde o meu filho as esperava. Já tinham vindo todos, três semanas em Julho, para as habituais férias de Verão. E, apesar de estar o tempo todo com eles, a minha pequena Sofia estava sempre a fugir de mim, como que me achando uma “chata”. 


Pronto, criança é assim mesmo, espontânea e na maioria das vezes, incapaz de mentir. Para uma avó ausente, que só tem a neta duas vezes por ano, pelo Natal e no Verão, por tempo muito reduzido e que, para compensar a distância tenta de tudo para mimar as suas "crianças", provavelmente a Sofia lá tinha as suas razões para se afastar sempre que podia, tanto mais que tendo recebido a visita do avô apenas por um fim-de-semana, se agarrou a ele com unhas e dentes, não o largando de jeito nenhum, o que muito o encantou, claro.

 

E não é que isso me tenha deixado infeliz. Muito pelo contrário, o meu coração se enche de alegria vendo e observando a cumplicidade dos dois, ainda que eu tenha que ficar de fora. Mas nem por isso desisto de fazer tudo para, continuadamente, agradar à minha neta querida.

 

O facto é que, aproximando-se a hora da partida dos três, o meu coração de mãe e de avó, ficou apertado de mais, sentindo-se ultrajado e enganado por ter querido um pouquinho mais de atenção. Dentro de mim, muito honestamente havia tristeza e não posso dizer que fosse pequena, porque na verdade não era. Embora eu tentasse racionalizar as emoções, a verdade é que nada adiantava porque sabia, sabendo, que tinha sido pouco apreciada pela minha pequena Sofia. Não por mal. Isso também o sabia. Mas a verdade é que não tinha conseguido ter aquele bocadinho especial, aquela atençãozinha que o avô sem esforço conseguiu, ainda que num só fim-de-semana em que “roubou” o pouquíssimo que eu tinha. E assim, tentava consolar-me com o regresso no Natal, a próxima vinda para, de alguma forma, tentar recuperar um pouco desse vazio que afogava silenciosamente a minha alma, num segredo que era só meu, porque conhecendo o meu povo como só uma mãe conhece, se me tivesse descuidado e mostrado o mais pequeno sinal dessa angústia, ainda por cima corria o risco de ser mal interpretada e de ficar pior do que já estava pois, na certa, achariam não passar de uma “fantasia” minha.

 

E a hora do voo aproximava-se, enquanto eu tentava minimizar aquela dor que me sufocava. Ao chegar a casa, com toda a certeza, jogar-me-ia no sofá para chorar todas as lágrimas que tinha direito. Mas até lá, tinha que me aguentar sem dar parte de fraca.

 

O chek-in foi feito e os três lá se despediram mais uma vez, com a pequena Sofia cada vez mais distante, não só da minha vista, mas de tudo em mim. E num último instante, talvez egoísta da minha parte, mas decididamente inconformada, rapidamente me sintonizei com o divino, me perguntando “porquê?” Porque, para mim, muito no meu íntimo e muito honestamente, alguma coisa me dizia que não podia ser assim. Bem no meu fundo e de acordo com a necessidade de expressão da minha alma, algo estava realmente errado. Algo não batia certo, porque não se tinha estabelecido aquele elo afetivo entre mim e a minha neta, como sempre acontecia. Por mais que eu tenha feito e tentado, todo o tempo a sentia escapar-se e essa é que era a verdade que tanto doía em mim. E à medida que a distância aumentava, a minha dor aumentava. Faltava. Faltava tudo. Para poder minimizar a minha dor e aceitar esse facto, fiz a única coisa que podia ter feito: entreguei para Deus. Entreguei nas mãos de Deus tudo o que sentia, aquela angústia e as perguntas que não tinham resposta. Porque, até Dezembro, era muito tempo para consolidar aquela falta de harmonia. E quando eu não consigo, porque está muito além das minhas humanas possibilidades, entrego para Deus. Só ele pode. Só ele sabe.

 

De facto, eu estava certa e a resposta veio duas semanas depois, quando a minha norinha informou que viria com a Sofia mais três semanas, no mês de Agosto. Ah!... Eu nem queria acreditar. Vinha porque o trabalho a chamava temporariamente a Lisboa e a Sofia vinha para estar mais tempo com os primos. Vinha, vinha, vinha… a verdade é que vinha porque tinha que vir, porque o Universo sabia que eu precisava da presença dela como de pão para a boca. Aquilo era um presente divino. Era a consolidação da minha paz, da minha alegria, a serenidade da minha alma sedenta da comunhão que havia falhado com a minha pequena. Não era coincidência nenhuma, nem por isto nem por aquilo, era o cosmos organizando-se para reparar a desordem. Não importa… era a resposta. Essa é que era a única verdade. Mas isso só eu sabia.

 

E assim, durante três semanas estive praticamente todos os dias com a minha pequena, sendo que muitas vezes fiquei sozinha com ela só para mim, enquanto a mãe precisava de ir à Universidade por força do trabalho. Nós duas, ela e eu. E como brincámos e nos entendemos! Eu estava tendo a minha oportunidade… aquela a que eu tinha direito, todo o direito… eu sabia que essa coisa boa me tinha sido sonegada. Eu sentia o vazio. Não era uma coisa palpável, mas a minha intuição dava sinal, dava o alarme que soava dentro de mim de maneira inegável. Eu sabia que aquela outra não tinha sido a minha hora. Mas ela chegaria, caso contrário o puzzle da vida estaria todo errado e isso nunca pode acontecer.

 

E como foi bom! Foi uma recompensa sem tamanho. A Sofia resolveu trazer uma das suas bonecas e queria roupas para ela. A mãe achou que as roupas para a boneca eram mais caras do que para ela e então… então esta avó entrou em cena. As duas, avó e neta desenharam um guarda-roupa completo, tão completo, que até fato de banho a boneca ganhou e não foi um fato de banho qualquer, foi um fato de banho igual ao dela. Aquilo é que foi trabalhar e dar asas à imaginação. E a menina precisava de um casaquinho de malha quentinho, com gorro e pompom igual, porque em Nova York fazia muito frio… e num piscar de olhos apareceu o casaquinho lindo com o gorro igual, para não falar dos vestidinhos, saias, blusinhas, etc... etc… etc...

 

A Sofia estava feliz. Por cada pecinha de roupa que lhe chegava às mãos ficava deliciada, encantada e era um tal vestir e despir e depois desfilava por toda a gente “olha”, “olha”, “olha”, ela só queria que apreciassem o guarda-roupa especial que a sua linda boneca tinha ganho. A Sofia tremia de emoção. Estava completamente extasiada, felicíssima com aquela novidade. Agora tínhamos finalmente tido o nosso tempo, as nossas conversas, os nossos pactos, só nossos. Eu estava saciada e agradecida à vida que sempre me surpreende por tudo o que me pode dar, mas muito especialmente por aquela oportunidade de ouro que não era mais do que um acerto de contas. O puzzle estava completo e perfeito.

 

Mas o tempo acabou e no dia dois de agosto lá fui ao aeroporto deixar as duas para seguirem viagem. Desta vez, em paz comigo, com a vida, com tudo. Eu tinha tido a minha enorme recompensa.

 

E aqui começa outra história.

 

Enquanto aguardávamos na fila para o chek-in, atrás de nós estava uma família com várias pessoas e uma criança, um menino da idade da Sofia. Apesar de estar concentrada na minha neta, não passou despercebido o que atrás de mim se passava. Algo estava errado. Como não sou bruxa, não podia adivinhar o que era e quando assim é, penso sempre que deve ser “impressão” minha. Antes fosse.

 

Quatro adultos e a criança. Eu sentia a energia do grupo e aquilo incomodava-me. Mas porquê, é a pergunta que não quer calar, quando me apetece que nada perturbe a minha paz. O que tenho eu que ver com esta gente que não conheço de lado nenhum e nunca antes vi?! Mas ali havia no ar um mistério, um problema, um poço sem fundo carregado de uma energia pesada, tão pesada que uma simples sensitiva como eu não conseguia deixar de captar. Raios!...

 

Desliguei-me e foquei-me na minha pequena família prestes a partir para os Estados Unidos: Sofia e sua querida momy. Tudo em ordem, seguimos para a entrada das portas de embarque, até onde me era possível acompanhá-las e onde fiquei até as perder de vista. Mais um último adeus e desapareceram da minha vista. Respirei fundo, dei meia volta e preparava-me para bater em retirada quando uma criança começou a chorar, a chorar, a chorar cada vez mais alto e mais forte, num desespero desesperado.

 

Volto-me e vejo o menino que estava atrás de nós no chek-in. A criança estava agarrada às calças e às pernas do pai, um indivíduo de cerca de trinta e cinco anos. Já tinham transposto a cancela uma senhora que, pela idade e postura, deveria ser avó e em cujo semblante não havia sinal de vida. A expressão era vazia, ausente. Depois havia um casal, um dos quais deveria ser irmão do suposto pai da criança, porque uma criança só se agarra daquela maneira desesperada a um pai ou uma mãe, que evidentemente não era o caso do casal com quem a criança teria que viajar. Já todos tinham transposto os torniquetes de inspeção, com exceção do pai da criança e da criança que, decididamente, não largava o pai e toda aquela família não sabia o que fazer, muito menos o pessoal da inspeção do aeroporto. O homem andou de um lado para o outro, tentando desligar-se da criança, enquanto a família já do lado de lá puxava por ele, tentando falar-lhe, convencê-lo, mas não havia forças que o demovessem, forças mais fortes que ele, naquele momento, que o fizessem largar do pai. Ele iria para onde o pai fosse e ponto final.

 

Eu estava estarrecida, pensando, o que faz uma criança gritar daquela maneira, como se estivesse a levar uma surra de morte? E a questão era exatamente essa. Quando finalmente, os dois, foram separados e sem dó nem piedade a criança foi obrigada a passar para o outro lado arrastado a toda a força e os seus gritos de horror se ouviam e se repercutiam por todo o aeroporto, atraindo os olhares de toda a gente, por alguns segundos o pai da criança ficou imóvel, sem reação alguma, olhando a partida do menino que a única coisa que podia e queria fazer era chorar ou morrer, porque de certeza, viver, ele não queria. Aquele choro denunciava tudo isso e muito mais.

 

E quando finalmente o rapaz se virou para bater em retirada e esbarrou em mim, que estava um pouco atrás dele, sem pensar, a pergunta saiu-me, foi mais forte do que eu “why?…” e ficámos a olhar um para o outro, o que me deu tempo suficiente para me aperceber da tensão a que estava submetido. Mas a pergunta estava no ar e eu precisava daquela resposta. No mesmo instante umas lágrimas rolaram-lhe pela face e respondeu, ainda que distante e sob forte comoção “mom died…”, ao mesmo tempo que rapidamente desapareceu, ao som dos gritos continuados da criança que lutava pela sua sobrevivência espiritual, mortalmente atingida por um complexo e fatídico destino que ele não entendia, não queria e se recusava terminantemente, sob qualquer pretexto, a ser obrigado a aceitar aquilo que jamais pedira.