quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O túnel do tempo - 93

 

Apesar da sua sempre boa disposição, mesmo perante as adversidades da vida e da responsabilidade que lhe pesa sempre sobre os ombros por conta dos seus negócios, Humayen estava uma vez mais apreensivo e lamentando-se pelo facto de nunca mais chegar o dia de ir buscar a mulher e o filho ao seu país de origem, o Bangladesh. Mas desta vez estava mais carregado do que era costume, o que me fez redobrar a atenção em relação ao seu desânimo.

Eu sei quando uma pessoa se lamenta por hábito e costume e quando é de alma, ou seja, com verdade. E era o caso. Humayen, o meu amiguinho - que me considerava uma mãe pela ajuda que sempre achava que lhe dava e que para mim não era nada -, passava as tardes em comunicação por vídeo com a família: mãe, pai, mulher, filho e demais família, a fim de minimizar as saudades tanto quanto possível, mas agora dava sinais de estar no auge da sua luta de emigrante, no desejo e necessidade de ter a sua pequena família junto de si, o que era perfeitamente normal.

Depois de ter captado a minha total atenção, que me fez encarar com toda a seriedade as suas queixas de que mal conhecia o filho que tinha então quatro aninhos, concentrei-me inteiramente nas palavras dele, no problema que expunha, e não podendo fazer nada de concreto, tentei ir ao fundo de mim mesma para resgatar a verdade, aquela verdade que está dentro de nós, que mora lá bem no fundinho, no inconsciente, à espera de ser resgatada pelo consciente e fazê-la emergir.

Não diria que é fácil, mas é possível. É só alhearmo-nos de todo o resto, afastar tudo para deixar que fale mais alto, mais alto que tudo. E assim, concentrando-me, deixei que saísse o que ele precisava de ouvir. Estávamos no final do ano de 2020 e ele queixando-se de que os anos passavam e era mais um e ele de mãos e pés atados. Já tinha estado quase, depois do confinamento em Portugal. Mas aí, veio o confinamento na Índia, no Bangladesh, o corte das ligações aéreas e lá se foram os planos ao ar. Era deveras desanimador.

Concentrando-me, entrei no túnel do “tempo” do tempo, que mentalmente percorri rapidamente, para lhe dizer que no ano seguinte o problema estaria resolvido. Mas ele pareceu não dar muita importância às minhas palavras. Por isso reforcei e aprofundei, incutindo-lhe a veracidade que o assunto merecia, pois não era para ser levado a brincar nem de ânimo leve. E uma segunda vez fui mais pormenorizada dizendo-lhe o que estava a ver, que até ao final do ano eu tinha a certeza de que ele conseguia realizar o seu sonho. Ele, porém, continuava a implorar e a não levar muito a sério o que lhe estava a dizer. Olhei para ele de frente, tentando que me olhasse nos olhos, e aprofundei bem mais a questão. Percorrendo novamente e cuidadosamente o calendário do ano seguinte, vi os meses passar, desde Janeiro até Outubro, dizendo-lhe que Outubro, sim, Outubro seria o mês em que ele iria ao Bangladesh. Acredita, em Outubro as coisas resolvem-se.

Ele olhava para mim sem que eu percebesse muito bem se estava a acreditar ou não. E, entretanto, sem saber porquê, continuei: Outubro… Outubro – mas aí vi o meu dedo deslocar-se para o mês seguinte, Novembro, sem perceber porquê, e repeti em voz alta, que em meados de Novembro já cá estariam todos com tudo resolvido. Ele olhava para mim querendo acreditar com todas as suas forças, mas ao mesmo tempo interrogando-se do porquê de eu estar a fazer previsões. Eu própria não entendia muito bem o que tinha acabado de dizer. Primeiro tinha referido Outubro, mas depois passei para Novembro, reforçando os meados de Novembro… porquê?

Contudo eu sabia que não era uma simples previsão, só que ele não me conhece o suficiente para saber pormenores que apenas alguns sabem. E mais, como um bom muçulmano, ninguém pode saber tanto como Alá. Eu lia o pensamento dele e continuava a induzir-lhe aquilo que para mim era uma verdade absoluta, talvez estranha, até posso concordar. Mas naquele momento fiquei a saber com toda a exactidão o mesmo que ele acabava de saber. E só o soube para satisfazer a sua necessidade, não a minha.

Um tempo atrás, ele chamou-me para ir com ele ao Marl, no que concordei, movida pela curiosidade. Sempre gostei de mercados. Tenho mesmo um grande fascínio, por que me lembram a minha infância e agora aí estava mais uma oportunidade de ver um grande mercado abastecedor das grandes e pequenas superfícies comerciais. Depois de lá estar, foi preciso tirar uma senha para ser atendido numa determinada zona. Mas havia muita gente antes de nós, o que era uma chatice e tanto. Era Inverno e apesar do dia estar bonito, estava frio, por isso disse-lhe que ia esperar sentada no carro que estava ali mesmo ao lado. Ele concordou e entrou também no carro para eu não estar sozinha. E ficámos entregues aos nossos telemóveis, que é o que toda a gente faz, pois não havia mais nada para fazer.

O tempo foi passando e a certa altura achei por bem sabermos em que número ia. Ele apressou-se a ir, mas para tornar a coisa mais leve, porque era muito chato estar ali ao frio à espera, disse-lhe para fazermos uma aposta, no que ele disse um número e eu outro. Ele atirou um número provavelmente ao acaso, e mais uma vez o meu dedo indicador esquerdo, porque sou canhota, no ar, percorreu a linha do tempo, tendo parado num número que já não me lembro. E assim estavam determinados os nossos números da aposta. E lá foi ele. Esteve lá uns minutos e logo voltou, entrando rapidamente no carro, porque à medida que o tempo passava, mais frio ficava. E então(?), perguntei. Oh, ainda falta, disse ele. Vai no número tal. O número tal era evidentemente o meu. Ele achou graça e claro, achou que era por acaso. Mas não, não era por acaso, disse-lhe eu, fazendo-o rir, por achar que eu estava a gracejar com ele. E lá ficamos novamente ligados nos telemóveis, até que passado mais algum tempo lhe pedi que fosse outra vez ver. E novamente fizemos a aposta. Ele disse um número e eu outro. E rindo lá foi ele, feito criança, conferir a chamada. E logo em seguida voltou, dizendo que mais uma vez eu tinha acertado, certíssimo de que mais uma vez não passava de uma curiosíssima coincidência. Expliquei-lhe que não era uma simples coincidência, mas ele ria e gozava-me por acreditar nisso. Paciência! Também não tinha, nem tenho interesse em convencer ninguém do contrário.

Voltando à sua ida ao Bangladesh, eu tinha acabado de lhe dar a informação precisa, ou não, porque não percebia muito bem porque razão lhe tinha dito “Outubro” e depois de alguns segundos tinha passado para Novembro, mais precisamente meados de Novembro, em que estariam “todos” cá. Não, não me parecia fazer muito sentido. Mas… já aprendi a não me questionar por estas coisas porque, é o que é. É esperar para ver.

E o ano novo entrou e o calendário foi passando os meses, um por um, com seus dias, horas minutos e segundos, até ao dia em que ele veio ter comigo todo contentinho, dizendo que já podia ir ao Bangladesh(!)... Agora era só pedir o visto e queria, porque queria, que eu fosse com ele. Muito gostaria de ter ido, mas, primeiro a pandemia por todo o lado e segundo aquilo era um momento dele, só dele, porque há três anos que lá não ia. Estávamos em pleno Verão, mês de Agosto. Mas agora ainda teria que ter o visto para ele e para a família e isso não era fácil e também levava o seu tempo. Era preciso continuar a esperar. E eu voltava a dizer-lhe que até ao final do ano viriam. Ele não se ria, mas os olhos dele sorriam, pensativo e desejoso de acreditar naquilo. Eu própria já nem acreditava muito no que tinha dito. A força que tinha tido na altura em que lhe disse já tinha desaparecido. A única coisa que restava era continuar a esperar.

A vida prosseguia com todas as suas dificuldades e um belo dia lá veio ele com a notícia de que já tinha os vistos! Agora era mesmo só marcar as passagens. Estávamos em Setembro, mas ele precisava de mais uns dias, pois queria mais um dinheiro e tinha muitas compras para fazer. A família no Bangaladesh reclamava muita coisa de Portugal e ele não queria decepcionar ninguém. Nesta altura eu limitava-me a estar atenta ao natural desenvolvimento dos acontecimentos e das suas decisões, lembrando-o apenas de que as coisas eram favoráveis e que de repente tudo podia desmoronar, em função da pandemia. Ele percebia, mas precisava de mais um tempo. Até que chegou finalmente o dia em que me pediu para ir com ele comprar as passagens. E lá fomos, embora o tenha deixado sozinho a tratar do assunto. Quando acabou e veio ter comigo estava muito contente, com um ar feliz, com a passagem de ida marcada para o dia oito de Outubro e o regresso com a família para dezoito do mesmo mês. Tudo encaixava. Só não encaixava o facto de eu ter dito que em segunda mão, que em Novembro estariam cá “todos”. Só isso era estranho. A que propósito?

E o dia oito chegou, não sem antes termos percorrido os centros comerciais à procura de coisas que queria comprar para levar e onde gastou uma pipa de massa. Mas o dinheiro era dele, ele é que sabia, e as malas eram mais que muitas e foi preciso pagar bastante dinheiro pelo excesso de bagagem, o que em nada o incomodou. Acho que ele achava que aquilo não estava a acontecer, que era apenas um sonho. E assim Humayen seguiu mais a pesada bagagem rumo ao seu destino: Bangladesh.

A viagem chata e longa demais correu normalmente, chegou bem e toda a família chorou lágrimas de emoção, o que já era de se esperar. Ele telefonava-me quando tinha rede, para dar notícias e me tranquilizar, até que se aproximou a data de regresso, dia dezoito de Outubro. Foi então que o inesperado e de todo inusitado aconteceu.  

Dezasseis de Outubro, o meu telemóvel tocou e peguei nele para atender a chamada em vídeo do Bangladesh. Com imensas dificuldades na ligação, Humayen falava-me quase a gritar, chateado até mais não, completamente alterado, o que não é nada seu hábito. A mulher, Moon, estava impossibilitada de viajar. Os testes obrigatórios ao Covid para embarcarem para Portugal tinha dado positivo e apenas o dela. Humayen estava de todo inconsolável. De repente parecia que todo o trabalho tinha sido em vão, porque não havia nada a fazer. No dia seguinte, impreterivelmente, ele viajaria para Portugal, pois os negócios assim o exigiam. Não havia a menor possibilidade de prolongar a sua estadia. Ela viria depois, quando voltasse a fazer o teste e estivesse negativo. Viajaria sozinha com o menino.  Todos de rastos com esta notícia, incluindo eu, que fiquei sem fala, sem saber o que dizer.

E mais uma vez parecia que as coisas não faziam sentido. Eu não conseguia perceber esta realidade, mas compreendia o sucedido. Foram tantas festas, tantos ajuntamentos, que deu no que deu, apesar de só ela ficar positiva.

Humayen regressou, chateado e frustado, tentando resignar-se com a situação. Aos poucos retomou os seus negócios, tendo a minha ajuda no que era possível, pois o fuso horário tinha mexido muito com ele. Além disso, já não estava habituado com aquele calor insuportável, como ele próprio referia e tudo no Bangladesh já estava um pouco no passado. Os dias passavam e catorze dias depois Moon repetiu o teste, desta vez negativo. A alegria voltou, mas agora sobrepunha-se outra preocupação. Como ela viria sozinha com o menino, numa viagem de longo percurso, com escala no Dubai por oito horas e sem experiência nenhuma de viajar!? Era muito complicado. Até eu estava pensativa com aquilo. Foi então que Humayen veio ter comigo para se aconselhar, com a possibilidade de voltar ao Bangladesh para apenas pegar a mulher e logo voltar. Seriam cinco dias apenas. Claro, parecia-me o mais sensato e não só a mim, mas a toda a família no Bangladesh. Era uma grande estafa para ele, mas parecia a coisa certa a fazer. E a decisão foi tomada. Assim, no dia seis de Novembro, seguiu uma segunda vez rumo ao Bangladesh. Desta vez sem bagagem. Apenas o indispensável. E no dia doze de Novembro os três desembarcavam no aeroporto da Portela, em Lisboa, para uma nova vida, a vida a que tinham direito.

Enquanto esperava que saíssem do aeroporto para os levar a casa, comecei a pensar que estávamos praticamente em meados de Novembro. E de repente lembrei-me da minha previsão: “Outubro… Novembro, sim, meados de Novembro e estão todos cá”. Com efeito ele tinha ido em Outubro. Mas foi Novembro que os trouxe juntos e em definitivo, saídos do túnel do tempo…