domingo, 8 de outubro de 2023

Um sonho - 113

Ju(ventino) tinha um sonho: ir ao Canadá acompanhado e não sozinho, como sempre fizera a vida inteira, por não ter a companhia certa, a companhia desejada. A irmã, dois anos mais nova, casada, vivia no Canadá com o marido e os filhos. Por esta altura, já eram emigrantes há cerca de vinte anos, onde tinham uma vida razoável. Ambos trabalhavam e estavam perfeitamente adaptados à sua rotina, no país que tinham escolhido. Ju, todos os anos tirava férias para ir ver a família. Naquele ano tinha decidido que não iria mais sozinho. Na verdade, estava cansado de sempre ter sido visto como um solteirão, sem uma apreciada companhia feminina, o que fazia com que permanentemente o interrogassem sobre a sua vida privada, deixando-o sempre desconfortável.

Quando a Rádio se juntou à RTP, apareceu uma nova imagem da empresa, com caras novas, novos colegas e muitos conhecimentos se fizeram. Um ano depois de me ter mudado, porque a minha Direção foi a última, um dia, vi a figura entrar pelo open space dentro. Tinha um ar um pouco estranho, não posso negar. Um ar difícil de definir porque, por um lado, um aspeto intelectualizado, talvez pelos óculos demasiado pesados, de lentes muito grossas, por outro, parecia um pouco alucinado. E ambas as coisas me confundiram, impedindo-me de traçar um perfil exato.

Deixei que saísse e perguntei à colega com quem foi falar, e que era o seu apoio administrativo, quem era, apenas porque nunca o tinha visto, o que era natural. Afinal, era tanta gente nova, que muito provavelmente não chegaria a conhecer muitos deles, como não conhecia toda a gente da RTP. Respondendo à minha pergunta sobre o colega, ela disse-me quem era, o que fazia e pouco mais. Para meu grande espanto ou talvez nem tanto, nunca tinha casado e, em princípio, vivia sozinho. Um solteirão veterano, com cinquenta e quatro anos.

Cerca de uma semana mais tarde, Ju, voltou ao lugar. Pensei para comigo mesma que nunca na vida tinha visto aquele sujeito e, agora, em tão pouco tempo, era a segunda vez que ali vinha. Percebi que aquela criatura me intrigava por demais. Ele era estranho, sem dúvida. Mas o que é isso? Há tanta gente estranha! Quem sabe se algum vez não me acharam estranha a mim, que acho que sou uma pessoa normalíssima!? É tudo muito relativo. E desta vez falou com outra colega, também da Rádio. Aproveitei para me aproximar e logo ela tentou despachá-lo para mim, por ser eu a secretária da Direção.

Ju, não ficou indiferente, tendo mostrado um certo interesse na minha pessoa, a colega nova, que ele também não conhecia. Apercebendo-se disso, depois da sua saída, as colegas da Rádio vieram falar comigo, alertando-me de que ele não era para mim, isto é, que eu merecia uma pessoa diferente e muito melhor. Fiquei intrigada, mas elas continuaram martelando, dizendo coisas nada abonatórias a seu favor e justificando o facto de nunca ter casado, com o seu mau feitio e as suas esquisitices. Em todo o caso, para mim, havia nele um pormenor importante: o facto de ser solteiro e sozinho. Eu também estava sozinha! Pelo menos, podíamos tentar uma aproximação e perceber como seria o nosso relacionamento, sem grandes consequências!? Porque não uma boa e nova amizade?

Começámos a falar um com o outro, aproveitando as questões de trabalho, depois combinando almoços aos fins de semana e, finalmente, a sair juntos para algumas coisas, até que chegou o dia em que ele ficou na minha casa. A partir daí, começou a ficar com mais frequência e só ia a casa quando tinha mesmo necessidade.

Ju, não era o homem mais bonito do mundo, nem o mais simpático, nem o mais inteligente, etc… mas era solteiro e isso era importante. Na faixa etária em que os encontrávamos, não era fácil encontrar pessoas sozinhas. Com o tempo, apesar de ele achar que eu tinha um bom feitio, que não implicava e para parafrasear as suas próprias palavras “era fácil viver comigo porque eu não chateava em nada”, pensei para comigo mesma, que era fácil enquanto ele deixasse, caso contrário, não seria mesmo nada fácil. Contudo, aprendi a lidar com o “machismo” dele, com a mania de que era o “melhor” dos profissionais no trabalho que fazia, pois exagerava e muito na sua performance, apenas para se convencer de que os outros o achavam o máximo dos máximos.

O problema é que a opinião dos outros era o oposto do que ele idealizava. Uma das coisas de que me avisaram sobre a sua pessoa, é que ele bebia e não era pouco. E muitas outras coisas, definindo-o assim como doido, maluco, enfim… nada abonatório. E toda a gente queria que me afastasse dele, por causa de tudo o que ele representava. Em todo o caso, verdade seja dita, eu não tinha do que me queixar. Os defeitos dele eu conseguia ultrapassar e nunca deixei de ser eu mesma com ninguém, portanto, isso não iria acontecer com ele.

Voltemos ao sonho. Todos temos sonhos. Todos temos sempre algum desejo secreto ou não, que alimentamos nas profundezas do nosso ser, tornando-se um sonho. E como já disse, o sonho de Ju era uma companheira que viajasse com ele até ao Canadá, para não ir sozinho, e poder apresentar à família, como uma pessoa com potencial para um eventual futuro. Por isso, logo nas primeiras conversas, veio à baila o assunto “férias”, com o programa viagem ao Canadá. Estava implícito no seu discurso, que ele queria muito que eu fosse com ele. Até se propunha pagar-me a passagem, coisa que eu logo descartei por completo. Já íamos ficar em casa da família, pelo que não pagávamos alojamento nem alimentação, o que era ótimo, portanto, jamais eu deixaria que ele me pagasse a passagem.

O facto é que concordei em ir. Nunca na vida tinha pensado ir ao Canadá. Mas o que já viajei por esse mundo fora, foi muito mais o que teve de ser, do que o determinado por mim. As coisas vêm, proporcionam-se e é esse o caminho. Portanto, uma vez mais, o destino abria uma porta desconhecida. E coisas assim eu sempre considerei um presente, um presente da vida. Porque negar? Não fazia o menor sentido. E assim foi.

A viagem ao Canadá foi muito boa. Sem dúvida, enriqueceu o meu conhecimento, o meu património cultural, a minha pessoa e diverti-me bastante. Eu estava mais completa, por assim dizer. E não posso negar que Ju foi impecável comigo, preocupando-se em me mostrar isto e aquilo, levando-me a todos os lugares que ele achava importante, etc. A família e os amigos acolheram-me muito bem e todos manifestaram o seu agrado na minha ligação com ele. Ainda que a irmã não escondesse de mim todas as suas dúvidas, o que não deixei de agradecer, porque tinha consciência de que o irmão era um pouco “doido” e sempre seria. Mas isso era uma decisão minha e só a mim cabia julgar. E por enquanto não tinha do que reclamar. Por enquanto, sim… por enquanto.

De regresso a Portugal, as coisas mudaram. Melhor dizendo, tudo mudou. Não me vou alongar com os pormenores, mas tudo virou de cabeça para baixo. Foi então que, aquele Ju(ventino) de que todos me falavam na empresa e que a irmã no Canadá reforçou, veio ao de cima. O comportamento dele alterou-se e deu uma volta de cento e oitenta graus. Começou a aparecer bêbado na minha casa. O feitio dele começou a ser insuportável, até que uma noite pirou de vez. De tal modo, que fiquei bastante assustada e me fez pensar que assim não. Não mesmo. Eu não ia aturar cenas daquelas a ninguém. Ele já tinha realizado o seu sonho e eu não precisava de um homem como ele. Não havia nada de bom. A cabeça batia mal de todas as maneiras. E assim, fui obrigada a pôr um fim àquele episódio. Tinha vivido com ele sete meses, que tinham sido muito bem aproveitados. Estava na hora de terminar.

As nossas vidas continuaram com cada um para seu lado. De quando em vez, encontrávamo-nos de passagem na empresa, mas nem sequer havia assunto ou vontade de falar. Ele continuava com aquele ar alucinado de que todos me falavam. E percebi que realmente ele me tinha escolhido para ir com ele ao Canadá e por isso me mostrara o melhor dele. Só isso. Tudo bem.

Doze anos passaram. Eu já estava reformada havia dez anos. Um dia, ao fim da tarde, sentindo-me um pouco cansada, deitei-me no sofá, a fim de fechar os olhos e relaxar um pouco. Tive um sono muito, muito superficial, em que dormia e acordava, dormia e acordava. Mas estava confortável. De repente, uma vez mais, fechei os olhos. Mas então, comecei a sentir um mal-estar, que rapidamente foi aumentando. Uma energia muito ruim tinha-se apoderado de mim, sem que eu a conseguisse expulsar. Um frio de morte percorreu todo o meu corpo, que gelou por completo. Sem entender porquê, senti realmente a presença da morte. Mas eu sabia que não ia morrer. Aquela morte não era minha, mas era a anunciação de uma morte. Foi horrível. Nunca tinha tido uma sensação daquelas. Naquele preciso momento, fiquei a saber que alguém, relativamente próximo, ou do meu conhecimento, tinha partido. E como fora ruim! Uma coisa muito má. Horrível de descrever. Mas era a morte, sem sombra de dúvidas. Isso eu sabia. Depois de ter percorrido todos os cantos do meu corpo, passou, deixando-me finalmente liberta. Alguém, naquele preciso momento, tinha sido levado pela morte. Quem seria?...

Dois dias depois eu estava ao telefone, falando com uma amiga, que mantinha contacto com colegas que ainda estavam na empresa. Sabes quem morreu?... Perguntei:  quando?

Ju(ventino) tinha partido naquele exacto momento em que senti a energia da morte percorrer todo o meu corpo.

Apesar de tudo, eu tinha tido alguma importância na sua vida. Eu tinha realizado o seu sonho. 


quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Dezoito - 112

 

Andar nos supermercados nem sempre é fácil. Uns vão para fazer compras, outros parece que vão passear. Uns levam uma listinha, mas outros nem por isso. E depois levam o que nem precisavam e o que realmente era preciso não chega a casa. No meio disto tudo acho interessante olhar para os carros e respetivos “donos”. Tem tudo a ver. Normalmente, os mais gordinhos são os que levam os carros recheados de tudo o que não deviam. Quantas vezes me dá vontade de chegar perto e perguntar se não tem vergonha de levar as porcarias que leva, não tendo em conta a saúde. Mas cada um tem o direito às suas escolhas, porque não?! E quanto maior é o supermercado maior é a canseira.

Por regra, vou sempre ao mesmo supermercado, mas às vezes vou a outro, porque não encontrei o que queria ou porque quero uma coisa diferente. Por exemplo, gosto muito do pão de alfarroba, além de que alfarroba é bom para o fígado. E, apesar de raramente comer pão, quando me apetece, é o pão de alfarroba que tenho de comprar. Não há no meu supermercado habitual. Só há num a que raramente vou. Portanto, quando quero, vou lá propositadamente, o que é um pouco estranho, ir a um espaço tão grande só por causa disso. Mas vou.

Um dia, estando numa fase dessas, lá fui ao Continente, para apenas comprar o pão de alfarroba. Claro que sempre invento mais qualquer coisa, só por vergonha. Todos os outros vêm com os carros cheios e eu com um pão na mão!? Aproveito para trazer uma salada diferente, uma aveia também diferente da habitual, com a desculpa de que é bom variar, etc… e depois de escolhidas as compras, dirigi-me para a fila da caixa, a fim de pagar e sair dali para fora.

As caixas são numeradas e é preciso ficar na fila para chegar a vez de cada um. Chegada a vez, temos de nos dirigir para a caixa correspondente à chamada. Portanto, lá fui eu para a fila, com umas quantas pessoas à minha frente, aguardando vez. Enquanto estou na fila, que aos poucos vai avançando, vou dando uma olhadela para as pessoas e respetivas compras e fazendo as minhas silenciosas observações e considerações, achando que aquilo sim, aquilo não, como se alguém estivesse a dar importância ao meu pensamento.

E foi aí que aconteceu uma coisa interessante. Ou talvez não. Dependendo de cada um. Aquilo a que alguns chamam simplesmente de coincidência, para mim, não deixando de ser uma coincidência, tem muito mais do que isso. Não é uma coisa vã, passageira, do momento. É muito, mesmo muito relevante. As coincidências. Sempre as coincidências, que nos deixam a pensar se se trata de uma coisa sem importância ou se, pelo contrário, tem realmente importância, porque é muito mais do que uma coincidência.  E o que seria mais do que isso? Capacidades das quais não temos conhecimento e que nem sonhamos ter?!

Um cérebro que foi feito para ser muito maior do que o uso que até hoje lhe damos. Claro que se a coincidência não for devidamente evidenciada e levada em conta, não serviu de nada e cai por terra, desfazendo-se na poeira global. E aí passou, talvez, uma grande oportunidade de nos defrontarmos com o que não sabemos, com o que desconhecemos.  E se não mudarmos a nossa atitude em relação a isso, isso e outras coisas ainda mais importantes, nunca serão direcionadas para o mundo a que pertencem.

Ah, mas não sabemos nada disso, nunca ninguém nos falou disso… etc. Cabe a cada um de nós lá chegar, sem o empurrão de ninguém. Trata-se da evolução individual da espiritualidade, um mundo que nos liga a outra dimensão mais elevada do que esta que temos atualmente. Que existe e está há séculos ou milénios, para não dizer, desde sempre, à nossa espera e para o qual, sempre teimamos em fechar os olhos. É um deslumbramento a que parece que fazemos questão de não querer assistir. Porque temos medo, insegurança e nos tira da nossa zona de conforto. Teimamos em continuar parados, fazendo todos o mesmo caminho. Mas esse caminho é já muito velho e, embora muito gasto, ninguém se quer desviar dele.

E assim, dia após dia, hora após hora, continuamos a mentir, cada um a si mesmo, para não sermos perturbados pela nossa consciência que, contudo, não deixa de, continuamente, apelar ao seu deus, quem quer que ele seja, onde quer que ele esteja ou exista, para ser feliz, e isto e aquilo. E das coisas mais importantes do ser humano a “independência”, onde fica ela no meio disto tudo? A independência que revela ou desmascara a real natureza o “homem”, porque perdeu a sua liberdade e não a consegue recuperar. Em cada coincidência há o censor da grandiosidade do ser humano que pode muito bem começar nas pequeníssimas coisas.

Eu estava na fila e já só tinha duas pessoas à minha frente. Pensei, só mais dois números e depois eu, que número será? Dezoito, veio à minha cabeça. Disparate, pensei, sei lá que número é, e depois o que é que isso interessa? Pus-me a olhar para um lado e para o outro, para dispersar as minhas habituais parvoíces. Ouvi chamar vinte e tal. E a pessoa da frente seguiu em direção à respetiva caixa. Passado um bocadinho, novamente vinte e qualquer coisa. Posicionei-me no lugar certo para a próxima chamada que seria eu. Neste entretanto, ainda pensei, mas o dezoito existe, não existe?! Se estão a chamar vinte e tal! E de novo, em pensamento, ralhei comigo mesma, por continuar a dar crédito a uma coisa que não tinha ponta por onde se pegar, pois qualquer número serviria para apenas poder chegar à caixa e pagar.

E finalmente, a chamada veio, dando resposta ao meu dilema e mostrando-me, uma vez mais, que este tipo de coisas acontece por uma razão muito simples. É quando a mente entra pelo tempo dentro, a caminho do futuro, longe ou perto, não interessa. Ali foram apenas uns minutos. Mas muito ou pouco, ela entra na linha do tempo, avançando o necessário até onde está a resposta, para imediatamente voltar à posição do aqui e agora. E assim, para minha grande surpresa, mas nem tanto, porque eu sabia que não era uma simples coincidência, o número de chamada aparecia no écran, ao mesmo tempo que uma voz dizia: dezoito.


quinta-feira, 8 de junho de 2023

O cão - 111

 

O cão ladrava, ladrava, ladrava… o que não era usual. Regra geral, os cães iam para ali bem tranquilos. Eu até ficava espantada com o comportamento deles. Muitas vezes, os donos ficavam, outras vezes, não. Iam-se embora para virem mais tarde buscá-los. E dum modo geram, todos se comportavam espantosamente bem. Quietinhos! Alguns até parecia que se deliciavam em estar ali.

A jovem tratadora era uma garota muito dedicada ao seu trabalho e o spa estava sempre muito bem cuidado. Os cães chegavam com os seus donos, levados pela trela, entravam, alguns com o rabo a abanar, e ali ficavam. Às vezes até tinham que aguardar a sua vez, porque ainda estava outro a acabar, mas nem por isso se chateavam. Eram pacientes. E os donos ficavam sentados a apreciar ou iam à sua vida.

Algumas vezes me detive a apreciar, espantada com o facto de eles ficarem quietos, sem se manifestarem, sem medo, sem ladrarem e sem estranharem por serem entregues a outra pessoa, e nunca vi nenhum cão reagir. Eles sempre obedeciam à garota que trata deles e o facto de os donos se irem embora ou ficarem, não os perturba nada, independentemente do que vão fazer.

A loja é toda envidraçada e vê-se tudo o que lá se passa. Às vezes as crianças estão por ali a brincar e ficam encantadas a ver o cão a ser tratado com todo o cuidado. Eles cortam o pelo, tomam banho, vão à secadora, são muito bem escovados e sei lá o que mais. No meio de tudo isto, fico admirada com a submissão deles ao que lhes fazem.

Um dia destes, porém, a situação foi diferente. Quando saí a porta do prédio, ouvi ladrar. Um ladrar forte e insistente. Parecia que o cão dizia: “não quero estar aqui, não quero, não quero, tirem-me daqui” … e fui atraída pela inquietação do animal, que reagia sob forte tensão. Percebi que estava sozinho, sem dono ou dona. A jovem do spa falava com ele enquanto o tosquiava e falava bem alto, ralhando e dando-lhe ordens para que se aquietasse, mas não tinha sucesso e o cão continuava a manifestar-se contrariado.

Não posso dizer que me incomodou muito, mas fiquei curiosa. Se fosse uma criança a chorar ou a gritar, isso sim, ter-me-ia incomodado bastante, mas um animal é diferente, até porque não sou amante de cães, especialmente se não os conheço. Nesse caso até prefiro distância. Incomodou-me mais, a garota estar a aguentar aquilo, porque o cão estava mesmo desassossegado de todo, sem obedecer às ordens dela, que estava com ar chateado.

Então, aproximei-me para apreciar ou perceber melhor, a situação embaraçosa que estava a acontecer por dentro dos vidros da loja e em vez de me ir embora, decidi tomar as rédeas da situação. Dobrando a esquina, dei a volta à loja para ficar de frente para o cão. A menina estava de costas, pelo que não se apercebeu de nada, o que foi bem melhor para mim. E agora estávamos bem de frente um para o outro, separados apenas pelo vidro.

Aí, olhei bem nos olhos dele, deixando-o igualmente fixar-se nos meus olhos. Os animais reagem melhor que os humanos à linguagem telepática, porque é assim que se comunicam entre si. Os humanos, porém, há muito que perderam, ou simplesmente esqueceram essa essa faculdade. Dessa maneira, ficámos os dois, somente os dois, olhos nos olhos. E imediatamente a minha ordem foi enviada. Mentalmente, dizia-lhe: “calou, calou, não ladra mais”. Ele fez um ar de surpresa, como quem diz “quem és tu(?) …, mas sem ladrar. Todavia percebi que estava prestes a continuar a fazê-lo e como isso não podia acontecer de jeito nenhum, ergui a minha mão direita, esticando o dedo indicador que estava apontado para ele, enquanto os nossos olhos continuavam completamente fitos um no outro. O cão, apercebendo-se de que estava a receber uma energia diferente, abria o focinho na tentativa de contrariar aquilo que o estava a travar e a impedir de ladrar, mas logo o fechava. E assim ficou alguns segundos, abrindo e fechando, sustendo o ar, reprimindo o fôlego, enquanto eu continuava olhando fixamente nos olhos dele, mantendo tão firme quanto possível, o dedo apontado, enviando a ordem: “calou, não ladra mais, não, não, não” …

Eu sabia que o cão tinha captado aquela energia que era superior à vontade dele e que o deixou completamente hipnotizado, sem conseguir fazer aquilo que lhe apetecia e que, até antes de eu aparecer, tinha feito: ladrar, ladrar, ladrar. Mas ele também sabia que aquela energia era mais forte do que ele. Não teve medo. Apenas não conseguiu rejeitar. E eu segurava com todas as minhas forças, canalizando e segurando cada vez mais, a cada respiração, a cada segundo, a cada milésima de segundo, aquela energia vinda do campo holístico, que me permitia uma voz de comando superior à dele e que só ele conseguia ouvir. Ao mesmo tempo, ouvia o meu inconsciente dizendo: “tu consegues, tu consegues, não pares, continua e nem por um instante duvides, caso contrário tudo vai falhar”.

Mas isso eu sabia. Tinha a certeza absoluta de que, à menor possibilidade de dúvida, nunca mais iria dar certo, porque esse é o segredo. A vontade é soberana, sim, mas apenas e somente, quando se faz cem por cento presente, sendo que para isso não pode haver a menor dúvida.

O cão deixou de ladrar, manteve-se calado, normalizou a respiração ofegante e entrecortada. E deixou de ladrar assim que fixei os meus olhos nos dele. Parou imediatamente, sem conseguir ladrar nem mais uma única vez. Ainda fiquei um pouco, observando, mas agora com a certeza absoluta de que ele não iria ladrar mais, por aquele motivo.

Afastei-me em direcção ao carro, para ir fazer o que me tinha tirado de casa e o silêncio reinou, com um cão muito bem-comportado, deixando de importunar a pessoa que estava a cuidar dele.

O recado estava dado.


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Intuição - 110

 

Já de saída, apressei-me a ver a notificação acabada de chegar ainda antes de sair, pois nunca se sabe o que pode ser importante ou não. Pego no telemóvel e vejo uma mensagem do meu querido e amado filho, como anónima, isto é, num número que não era o dele, dizendo apenas que aquele era o novo número dele. Sem pensar muito, mas já pensando alguma coisa, não apaguei o anterior, limitando-me a acrescentar o “novo”. E saí, porque ia almoçar com um colega da Universidade Sénior e não o queria fazer esperar, uma vez que ele já estava com o carro à minha porta.

Fomos almoçar num restaurante muito perto, mas como ele naquela altura estava com algumas dificuldades de locomoção, não podia andar a pé, a não ser o absolutamente necessário. Além de que, logo a seguir ao almoço tinha que ir à fisioterapia. Entrei no carro e, pouco depois, estávamos a estacionar mesmo ao pé do restaurante. Saímos do carro, vi se ele precisava de ajuda e dirigimo-nos à esplanada, porque estava um belo dia de inverno e era bom apanhar um pouco de sol, ainda que de baixo do toldo.

Depois de estarmos sentados e já termos escolhido a ementa, enquanto aguardávamos pela comida, o meu telemóvel tocou. Pedi-lhe licença para atender e quando desliguei a chamada que tinha terminado, lembrei-me da mensagem que tinha recebido do meu filho. Olhando e relendo novamente, a minha intuição começou a dar sinal de alarme. Comecei a pensar naquilo que estava escrito, a pensar no meu filho e ainda que, aparentemente, não fosse nada esquisito, havia alguma coisa que não me parecia certo, porque era e não era.

Achando que eu estava apreensiva, o Luís perguntou se estava tudo bem. Levei algum tempo para lhe responder, mas acabei dizendo que tinha recebido uma mensagem do meu filho e que me parecia estranha. Estranha porquê, perguntou ele. Eu já sabia que essa seria a reacção dele. E o pior é que o conteúdo, para qualquer pessoa, não diria nada. Mas eu era a mãe! Li em voz alta, ao que ele respondeu que era tudo normal, não vendo nada de estranho e, portanto, eu estava numa atitude de negação. Pois é. O problema era mesmo esse, ou seja, era demasiado normal. Eu conheço o meu filho. Conheço-o como ninguém. E continuei dizendo-lhe que, para mim, era quase certo que alguém se estava a fazer passar por ele. Claro que uma vez mais ele reagiu com críticas à minha opinião, rindo de gozo e de escárnio, descartando por completo o que tinha acabado de lhe dizer. A atitude dele era como se me estivesse a chamar de tola, de idiota ou sei lá o quê.

Por aquela altura eu andava um pouco perdida, é verdade, e de vez em quando trocávamos ideias por telefone. Ele sabia do momento complicado por que eu estava a passar e então justificou-se com esse motivo, que eu tinha que ter uma atitude ou uma postura mais positiva perante a vida, como sempre tivera, como ele me tinha conhecido. A fragilidade em que me encontrava não combinava comigo, ia explicando ele e divagando, também. Mas eu sabia que uma coisa não tinha nada que ver com a outra. Eram coisas perfeitamente distintas. O almoço foi correndo e tirando isso, em todos os outros assuntos nos entendíamos. Só ali, a coisa não tinha mesmo como funcionar. Provavelmente, se fosse com qualquer outra pessoa, teria o mesmo resultado. Faltavam-me as bases para comprovar o que, embora não tivesse como comprovar, comprovado estava para mim. Mas só para mim. E isso chegava-me.

Acabado o almoço, veio outra mensagem. Aí, ele já estava muito excitado, e à espera que lhe dissesse, olha, afinal tens toda a razão. É o meu filho. Só que não. A mensagem dizia que ele estava com o telemóvel avariado e só no dia seguinte o teria novamente, pelo que aquele era um provisório. E o Luís, perfeitamente convencido do que estava a dizer, dizia-me que era perfeitamente razoável e que podia acontecer a qualquer pessoa. Sim, podia, mas não a ele, o meu filho. Além disso, ali já havia uma contradição. Primeiro tinha dito que tinha um número novo. Agora já dizia que era apenas provisório. Mas eu nem precisava de tanto. Claro que aquela situação podia acontecer a qualquer um. A qualquer um, mas nunca ao meu filho. A relação dele com as tecnologias informáticas, mais precisamente na área da “segurança”, tinham-no elevado a um patamar dificilmente compatível com fosse quem fosse. Mas isso os outros não tinham que saber. Eu sabia. Logo, aquela pequena contradição do telemóvel avariado e do número provisório, queria dizer exactamente o que eu já tinha suspeitado desde o primeiro instante.

Acabado o almoço, ele deixou-me em casa e cada um foi à sua vida. Já em casa, relembrava a reacção do Luís, e mais, a estranheza dele em não haver resposta da minha parte àquelas mensagens que ele acreditava piamente serem do meu filho. Responder o quê, se eu tinha a certeza de que não era ele? Ah, e se não fosse, isto é, se eu estivesse enganada e fosse realmente ele? Pois bem… nem aquelas mensagens exigiam uma resposta, nem eu iria arriscar entrar em contacto com “aquilo”, pelo menos por enquanto. Eu não sabia que raio de emboscada era aquela. Porque, não sendo o meu filho, alguma coisa muito estranha estaria por trás daquilo. Já vi muita gente meter-se em sarilhos com coisas do género. Portanto, as coisas ficariam por aí mesmo.

Um pouco cansada da cabeça, deitei-me preguiçosamente no sofá da sala, ouvindo o som da televisão. Daí a uma hora teria uma consulta, portanto, não podia correr o risco de adormecer e a páginas tantas o telemóvel dava sinal de mais uma mensagem. O que seria agora? Mais uma mensagem do meu falso filho que, sem mais nem menos me pergunta o que é que estou a fazer. Pensei, pensei e decidi dar resposta, para ver se descortinava qualquer coisa daquela treta. Respondi então se precisava de alguma coisa. A resposta não se fez esperar, respondendo afirmativamente. Perguntei o que queria. Precisava de fazer uma transferência bancária “avultada” até ao final do dia, sem falta, mas como estava sem o telemóvel dele, não tinha a aplicação para isso. Ele dava-me os dados para eu a fazer por ele e logo no dia seguinte ele faria o pagamento à minha pessoa.

Estava bem feito. Isso eu tinha que reconhecer. Um filho em dificuldades! Qual é a mãe que não ajuda? Só que aquela mãe não era eu, como aquele filho não era o meu. Jamais o meu filho me pediria dinheiro. Jamais! Primeiro, porque ele tem muito dinheiro e eu não. Segundo, porque, se eventualmente ele precisasse, era certo que pediria ao pai. Esse sim, tem dinheiro. Jamais a mim. Mas isto também ninguém tem que saber. Eu sabia. Além de que, de certeza absoluta, ele teria outros recursos para resolver o problema, sem aquela lengalenga toda, o que era o mais importante de tudo.

Não dei mais resposta e encerrei o assunto, porque sim, e porque também estava na hora de ir para a consulta que tinha. Entrei no carro e liguei para a minha norinha que me atendeu logo o telefone. Perguntei-lhe se o Henrique tinha um número novo. Estranhando a minha pergunta, respondeu que não fazia ideia do que eu estava a perguntar. Logo, o Henrique não tinha nada um telemóvel com um número provisório e coisa e tal. De seguida liguei para o meu filho, que não atendeu a minha chamada. Mais ou menos a meio do caminho o telemóvel chama. Era o meu filhote, dizendo que estava numa reunião e não tinha podido atender. Perguntei se ele estava com problemas no telemóvel e se por acaso tinha um número provisório. Não. Disse-lhe que estava a receber mensagens de alguém a passar-se por ele e tudo o resto. Pediu-me o número e assim que pude parei o carro para lhe responder. Passado um pouco voltou a ligar, dizendo que o número não estava atribuído e que simplesmente apagasse tudo o que tinha recebido.

Quando, à noite, decidi ligar ao Luís, ele não queria acreditar. O maior espanto dele era o facto de, desde a primeira hora, desde o primeiro instante, eu ter percebido isso, porque ele realmente achava que não tinha como. Estava perplexo e embasbacado. Praticamente, sem palavras. Mas também não precisava mesmo porque, aqui, a única palavra certa, que encaixava e que resumia e definia tudo, tudinho, era uma só: intuição.


sábado, 25 de março de 2023

A Lua e o Sol - 109

Oh!... Azar. Pior do que isso. Que teria acontecido? Como foi que aconteceu?! Onde?... Não me lembrava de quando teria sido a última vez que estava com os dois. A lua estava lá. A estrela (o sol), fora-se. E com isso, uma nuvem um pouco pesada e um pouco escura, abatera-se sobre mim. Não que fosse uma coisa de valor, porque de valor não tinha nada. Mas eu gostava tanto deles, apenas por serem pequenos, discretos e pelo que representavam. Uma lua e uma estrela. Eu adorava aquele conjunto e ainda por cima dava com quase todas as minhas indumentárias. Eram perfeitos para todos os dias, todas as ocasiões e na fase em que me encontrava, deprimida e sem ânimo para nada, pelo menos, não tinha que pensar todo o santo dia nos brincos que iria usar.

Pronto. Agora não havia nada a fazer. Não adiantava pensar mais naquilo, porque a minha estrela não ia aparecer… apenas e somente por um grande acaso que, para ser bem realista, era certo que seria impossível. Mesmo sabendo onde e quando, já assim seria difícil, quanto mais não tendo a menor ideia. Tanto podia ter ficado presa numa qualquer peça de roupa, como podia simplesmente ter caído, num toque de cabelo, num cumprimentar alguém... enfim, fora-se. Até podia estar no chão do carro, enfiada em qualquer lado, debaixo dum tapete. Impossível reaver.

Ultimamente a vida não estava fácil. Nada de muito grave, mas muitas coisas, umas pequenas, outras nem por isso, eu só sabia que me sentia ir por água a baixo. Tinha plena noção disso e não sabia o que fazer para alterar o padrão. Os setenta anos tinham-me trazido uma certa angústia. A angústia do tempo. Do tempo passado e do que eventualmente estivesse ainda por vir. Parecia que o presente não existia.

Sobre o futuro ninguém sabe. Desde que nascemos, ninguém sabe o tempo que tem pela frente. E se às vezes eu pensava, pelo menos setenta já cá cantam, por outro lado, pensava também, que a cada dia, o tempo encurtava, encurtava… mas isso é assim para todo o ser. Humanos, animais, plantas… todos estamos sob a mesma condição universal.

Parecia que a vida não tinha mais nada de “bom” para me oferecer. Parecia que já tinha cumprido todas as missões, vivido todos os amores. Sentia que todos os dias me afastava mais de todos os que me rodeavam, por minha própria vontade, porque da mesma maneira que não encontrava em mim nada mais que me encantasse, o mesmo via nos outros, isto é, nada. Tudo tinha a mesma repercussão, a mesma falta de interesse, a mesma desilusão e a sensação de que já não andava cá a fazer nada era muito forte.

É. Quando a cabeça começa a bater mal, não é fácil dar a volta. E o pior é que eu tinha a consciência de me ter deixado apanhar na armadilha e não ter feito nada por isso, no tempo certo. Estava bastante arrependida, o que não é normal em mim. Arrependimento é coisa que nunca combinou com a minha pessoa. Mas chega sempre uma primeira vez. Porque eu reconhecia que estava bem arrependida de não ter tomada as devidas providências. Agora parecia que era tarde demais. Parecia que não havia solução para sair do pesadelo em que me tinha metido. Nada me dava alento e só me apetecia desistir, desistir.

E agora, mais um pequeno aborrecimento que, não tendo a dimensão que eu lhe estava a dar, não deixava de me chatear de mais. Eu gostava muito daquele par de brincos. Eles combinavam bem demais comigo. A lua e o sol. Os dois lados da moeda. A noite e o dia. O negro e o branco. O céu e a terra. Masculino e feminino. Que chato! Não me conformava. Parecia uma criança. Mas eu queria o meu querido brinco. E usar só um, não fazia sentido. Eu queria a minha estrela. Paciência. Ela não voltaria, porque não tinha como. E eu estava a ser simplesmente parva e tinha que me libertar daquilo.

Os dias foram passando, passando e como não gosto de andar sem brincos, lá fui à minha caixa, escolher uns bem simples, para substituírem a lua e o sol, aceitando que aqueles já eram. E aos poucos fui fingindo não me importar com o facto, apenas porque não tinha outra solução. E ficava espantada comigo mesma, por me sentir tão chateada com uma coisa daquelas. Eu percebia que aquilo tinha um significado para mim e que era aí que residia o problema, mas, ainda assim, não podia ser uma justificação para me causar tanto pesar. Era um pouco ridículo.

O tempo continuou a passar e como tudo passa, passa mesmo, de uma maneira ou de outra… de repente, quando nada faria supor, sem entrar em pormenores, posso dizer com toda a verdade, que uma estrela de verdade, apareceu na minha vida. E não só apareceu, como foi entrando, entrando no meu dia a dia, de uma forma tão natural, que começou a preencher os meus pensamentos e até os meus projectos de vida.

Poderia dizer que foi um virar da página. Mas não. Foi muito mais do que isso. Foi o final de um interminável capítulo. Uma lufada de ar fresco, que não sabendo como, tinha chegado até mim, vinda lá das alturas, daquele lugar que ninguém sabe onde fica, nem como se chama, nem o que é, e onde ninguém chega. Mas veio e chegou até mim, à minha triste vida, iluminando o meu caminho, fazendo tudo ir ao seu lugar, abrindo janelas, portas, por onde o sol entrar. O sol! E foi então que uma vez mais me lembrei da minha estrela perdida para sempre.

Mas a estrela que tinha acabado de penetrar no meu conteúdo existencial era bem mais importante do que a outra, a do brinco, mas sem comparação, levando-me a pensar que agora já podia viver bem sem ela. A pessoa que tinha chegado e cruzado o meu destino era muito, mas muito importante. A cada momento que passava eu reconhecia isso e mais certeza disso eu tinha. Contudo… contudo, era um acontecimento tão inesperado e tão improvável que, ao mesmo tempo que era tão bom, me fazia ter dúvidas, dúvidas de todas as espécies. Chegou uma altura em que, se fosse possível ter dois pratos de balança, um com dúvidas, outro com certezas, estou certa de que eles se equilibrariam na perfeição. E então?

Os dias foram passando e dando espaço para as certezas, o que fez as dúvidas irem perdendo o seu potencial e a sua força. E mais uma vez me lembrei dos meus brincos, pois eles combinariam na perfeição com esta situação. Onde estaria a minha estrela? Que raio! Como era possível ter sumido sem eu ter dado por isso? Lamentei a minha teimosia em continuar a pensar naquilo. Apenas porque não me conformava em me ter separado, por assim dizer, da minha estrela, porque isso representava a invalidade da lua, que ficara sozinha, sem o seu sol.

Em contrapartida eu tinha encontrado uma estrela de verdade, uma estrela humana, o meu sol, de um brilho intenso, e não contava nada com isso, especialmente nesta fase da vida. No entanto, assim do nada, apareceu. E foi uma coisa muito louca, verdadeiramente surpreendente. Quase um milagre! A vida é uma caixinha de surpresas e não havia palavras para descrever a surpresa que foi ter encontrado a minha alma gémea. Algo que parecia impossível de todo.

Foi então que pensei que, se isto tinha sido possível, também o meu brinco poderia “ainda” aparecer, porque nalgum lado ele estaria. Perdido, sim, mas não desfeito, nem evaporado. E do campo holístico uma mensagem chegou até mim, dizendo, a tua pequena estrela vai aparecer. É certo. Fiquei nas nuvens! Como poderia? Onde? Quando? Já tinham passado umas boas semanas. A casa já tinha sido limpa tantas vezes. Talvez não fosse em casa. Mas onde poderia ser?!...

Dois dias depois, ao sentar-me no sofá, levantei-me para ajeitar a almofada. Quando me virei e puxei por ela, dei por algo que estava sorrateiramente a escorregar para o interior do sofá. Intrigada, meti a mão e com os dedos segui qualquer coisa que não percebia o que era.

A minha estrela não estivera perdida, nem por um instante. Ela estivera ali todo o tempo, silenciosa, mas bem pertinho, bem juntinho a mim. Era impensável. E o campo holístico continuava a enviar mensagem, dizendo: agora não tens mais por que duvidar da tua estrela maior, aquela que é e será o teu verdadeiro sol, porque te retornou tudo o que tinhas perdido de verdade e muito mais. Agora está tudo bem. A vida está de volta. E como, deus meu!...


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

A mensagem - 108

 

O céu estava com um fundo de azul suave e coberto de pinceladas de nuvens brancas, tortas, irregulares, que alternavam entre si, com a suavidade do fundo celestial.

Eu tinha-me recostado um pouco cansada, acabando por me deitar com a cabeça apoiada no braço do sofá em que estava, e depois esticar-me, saboreando o início de tarde calma e tranquilamente relaxada, por oposição aos imensos problemas que pairavam sobre a minha cabeça, sobrecarregando o meu espírito e a minha mente.

Várias questões estavam no ar, mas uma em especial, parecia que nunca iria terminar, o que me estava a tirar todas as forças, a roubar toda a minha energia, bem como a coragem e a vontade de viver. Viver a vida, o sonho, tudo o que houvesse no meu presente e tudo o que estivesse para vir. Mas, de facto, não conseguia ter sossego, sempre dominada por pensamentos negativos, fazendo-me sentir mal e às vezes muito mal, dando oportunidade a crises de pânico.

Tudo o que está no nosso caminho, seja bom ou mau, é para vivermos, querendo ou não. E neste caso, não querendo entrar propriamente em pormenores, não havia escolha possível. A única escolha era a aceitação, o que estava a ser muito difícil para mim. Às vezes sentia-me revoltada, mesmo sabendo que não devia, não podia, mas… fazer o quê?

A questão em si, complicada e delicada, tinha surgido aparentemente do nada e por isso mesmo deixava-me impotente, sem a menor possibilidade de alterar a situação, pois não dependia de mim. Há anos que se arrastava e eu ia levando e encarando como podia. Umas vezes com mais paciência, outras vezes sem a menor paciência. E é assim que a vida nos testa. Por vezes levando-nos ao limite.

Olhando o céu, intervalado de azul e branco, estive uns cinco minutos presa nesta paisagem, que poderia parecer monótona, mas era muito mais do que isso. Relaxante e tranquila, em que nada se alterava, nada se movia. Ou, se se movia, era tão, mas tão lentamente, que o meu olhar não conseguia perceber a mais pequena alteração.

Inconscientemente, estabeleci uma analogia entre aquela paisagem absolutamente estagnada e o problema que tanto me afligia. Não era normal olhar o céu com nuvens, sem que elas se deslocassem, por muito lento que fosse o seu caminhar. Mas aquelas, estavam completamente paradas, sem o menor movimento. E foi aí que pensei: tal qual o problema que tanto me aflige. Nada se move, nada muda. Era como se o universo estivesse em comunicação comigo, mostrando-me aquele panorama, para que, uma vez mais, eu percebesse que a única solução era aceitar e nada mais.

Ao cabo de mais ou menos uns cinco minutos e cansada de tudo o que passava na minha cabeça, quase sem querer, fechei os olhos, a fim de desanuviar e pensar em outra coisa qualquer. Para onde fui, nem sei. Que pensamentos passaram pela minha mente nesse entretanto, francamente não tenho ideia. Talvez porque era precisamente essa a intenção ou porque nem sequer deu tempo para isso. Desligar-me. Mas passados que foram uns segundos apenas, tentando acomodar-me um pouco melhor na posição do sofá em que estava, e sem ter noção disso, abri os olhos quase sem querer, para logo os fechar outra vez. Só que não!…

Surpresa das surpresas. A paisagem que estava fixa, sem o menor movimento, durante os cinco minutos em que estive a observá-la, por achar que não era muito natural que as nuvens não se movessem, por muito pouco que fosse, surpreendentemente, estava completamente mudada. Não havia a mais pequena comparação. Agora, o céu estava todo coberto pela suavidade da brancura das nuvens, que pareciam algodão desfiado, mas que cobria tudo, não havendo um bocadinho de azul à mostra.

E pensei, raios, como pode? Durante cinco minutos nada aconteceu. Tudo estava parado. Estranhamente parado. Fecho os olhos por uns breves segundos e quando os abro, parecia que estava noutro lugar. Parecia que as nuvens estavam à espera que eu fechasse os olhos para alterarem a sua posição. Mas era uma mudança radical. Não havia rasto da anterior. Em cinco minutos nada se moveu, parecendo que ia ficar assim para todo o sempre. De repente, em escassos segundos, modificou-se do dia para a noite. Era inconcebível! Mas era o que era.

Foi então que se fez luz. Na verdade, aquilo era uma mensagem do universo, dizendo-me que tudo era assim. Quando menos esperamos, a vida dá um passo adiante. Mesmo quando já nada esperamos. Nada é eterno. Tudo tem o seu tempo e de um instante para o outro, tudo pode mudar.

Sem dúvida. Era uma mensagem, uma mensagem perfeita. Tão perfeita, que dois dias depois, o problema que há tanto me afligia, dava um passo em frente. Um passo que considerei gigante, diante dos obstáculos que se entrepunham e que pareciam não ter fim.

Mas aquela mensagem foi uma coisa extraordinária, por duas razões: pela carga do conteúdo que ela continha e pela percepção que a minha consciência teve a capacidade de alcançar. Uma simples mensagem, mas uma muita especial mensagem, que podia ter passado completamente despercebida, perdendo todo o seu real potencial, zerando e anulando, simplesmente e completamente a sua função – a beleza da suprema e eterna interacção entre o universo e o homem.