sábado, 6 de janeiro de 2024

Ofélia - 115

 

Ofélia!... Ofélia… tão doce, tão suave… uma querida. A Universidade Sénior é um mundo e uma segunda família para cada um de nós, porque depois da reforma, é o lugar onde voltamos a conhecer pessoas, fazer novas amizades e outro ritmo, absolutamente necessário nas nossas vidas, para além de ficar sentado no sofá a ver televisão.

Na Universidade Sénior descobrimos muitas facetas que até então desconhecíamos, porque até aí a vida era só trabalho e casa. Somente e apenas isso. O tempo não chegava para mais e o cansaço também não ajudava.

Com a Universidade Sénior um novo caminho se abre, para quem está disposto a continuar com uma certa qualidade de vida. E a descoberta de coisas que não sabíamos que tínhamos, é fascinante! Podemos descobrir o caminho das artes: desenho, pintura, artes manuais (as mais diversas), a escrita, enfim. Com toda a certeza tudo isso sempre esteve dentro de nós. Pois é, mas tempo para acender essa chama e a poder aplicar concretamente? Esse é o problema.

E as amizades, o convívio que tanta falta faz, em qualquer idade!? As afinidades que descobrimos ao enfrentarmo-nos com os outros? Os novos laços que se formam, são mais caminhos para descobrir, aproveitar e tirar o melhor partido disso tudo.

Ofélia, como tantas outras pessoas era uma querida, muito simpática e muito comunicativa. Uma mulher linda e ainda nova, apesar dos seus sessenta e tal anos. Branca, loura, de olhos azuis, com umas feições muito perfeitas e um sorriso delicioso. Ofélia era casada, tinha filhos e netos, como a maioria de nós, porque nem todos se casam, nem todos têm filhos, nem todos têm netos. Alguns nem família têm.

Aparentemente, era uma mulher feliz e realizada. Mas tudo isso já era, porque à data, tinha problemas no casamento. Mas quem os não tem? O marido tinha mudado de repente, nos últimos tempos, e segundo ela, só piorava de dia para dia, o que tornava difícil o convívio e a comunicação de ambos.

Nas minhas aulas de meditação eu dava oportunidade às pessoas de exporem os seus problemas pessoais, a fim de serem avaliados e confrontados por todos e, muitas vezes, ouvimos Ofélia falar do que a atormentava. Era uma maneira de desabafarem, sem julgamentos, podendo até ter ajuda psicológica uns dos outros. Todos sabemos que, só o facto de se poder falar abertamente sobre os assuntos que nos incomodam, pode ajudar no campo emocional. Receber a compreensão e o apoio dos outros é, no mínimo, consolador.

Mas, então, veio o Covid e tudo se acabou. As aulas da Universidade Sénior, como em todo o lado, deixaram de ser presenciais para serem online e nem todas. Foi o isolamento e o silêncio total. As pessoas foram obrigadas ao recolher obrigatório e esperar, esperar que a crise passasse. Para falarmos uns com os outros só mesmo por telefone. O desejo e a saudade de tudo e de todos, foi a única coisa que sobrou, durante um longo período de tempo. Mas como tudo passa… um dia, as coisas, lentamente, começaram a voltar ao normal. E assim, a universidade começou também as suas aulas presenciais. Só que a frequência baixou consideravelmente. Muita gente ainda tinha medo. Outros, acomodaram-se. Mas a universidade retomou a sua actividade dentro do possível e como pôde. Com poucos, é verdade, mas foi o que foi. E no ano seguinte percebemos o aumento, e a pouco e pouco as pessoas foram perdendo o medo e percebendo que a vida era para continuar e não podíamos de maneira nenhuma parar. Parar é morrer.

Mas nunca mais foi o mesmo, isso não. Por essa razão, dávamos por falta de pessoas. Pessoas a que éramos mais agarrados, com quem tínhamos mais afinidade, com que nos relacionávamos melhor, etc. De alguns conseguíamos ter notícias através de outros, mas de muitos, nem isso. Parecia que tinham desaparecido completamente do mapa.

Ofélia, por exemplo, foi uma dessas pessoas que desapareceu completamente. Nem adiantava perguntar, porque ninguém sabia do seu paradeiro. Às vezes eu pensava numa ou outra pessoa e mais tarde essa mesma pessoa acabava por aparecer. Outras não apareciam, mas sabíamos através de outras, onde estavam, o que faziam. Muitas vezes os números de telefone “desaparecem” ou as pessoas não atendem.

Mas Ofélia, e praticamente todas as pessoas com quem ela mais se dava, também não voltaram depois da pandemia. Quando as pessoas desaparecem de circulação eu costumo apagar os números, porque é uma lista interminável e se não são usados, não fazem falta. É assim.

Ofélia, porém, eu gostaria muito de saber dela, de ter notícias, perceber o que se estaria a passar. Paciência. Talvez um dia ela ainda voltasse. Ou talvez não. Ela nem sequer morava para as minhas bandas. Era uma zona completamente oposta à minha. Por isso, encontrá-la, era muito pouco provável. Mas a cada dia que passava eu ficava mais fixada na ideia de chegar e ela de alguma maneira. Porém, o tempo é curto para tanta coisa que há a fazer e as coisas sucedem-se uma após outra e a pergunta vai ficando sem resposta, embora sem se apagar da nossa cabeça.

O dia a dia é uma solicitação constante de afazeres inadiáveis que vão tirando a oportunidade a outras coisas aparentemente secundárias. Foi o caso. Todos os dias eu pensava na minha amiguinha, mas acabava sempre ficando por aí. Eu só queria vê-la. Saber se estava bem. Como estava a vida dela, com todos os problemas que tinha com o casamento e a família.

Mas pronto. Já me estava a conformar em não conseguir uma aproximação com ela. A vida é como é e o almoço e o jantar estão primeiro, portanto, nada a fazer. Ou continuar à espera de uma oportunidade, quem sabe?! Mesmo tendo que aceitar isso, continuava a pensar nela, o que também já me parecia uma obsessão, sem razão para isso. Porque haveria de estar sempre a pensar nela?

Era hora de almoçar e não tinha preparado comida, por isso decidi ir ao take away, ali mesmo, do outro lado da rua, depois de sair a Praceta. Entrei, escolhi a ementa e fiquei à espera de ser atendida. Olho para a minha esquerda, na direcção da caixa de pagamento, para ver se havia muita gente… impressionante!

No lugar mais inusitado possível, completamente fora da sua zona! Já eu, vou ali de vez em quando e aquela era mesmo uma dessas vezes, de vez em quando. Sem mais nem menos, onde jamais pensaria, mas como que respondendo ao meu chamado, isso sim, espantosamente e sem qualquer outra explicação, lá estava ela, igual a si mesma, igual ao de sempre… tão doce, tão suave… Ofélia!


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Os documentos - 114

 

Carlos aproximou-se de mim, beijando-me com a mesma ternura como sempre o faz e a que já estou mais do que habituada. Só que desta vez era especial.

Cerca de meia hora antes, acabara de me dizer que não sabia dos documentos da mota. Achava que os tinha guardado no bolso das calças ou do casaco, mas já tinha procurado e revirado tudo, sem sucesso. Por isso, deduzia que os tinha perdido, o que o deixava muito chateado. Perder os documentos, significava ter de ir à loja do cidadão, perdendo horas de trabalho, o que não lhe dava jeito nenhum.

Disse-lhe que deviam estar na roupa, para procurar melhor, mas ele insistia que já tinha visto tudo e não encontrava. Estava convencido de que os tinha deixado cair na bomba da gasolina e, porque já era noite cerrada, não tinha dado por isso. Voltei a dizer-lhe que, garantidamente, estavam num bolso qualquer. Qual, eu não sabia, mas estava decidida a ajudá-lo a procurar.

Era dia de Natal e eu, em especial, estava embrenhada nos preparativos para irmos almoçar a casa do Henrique, onde estaria a Sofia, minha neta, a passar o dia com o pai. Talvez por isso, não lhe tenha dado uma atenção mais merecida e porque também estava perfeitamente convencida de que os documentos estavam em casa, algures na roupa dele. Mas podia estar enganada!

Achando que não podia fazer mais nada, decidiu alhear-se daquele assunto, para não estragar o dia. Tanto mais, que ele sabia como era importante o facto de irmos a casa do Henrique. Além de que Carlos, é uma pessoa cem por cento positiva, o que muito me encanta e aprecio. E assim, os dois continuámos a preparação para o almoço.

Chegou a hora de nos vestirmos para sair. Escolhi cuidadosamente a roupa, calçado, bijuteria… dei um jeito no cabelo, uma ligeiríssima maquilhagem, escolhi um casaco comprido de pelo sintético, porque estava muito frio e fui para a sala acabar de fazer uns embrulhos.

Daquele dia eu só queria que desse tudo certo. Não era um almoço qualquer. Era um almoço de Natal com o Henrique, meu filho. E isso, por razões que agora não vem ao caso, era de suma importância para mim. Carlos tinha essa noção e isso também o influenciou a esquecer momentaneamente a chatice dos documentos, que eu continuava a acreditar que não estavam perdidos. Ma enfim… enquanto não apareciam, estavam perdidos. Essa era a verdade.

Voltando ao almoço, se tudo desse certo, isto é, se não houvesse nenhum mal-entendido e tudo corresse na santa paz, ou no mínimo, em harmonia, o meu dia estaria ganho e a minha alma estaria feliz, muito feliz. Era como que um resgate de muitas horas, muitos dias de angústia, raiva e outros tantos sentimentos negativos, que me tinham deixado completamente de rastos, sem opção de dar a volta ao assunto. Mas agora, parecia que tudo tinha ido na corrente e já não voltariam mais, para me atormentarem de todo. Era uma enorme dádiva do universo. Eu tinha consciência, reconhecia e estava infinitamente grata, assim como pronta para aceitar essa mudança, mais do que tudo. O vento trouxera, a brisa levara para bem longe. Era tudo o que eu queria.

Quase prestes a sair, Carlos chega novamente perto de mim e, coisa que nunca faz, pergunta-me que casaco deve levar. Hum!... Fiquei a olhar para ele, curiosa pela pergunta, mas rapidamente, respondi que levasse o casaco de cabedal, que era óptimo e ficava-lhe muito bem.

Na noite anterior, tínhamos ido jantar a Setúbal, a casa do João, com mais família, e ele não me questionou sobre o que vestir. Isso é o normal nele. É um homem com uma figura bonita, como poucos, e fica bem com tudo o que usa. E por si mesmo, decidiu levar um sobretudo que raramente veste, muito bonito. Podia ter-lhe respondido que levasse o mesmo casaco da noite anterior. Mas não sei porquê, veio-me à ideia o blusão de cabedal e achei que esse estaria bem, no meio de tantos que tem. Podia ter dito outro qualquer, mas foi aquele que visualizei e foi aquele que disse.  Portanto, quase sem pensar, respondi-lhe que levasse o tal blusão de cabedal. Sem comentários, deu meia volta e foi para o quarto.

Estava tudo bem. Estava tudo mesmo a correr muito bem. Só era pena a história dos documentos. Parece que tem sempre que haver um senão. Paciência. Há coisas piores.

Cerca de cinco minutos depois, e voltando ao início da história, estava agora de volta de mim, enchendo-me de beijos e agarrões e, no meio do seu característico ataque de ternura que, apesar de já estar habituada, nunca deixa de me surpreender, acrescentava ainda que eu era uma pessoa muito especial, uma alma preciosa, iluminada… e sei lá que mais o quê. O seu olhar estava diferente, com um brilho notável e parecia leve que nem uma pluma. É que a minha sugestão de levar o blusão de cabedal tinha um fundamento, e embora inconscientemente, tinha resolvido o único senão para um almoço de Natal perfeito.

Carlos estava mais do que aliviado. Os documentos da moto, que para ele estavam perdidos, e que poderiam estar no bolso de qualquer outro casaco, estavam precisamente nesse mesmo blusão que vestiu seguindo a minha orientação.