quinta-feira, 24 de maio de 2012

Palavras para quê? - 34


Poucos dias depois de ter iniciado a minha vida com o Álvaro, uma noite, estando eu já na cama, recostada nas minhas almofadas, aguardava por ele, que estava na casa de banho, cuidando da sua higiene nocturna. Antes de dormirmos, sempre conversávamos sobre os acontecimentos do dia e revíamos coisas nossas e muitas vezes até preparávamos o dia seguinte, entre outras coisas. 

O que importa é que eu estava ali tranquila e em paz, quando o meu olhar se fixou na porta do quarto que estava aberta. Olho com olhos de "ver" e percebo que a figura do meu falecido pai estava ali. Mas que estranho! Ele estava ali, quase colado à porta, de pé, com uma mão apoiada na maçaneta dourada da porta branca e com um jeito corporal que lhe era muito peculiar. 

Era muito bom vê-lo, não fossem as condições e o modo como se apresentava, tão incomodativo. Era um facto que ele tinha feito a sua passagem num passado ainda recente, dois anos apenas. Ainda assim, não justificava o modo como aparecia, o que realmente me incomodou. Ele estava lá, todo materializado, sim, sem dúvida. Já não havia sinal do derrame que lhe causara a morte. Estava com a cabeça e o rosto todo limpo. Mas estava notoriamente sem vida, sem luz, completamente vazio, inerte, lívido. Era literalmente um morto em pé. Até o frio do corpo sem vida eu podia sentir. E não havia comunicação alguma. Eu olhava, na expectativa de que houvesse alguma mensagem a transmitir, mas não havia nada de nada. Só o vazio ali estava. Não gostei e não percebi o que aquela aparição significava. Ele estava ali morto em pé e nada dizia. 

Nos dias que se seguiram, várias vezes dei comigo a pensar naquela visão, sem sucesso, porque realmente não conseguia decifrar. Era mesmo muito estranho, pelo que tentei esquecer. 

Hoje, sei exactamente a mensagem que ele passou. Naquela altura, porém, com o Álvaro nos seus cinquenta e quatro anos, cheio de vigor e de saúde, quem poderia adivinhar que tão pouco tempo ele estaria entre nós, no mundo dos vivos?! 

Era essa a mensagem. No quadro que se apresentava, ela estava lá, fiel, completa, sem precisar de grande esforço. O meu amado pai tinha vindo na espinhosa missão de me fazer entender aquilo que eu jamais naquela altura poderia ter entendido. Ele anunciava a morte, literalmente, sem necessidade de se anunciar. 

Palavras para quê?


O "acaso" - 33


Estava eu em amena conversa com uma amiga de infância, falando-lhe de um determinado assunto, quando de repente me faltou a palavra que queria dizer. Não conseguia lembrar-me de maneira nenhuma. Fazia um esforço enorme, mas a dita não me saía. Parecia que tinha desaparecido por completo da minha memória.

 

E ela olhava para mim, na expectativa de que a qualquer instante eu desembuchasse, mas a coisa era mais séria e eu não conseguia mesmo. Não conseguia, por mais que me esforçasse. Mas tinha que ultrapassar aquilo e para mim, coisas aparentemente impossíveis, despertam e aguçam todos os meus sentidos e o meu cérebro entra em actividade completa, o que faz com que sempre consiga resolver o problema. Ou quase sempre. Foi o caso.

 

A palavra existia. Disso não tinha dúvidas. Independentemente do meu esquecimento, fazia parte do dicionário. Dicionário!... Era esse o caminho. Começava a fazer-se luz. Mas como encontrar no dicionário uma palavra, se eu não sabia qual era e nem tão pouco me lembrava por que letra começava? Era como procurar uma agulha num palheiro. Mas o caminho era esse. Era aí que eu eventualmente iria encontrar a palavra que queria.

 

Posto isto, levantei-me e fui direita à estante. Ela olhava-me, atenta aos meus movimentos, mas sem fazer a menor ideia do que me passava pela cabeça. De repente, percebendo que eu estava à procura de qualquer coisa, perguntou-me o que é que eu queria. Disse-lhe que um dicionário resolveria o problema. Ela deu uma gargalhada de gozo, levantou-se e disse-me que ali só me podia arranjar um dicionário de Inglês-Português. Parei um instante e depois acedi, porque era a mesma coisa. A palavra estaria igualmente ali.

 

Voltei a sentar-me e ela fez o mesmo, olhando para mim com um certo espanto. Eu sabia que pela cabeça dela passava qualquer coisa como "é mesmo doida", mas não liguei. Coloquei o dicionário em cima da mesinha de apoio que estava junto de nós. Ela continuava observando todos os meus movimentos, ávida do que se seguiria. Disse-lhe em voz alta que a palavra estava ali e como eu não me lembrava sequer da letra por que começava, iria simplesmente pedir ajuda ao dicionário. Ela confirmava que eu era maluca e ria. Não me deixei intimidar. Carreguei a minha mente, isto é, programei-me com toda a energia necessária e dei ordem mental ao dicionário para me mostrar a palavra que eu queria. Com os olhos semicerrados abri o dicionário, que passou sozinho algumas folhas até parar e com os olhos fechados, pedi ao meu indicador que se posicionasse na palavra certa. Assim fiz. E ela ria...

 

Quando abri os olhos, segui o meu dedo indicador. Por cima dele podia ler-se a palavra "antropologia".

 

Ela olhou para mim e riu que nem uma perdida, dizendo que tinha sido por "acaso". Pois, para ela teria sido um acaso. Mas eu sabia que não tinha sido um acaso qualquer. Eu sabia que tinha sido a força da mente a trabalhar. A mente tem uma força absoluta, mas é preciso ter consciência disso. E eu limitei-me a usar essa força que todos nós normalmente esquecemos, desperdiçando as nossas reais capacidades. 

 

Por mais disparatado que possa parecer eu sei que não foi o "acaso".

 

 

domingo, 20 de maio de 2012

O Álvaro - 32


Sempre que eu conhecia uma pessoa, inclusivé criança, tinha o hábito de ver as mãos e dar uma olhadela nas linhas da mão. Talvez não fosse uma boa prática, mas não conseguia deixar de o fazer. É que esta, era a maneira de ficar com uma ideia geral e bastante precisa da pessoa em causa. E isso era importante para mim.

 

Quando conheci o Álvaro, essa necessidade não se manifestou como habitualmente, pelo menos logo de início. Só passado algum tempo é que me veio aquela curiosidade. E ao olhar as mãos dele pela primeira vez, algo de estranho se me deparou. Depois de fazer o cálculo da idade, percebi que a linha da vida terminava naquela altura. Achei que estava confundida e que essa indicação seria a mudança da vida dele, relativamente ao divórcio com a ex-mulher. E como vivíamos em constante brincadeira, num clima de muita descontracção por nos sentirmos muito bem um com o outro, sinceramente, não me dei ao trabalho de aprofundar o assunto. Nem me apetecia pensar naquilo. Estava tudo tão bem!

 

O tempo foi passando e lá voltei a ver as mãos dele, sendo que a informação era a mesma, por mais que eu tentasse ver outra coisa, por mais que não quisesse ver o que estava bem patente. A linha da vida dele era bem explícita. Terminava ali, independentemente do que eu tentava "inventar" e ponto final. E tentava inventar razões para aquele término de linha, baralhando-a com outras linhas, tentando tirar ilacções e interpretações diferentes, que nada tinham que ver com a "verdade" nua e crua.

 

Limitava-me a pensar que não podia ser. Ele era uma pessoa saudável. Além de fumar, não tinha vícios. Porque haveria de morrer, logo agora que nos tínhamos acabado de conhecer e estávamos tão felizes? Tudo corria bem. Mais que bem. Tudo era perfeito. Certamente eu estava errada, só podia ser isso. Éramos muito felizes e isso era a única coisa que me importava.

 

Evidentemente que nunca lhe falei neste assunto claramente. Eram apenas suposições de mau gosto da minha parte e ignorância no que respeitava à leitura das mãos. Precisava aprofundar os meus conhecimentos para não correr riscos tão sérios de me enganar em casos de vida ou de morte. Era preciso ter muito cuidado.

 

E os dias foram passando, com a nossa vida a correr às mil maravilhas, que até parecia um sonho. E passou um mês. E passou outro mês. E passaram três meses. E passaram mais uns meses e tudo era perfeito. E chegou o sétimo mês e como tudo fosse realmente bom demais para ser verdade, as coisas mudaram. 


Assim, numa madrugada de domingo, depois de ter sido submetido a uma terceira cirurgia, no espaço de apenas uma semana e apenas por causa de uma hérnia, o Álvaro partia para não mais voltar.

 

E a vida continua, diziam-me.

 

A vida continua, sim, porque "uns têm a coragem de partir e outros têm a coragem de ficar".

 

Mas a prévia leitura das mãos acabou. Nunca mais. Foi a promessa que fiz a mim mesma.


Em Cambridge - 31


Quinze dias após o nascimento da minha primeira neta, a Sofia, eu estava em Cambridge a dar o apoio possível à jovem família que estava a crescer. A Sofia era muito bem vinda e todos estávamos muito felizes com a sua chegada. 

O apartamento em Cambridge era muito bonito e estava inserido numa urbanização magnífica. Muito moderno, com paredes em portas de vidro de cima abaixo, para se integrar o mais possível na natureza, bem dentro do jardim. Fosse o que fosse que eu estivesse a fazer, parecia que estava sempre no meio da floresta, porque a arborização daquele lugar era extremamente densa e muito bem cuidada. Dava-nos um sossego e uma paz muito grande. 

Logo nos primeiros dias tive um sonho que se repetiu por três noites consecutivas. O sonho era sempre o mesmo e acontecia sempre no mesmo local, apenas  com pequenas variações de imagem. O que importa é que, quando acordava, sabia que o sonho era o mesmo. As pessoas, as cenas e a acção, bem como a sensação, eram uma só. Por isso o sonho era o mesmo e com uma intensidade enorme. Parecia real, completamente. Era como se durante a noite, onde quer que fosse, eu viajasse até lá. 

Comentei o assunto com a minha nora querida e descrevi-lhe o sonho, que ela ouviu com toda a atenção. Passava-se num jardim muito verde, com a relva muito bem cuidada. Uma piscina de fundo azul, com a água transparente, onde estavam uns rapazes muito jovens a jogar bola uns com os outros. Havia várias pessoas na piscina, mas eu só via dois rapazes. Eu não estava dentro da piscina. Estava algures, uns metros afastada e apenas observava.  

O sol deixava passar uns raios que atravessavam a piscina e a revestiam de uma luz muito especial. Aquele momento era de uma riqueza espiritual muito grande, apesar de não saber quem eram nem onde estavam. Mas a minha sensação, por estar naquele lugar e a energia que tudo aquilo me passava era uma coisa extraordinária. Ali morava a paz, o bem estar, a tranquilidade absoluta. Era um momento de extrema felicidade. Quando acordava, continuava a sentir uma paz interior inesquecível, uma felicidade do outro mundo. Bom demais mais para ser verdade, pensava eu. 

Por três noites seguidas fui privilegiada com aquela bênção, que eu agradecia a Deus e perguntava a mim mesma, de onde viria aquilo, quem era aquela gente, etc, etc. Só sabia que era muito bom. 

O tempo passou e o sonho também. Enquanto isso, deliciava-me com a minha pequena Sofia, que crescia dia a dia. E o dia de regressar a Lisboa, à televisão, chegou. 

De vez em quando, pensava no sonho, com a finalidade de ir buscar aquele sentimento de paz e tranquilidade que ele me oferecia. Era muito bom e eu precisava daquilo. Especialmente, quando me sentia muito sozinha, o que ultimamente acontecia com frequência. E depois, o Henrique ia ficar em Cambridge, sozinho e a minha nora tinha que regressar com a pequena Sofia, sozinha, também, e isso deixava-me angustiada. Mesmo sabendo que era uma situação temporária, não deixava de me preocupar, até que ele regressasse de vez. 

Isto passou-se no início de Julho. No final de Agosto um amigo confidenciou-me que gostaria de me apresentar um colega. Eu que já estava habituada à minha solidão, fiquei um pouco surpreendida e embaraçada. Ele falou do colega, que era uma boa pessoa, etc, etc e que não haveria mal algum em nos conhecermos e fazermos uma amizade, porque não? Pensei, pensei e aceitei. Disse-lhe que sim. 

Uns dias depois, aceitei um convite para jantar, do próprio, ou seja, do amigo. O jantar foi óptimo, o passeio excelente e tudo correu muito, muito bem. Fiquei encantada com a companhia que muito me surpreendeu. Depois dias depois aceitei novo convite para ir ver a casa de campo dele, em Alcobaça. Adorei. Ficámos lá o fim de semana e passeámos pelos arredores que eu pouco conhecia. Entendemo-nos muito bem e decidimos, sem perder tempo com detalhes, ficar juntos. Assim, ele veio viver para a minha casa na cidade e aos fins de semana, então, lá íamos nós para a casa de Alcobaça. 

Os dias foram passando, até que veio um fim de semana em que ele me disse que os filhos e as respectivas namoradas e amigos e amigas, iriam lá passar um fim de semana connosco. Assim foi. Chegaram, instalaram-se, acabou o nosso sossego, mas era uma festa ter aquela juventude toda lá. Ele estava feliz e eu idem. No domingo de manhã, nós estávamos na cozinha a preparar o almoço para aquele pessoal todo e eu tive que vir cá fora ao jardim, fazer qualquer coisa. De repente, olho para a piscina e o que vejo? 

Estavam todos a jogar à bola. A luz era perfeita. O sol atravessava a água azul, revestindo-a de uma luminosidade fora do comum. A alguns metros de distância, observava os rapazes e percebia que a sensação boa de estar ali, era a mesma do sonho e o quadro que se me deparava era exactamente o do sonho que tivera em Cambridge, que eu jamais ousaria pensar que se tratava de uma premonição, anunciando um futuro muito breve, que me proporcionaria uma vida que até então nunca tinha tido, nem imaginara que alguma vez seria possível(!).  

Pena que tão pouco tenha durado…


sábado, 19 de maio de 2012

O Paulo e a Laura - 30


O Paulo Martinho, meu colega de trabalho, foi o meu primeiro e melhor amigo quando me transferi de armas e bagagens para a Delegação da RTP nos Açores. Ele queria o melhor para mim como eu para ele. Ele protegia-me, defendia-me, dava-me conselhos, estava sempre atento a qualquer necessidade que eu pudesse ter e enfim... foi realmente excepcional. Era como se fôssemos irmãos.  

Era muito divertido, muito bem disposto e tinha muitas namoradas que trocava com frequência. Sempre que começava um namoro novo ficava doido por me apresentar pessoalmente a nova "vítima" para eu dar a minha opinião. Durante dois anos, foram várias. Cada uma que eu via, olhava para ela e percebia que não era a tal. E outra e outra. Todas foram passando, com ele fazendo grandes planos de casamento e filhos, mas assim que eu as via, dizia-lhe o que sentia, que não tinha chegado ainda a hora, porque não via em nenhuma delas a que realmente seguiria caminho com ele pela vida fora.  

Às vezes ele até ficava um bocadinho chateado por eu não lhe dar um pouco de esperança, porque ele queria e estava ansioso, mas eu tinha de ser verdadeira. E bastava-me um olhar rápido para que e minha intuição se abrisse e falasse. E ia-lhe dizendo não, não e não. O facto é que, ao fim de algum tempo, com umas mais, com outras menos, ele chegava ao pé de mim e comunicava-me que tinha terminado, dizendo-me "tinhas razão, ainda não foi desta". 

Até que um dia ele me falou de uma namorada nova, que mais uma vez queria que eu conhecesse. E andava feliz da vida, mas a dita cuja não aparecia. Bem que ele falava todo excitado, mas ela não aparecia. Não levei muito a sério e até pensei que era alguma das suas muitas fantasias. 

Como o tempo passava e ela não dava à costa, um dia insisti com ele e disse-lhe que a queria ver, como tinha acontecido com todas as outras. Então ele respondeu que ainda não podia ser, mas que me ia mostrar uma foto. E assim foi. Puxou da carteira e sai uma foto da Laura. Um pouco mais nova que ele, a Laura tinha um aspecto jovem, fresco, puro e era linda como uma flor. Fiquei deliciada com a foto, olhei para ele, sorri e disse-lhe: "quero conhecê-la pessoalmente, mas não preciso disso para te dizer que é ela, a tal especial, por quem tanto esperaste". 

Ele olhou para mim com um olhar muito aberto e perguntou se eu tinha a certeza. Respondi que, sem sombra de dúvida, era ela.  

Lembro-me perfeitamente, como se fosse hoje e já lá vão mais de tinta anos, da festa que ele fez, tão feliz, tão alegre, cheio de energia que nos contagiou a todos e me deu dois beijos, abraçando-me e dizendo-me palavras carinhosas, tal era o momento que estava vivendo. E o Paulo dizia "Lili, querida, tu és especial"... e eu ria, das maluqueiras dele. 

Então, um dia, a Laura apareceu em pessoa. Era exactamente como na foto, com aquele ar jovial, fresco, alegre, bem disposta e feliz. E o Paulo e a Laurinha casaram, tiveram um menino e uma menina, e foram felizes para sempre(!?), com todas as dificuldades que tiveram que atravessar, como toda a gente. 

E viva a intuição que é das coisas mais preciosas que temos para nos conduzir e aos outros também, neste mundo às vezes difícil.