O Verão de 2013 foi um Verão quente, especialmente quente, por
isso as praias em todo o país estiveram sempre cheias, mesmo lotadas. Então, eu
e a Sofia, uma amiga com idade para ser minha filha, fomos muitas vezes juntas
para a praia, um dia no carro dela, outro dia no meu.
Num sábado em que ela começava a trabalhar
só a seguir ao almoço e as temperaturas logo pela manhã estavam muito acima dos
trinta graus, combinámos ir à praia, sendo que saíamos às oito e meia para
estarmos na praia às nove e às onze regressávamos. Duas horas de praia chegava
e dava tempo para ela se arranjar, almoçar e ir trabalhar.
Nesse dia fomos no meu carro e entrámos em
desacordo porque ela queria ir para a Ericeira e eu para a linha. Comecei a
tomar o rumo da linha e ela muito chateada, parecia uma miúda pequena, porque
queria à força ir para a Ericeira. Fui-lhe dando várias razões, mas ela não
aceitava. Um calor abrasador e aquele clima entre as duas, as coisas não
estavam a começar da melhor maneira.
Quando entrámos na marginal o trânsito
estava um horror. Ainda não eram nove horas, o calor já estava insuportável e
as praias cheias de gente. Na verdade, já me tinha arrependido, mas agora não
tinha como sair dali e estávamos muito perto, só que o trânsito não andava e a
Sofia de mau humor, que chatice! Parecia que todo o mundo tinha ficado na praia
de véspera, porque aquilo não era normal. Carros estacionados por todo o lado,
uma confusão dos diabos! Um verdadeiro caos.
A Sofia queria fazer toplesse, queria espaço
para ela sem ser incomodada por ninguém e com aquele amontoado de gente era
impossível e queixava-se de que as brigas dela com o ex-namorado eram sempre
por causa daquilo. Queria praias que lhe dessem espaço e privacidade, no que
não deixava de ter razão, mas àquela altura já não havia volta a
dar, porque dali não tínhamos como sair e a verdade é que para o outro
lado, em fim-de-semana e com aquele calor, também não seria muito diferente.
Agora a nossa preocupação era com o
estacionamento. Onde iríamos estacionar? Mas eu dizia-lhe que havia de haver um
lugarzinho à nossa espera, um lugar que ninguém via, o que em boa verdade
aconteceu. Entrei no parque e lá estava aquele lugar ligeiramente fora da
marcação, mas que devidamente estacionado nem se dava por isso. Assim foi e só
por isso a Sofia já ria. Pegámos na tralha e lá fomos, sem saber para onde ir
nem por onde abrir caminho. Nunca se vira uma coisa assim e um calor
insuportável, parecia o Brasil, porque naquele ano até a água estava quente,
por causa das temperaturas excessivamente altas.
Onde fixar o guarda-sol? Onde pôr os pés?
Por onde caminhar, se não havia espaço?! Insuportável. Já tinha sido uma
coisa extraordinária termos conseguido chegar ali e ainda mais termos arranjado
lugar, quando todos os carros andavam às voltas parecendo umas baratas tontas.
Um calor abrasador e eu só queria largar tudo e entrar pela água dentro e
a Sofia outra vez mal disposta. Há dias em que não se pode sair de casa.
Aquele era um deles.
Enfim, com muito custo e já extenuadas
entrámos à força na areia, com muito cuidado para não pisar ninguém,
curvando-nos para passarmos por baixo dos chapéus, que eram mais que muitos e
todos juntos, era realmente dramático. Toda a população de Portugal
inteiro estava espalhada pelas praias que não davam vazão. Não se conseguia
perceber onde acabava uma família e começava outra.
Era preciso ver que eram apenas nove horas
da manhã e aquilo já estava assim. Muita gente devia ter ido de madrugada,
talvez até durante a noite. Há gente que tem dificuldade em dormir por causa do
calor, por isso não me admirava nada que tivessem ido dormir para a praia. A
areia estava a ferver, a água um caldo, estavam todas as condições reunidas
para, a qualquer hora, quererem estar na praia o que, aliás, para muitos, seria
mesmo a única solução.
Mas e agora, nós, onde conseguiríamos um
espaço para assentar e pôr as nossas coisas? O guarda-sol nem pensar, mas
também quase não era preciso, porque os chapéus estavam todos tão próximos uns
dos outros, que se apanhava uma sombra de qualquer lado. A questão era
haver espaço.
Com um ar desolado, as duas caminhando
pela areia, insistindo e forçando a passagem, já nem queríamos saber se
incomodávamos ou não. Só queríamos fazer valer o nosso direito de também estar
ali. Na retaguarda, as pessoas que chegavam ficavam paradas, sem se moverem,
olhando a massa de gente na praia, sem saberem o que fazer. Mas nós não íamos
entregar os pontos assim tão facilmente.
Já estávamos quase junto à água, paradas,
olhando em volta uma brecha que não conseguíamos vislumbrar, quando de repente
uma criança pequena se levantou e se dirigiu para a água. A seguir, alguém foi
atrás dela. Rapidamente nos apropriámos daquele minúsculo espaço.
Desviámos um pouco as toalhas que estavam no chão e como quem não quer nada,
mas sentindo-nos umas intrusas, largámos os sacos no chão o mais juntos
possível para não se misturarem com os de mais ninguém e aí ficámos, olhando
uma para a outra, com umas caras de lástima.
Com cuidado, tirei o guarda-sol, não
precisamente por causa do sol mas para afastarmos um pouco de nós os que
estavam em volta. Era realmente desagradável e sufocante. Estávamos
completamente em cima uns dos outros. Montei o chapéu e disse à Sofia que ia à
água, porque estava com muito calor e cansada. Como ela estava chateada ficou
na areia, estendida, de barriga para baixo e com a cabeça entre os braços, para
tentar evadir-se e esquecer que estava quase colada aos outros. Toplesse, nem
pensar, claro.
Fui para a água e entrei de supetão. Que
bem que aquilo me sabia porque, uma vez dentro de água, o calor já não me
incomodava. A água reanimava-me e as minhas energias já estavam renovadas.
Tínhamos conseguido chegar à praia, estar na praia e eu estava na água que era
tudo o que queria. A Sofia estava a torrar, que era a preferência dela.
Mas tinha valido a pena chegar até ali e a água estava óptima!
Nunca tinha visto tanta gente na praia.
Sem dúvida, era um verão fora de série. Havia tanta gente na água, um magote!
Parecia uma banheira gigante. Tínhamos que ter cuidado para não dar uma braçada
ou uma patada em alguém. Era uma loucura. Mas enfim, era o que tínhamos. De
tanto que pedíamos o calor, ele aí estava com toda a força. Tínhamos que o
aproveitar e saber tirar o melhor partido da situação.
Estive uns dez minutos na água, depois
resolvi sair e ir para junto da Sofia apanhar sol, enquanto o corpo estava fresco,
o que não seria por muito tempo. Ainda dentro de água olhei em frente para a
areia à procura de espaço ao pé da Sofia, mas não a vi. Comecei à procura do
guarda-sol, mas também não o encontrei. Com calma, saí da água,
olhando com mais atenção. Certifiquei-me do sítio onde deveríamos estar,
mas não vi o guarda-sol e nem a Sofia. O que se estaria a passar?
Teria ela ido andar um pouco a pé? Era
pouco provável, mas talvez tivesse encontrado alguém conhecido e podia ter ido
falar com essa pessoa, mas, nesse caso, o guarda-sol, onde estaria o
guarda-sol? Volto para a água, para me afastar da praia e ter um maior campo de
visão, mas continua tudo na mesma. Nem sombra da Sofia e quanto ao guarda-sol,
havia muitos azuis, mas nenhum deles era o meu. Olhei para o morro, para mais
uma vez me certificar da direcção onde supostamente deveríamos estar e
achando que não havia como errar, começo novamente a seguir todos os chapéus
azuis, mas nenhum era o nosso.
E a Sofia? Ela, simplesmente, não podia
ter-se evaporado? Nem ela nem o chapéu e nem as nossas coisas! E eu na
água, de bikini, sem mais nada!... Começo a equacionar todas as suposições
prováveis, todas as conjecturas possíveis e até as impossíveis. Cheguei mesmo a
pensar que a Sofia se teria ido embora, porque ela não queria estar ali e
porque ela estava de posse de tudo, dos sacos, das chaves do carro, etc... mas
não, isso não podia ter acontecido. Compreendo que todos temos o direito de às
vezes nos passarmos e fazermos coisas inconcebíveis, mas isso ela nunca faria,
era impossível. Contudo, o facto é que ela não aparecia, nem ela nem o chapéu.
Já meio transtornada e a ficar em pânico,
começo a percorrer a praia. Primeiro para um lado, depois para o outro e ando
na beira da praia, depois mais acima, feito louca, meio doida varrida, toda a
pingar água por todos os lados e a tentar controlar-me porque só já me apetecia
gritar. Mas isso não podia acontecer. Tinha que me controlar, fosse de que
jeito fosse.
Finalmente dou-me por vencida. A Sofia não
estava na praia e o chapéu evaporara-se. Tudo tinha desaparecido (ou não), o
certo é que eu não tinha mais por onde procurar. Assim, restava-me uma única
solução: pedir ajuda. Mas também não tinha a menor ideia de como fazê-lo. Iria
aonde, ter com quem, dizer o quê? Eu, uma mulher de sessenta anos, perdida na
praia, ah, essa não! Que cena! Realmente, se há mesmo dias em que não
devíamos sair de casa, aquele era o dia.
Agora tinha de agir e o mais depressa
possível, porque precisava de saber o que se estava a passar e não aguentava
mais aquela irrisória situação. Tinha que pedir ajuda. O que fazer? Procurar
alguém, alguma pessoa dali mesmo, dizer que estava aflita, que a minha amiga
tinha desaparecido da praia e eu não tinha nada, nem roupa, nem chaves, nem
telemóvel, nada. Estava a sentir-me como que nua, literalmente nua, indefesa,
envergonhada, tola, tudo isso e muito mais. Era absolutamente ridícula toda
aquela situação, porque uma cena daquelas não podia acontecer.
Olhei rapidamente, mas as pessoas estavam
todas ocupadas com os outros ou consigo mesmas e depois quem é que ia querer
saber de mim? Eu não queria mesmo incomodar ninguém, mas alguém ia ter de me
ajudar. Estava exactamente no sítio onde devíamos estar. De pé, olhando em
volta, tentava perceber qual a pessoa que estaria mais disponível para me
ouvir. Um casal, outro casal, uma avó com dois netos... que bronca(!)… e vejo
um indivíduo por volta dos quarenta anos, talvez um pouco menos. Olhei bem
e pareceu-me que estava sozinho. Estava à procura de qualquer coisa na
mochila... uma sandwish. Rapidamente vou na direcção dele que está a cinco
metros de distância e antes que meta o pão à boca, mas já metendo, chego e
digo-lhe precisamente que preciso de ajuda.
Contrafeito, tira o pão da boca e fica
sério a olhar para mim, e com ar desconfiado repete as minhas palavras: precisa
de ajuda?! Sim, digo eu e pergunto-lhe se está sozinho. Ele, cada vez mais
contrafeito, com cara de quem não esconde o seu desagrado e que não está a
gostar nada da cena, diz-me que está sozinho, sim, porquê? Claro, só podia.
Também... chega uma desconhecida ao pé dele, enfim... e antes de mais nada,
digo logo que estava na praia com uma amiga mas que ela desapareceu enquanto
fui à água, ela e bem assim, o chapéu. O indivíduo, sem saber o que dizer e o
que pensar, olha para mim cada vez mais intrigado, perguntando como é que eu
não sabia da minha amiga, então não sabe onde é que ela está e eu digo, não sei
e não sei o que fazer.
Entretanto, uma senhora que estava ali ao
pé, debaixo de um chapéu, ouve a conversa e pergunta-me qual é a cor do chapéu,
para eu procurar e eu respondo que isso já eu tinha feito, sem sucesso. Os dois
perguntam ao mesmo tempo, onde é que eu devia estar e eu respondo aqui, aqui
mesmo, ao mesmo tempo que aponto para o chão; e enquanto aponto para o chão,
alguém se levanta e chama por mim, Luisa... qual não é o meu espanto, quando
vejo a Sofia ali mesmo, claro, levantando-se, agarra-se ao meu pescoço dizendo
que já estava muito preocupada porque eu nunca mais aparecia e que já tinha ido
à água à minha procura e não me tinha encontrado e estava aflita.
Meia aparvalhada, percebo que a Sofia
estava e sempre esteve exactamente no sítio onde eu a tinha deixado, no sítio
por onde eu já tinha passado várias vezes, no sítio onde eu sabia que nós
estávamos. E o chapéu? Ah… o chapéu!...O chapéu também. Nada se tinha
evaporado, tudo estava como deveria estar. Tudo tranquilo, tudo certo.
Então?
Então, que o chapéu estava lá, é verdade,
só que não era azul, era vermelho. Vermelho!? E eu sempre à procura
de um azul! Ah, disse eu e levei um susto, porque percebi que tudo se
tinha dado por conta de um erro meu. O chapéu era vermelho e era meu. Eu
mesma o tinha comprado. Como podia acontecer-me uma confusão daquelas?
Mas este erro não era um erro
qualquer. Era um erro assaz importante e com o qual aprendi.
A nossa mente é diabólica. Eu tinha
feito uma programação inconsciente e só naquele momento acabava de ter essa
consciência. Quando comprei o chapéu eu queria um azul. Azul é a minha côr
de eleição. Acontece que não havia azul. Procurei em vários sítios e não tendo
conseguido um azul, fui obrigada a escolher outra cor, tendo optado pelo
vermelho.
Mas o facto de ter comprado um
guarda-sol vermelho não mudou nada. Ficou subjacente na minha mente o chapéu
azul que eu queria, apesar de o não ter conseguido. Inconscientemente,
tinha feito uma programação mental, sem ter levado em conta o quão importante
era a cor.
Bem, depois disto pedi desculpa dando
uma explicação sumária, porque me senti tão mal que achei que era o mínimo
a fazer para limpar a minha imagem, para que não ficassem a pensar que eu era
doida. E tudo terminou bem. A Sofia puxou-me e fomos para a água arrefecer os
ânimos, rindo muito daquela maluquice toda e ficou bem disposta com tanto
que riu, tanto que, ao entrar na água até dizia “somos todos uma família”.
Queria isso dizer que, finalmente, tinha aceitado estar ali como todos os
outros.
Na água, muito nos rimos e divertimos.
Dávamos vazão a todas as peripécias e todas as chatices que tínhamos vivido
naquela manhã. Agradecíamos à vida o facto de estarmos aliviadas e de tudo ter
terminado bem. A água estava uma delícia e brincámos com outras pessoas e
crianças que estavam ali também. Quando voltámos à areia já não tínhamos lugar
para nos estendermos, mas ficámos sentadas. E nesse instante em que nos
sentámos, um garotinho que vinha da água, ali mesmo em cima de nós, deu um
berro "Vóoooooooo..."! No meio daquela confusão, ele não tinha reconhecido
nem o chapéu de sol, nem a irmã, nem a avó, que mesmo ao lado dele o agarrou
pelo braço e o puxou, dizendo-lhe também a gritar "estou aquiiiii... já te
disse para quando fores à água vires sempre na mesma direcção"…
Eu e a Sofia olhámos uma para a outra e
desatámos a rir. Parecíamos umas tontas. Mas a história do chapéu não
ficou por ali. Devia, mas não foi. Aquela situação não foi o suficiente para
reprogramar o meu cérebro. Uns dias depois fomos para a Ericeira, para a Sofia
fazer o seu merecido topless e ficámos do lado das rochas, para onde quase
ninguém vai. Haviam três chapéus, com o nosso eram quatro. Fui à água e a Sofia
ficou a torrar. Quando saí da água, olhei os chapéus à procura do nosso e onde
é que ele estava?
Mais uma vez eu procurava um chapéu azul e
não o vendo, comecei a sentir aquele mal estar do outro dia, mas rapidamente me
lembrei da cena. Então olhei as pessoas que estavam debaixo dos chapéus e lá
estava a Sofia toda estiraçada na areia, debaixo do chapéu vermelho. Ah, o
chapéu era vermelho! Nem queria acreditar que estava novamente no mesmo
registo.
Esta história só acabou porque, contando
ao meu filho, ele ficou um pouco apreensivo com a situação e logo tratou de me
comprar um chapéu azul. Finalmente eu tinha um chapéu azul.
Umas semanas mais tarde fui à praia, toda
contente com o meu chapéu azul. Eu tinha um chapéu azul, lindo. Quando me vinha
embora, estava a levantar-se muito vento e ao tentar fechar o chapéu, o vento
virou-o e partiram-se umas varetas. Ficou tão danificado, que dali já não saíu.
Infelizmente, achei que não valia a pena levá-lo.
Porém, na bagageira do meu carro, está
novamente um chapéu azul. Eu vou à praia mas o guarda-sol, até ver, fica
na bagageira do carro. Dali não sai. Este, veio para ficar.
Porque eu quero.