segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O encontro - 55


Nos meus dezassete anos tive um namorado da minha idade que foi o meu primeiro e único namorado de adolescente. Ambos passávamos a semana inteira em Lisboa. Ele, por causa do curso que estava a fazer e eu porque nessa altura já trabalhava, no que foi também o meu primeiro trabalho, no Ministério das Finanças. Durante a semana, em Lisboa, nunca nos encontrávamos, mas ao fim-de-semana, em Setúbal, era infalível. Acho que vivíamos a semana para isso, para o encontro do fim-de-semana e aproveitávamos tudo o que era festas, feiras, Carnavais e outras coisas mais, mas tínhamos um sítio que era especial, porque os nossos encontros sempre começavam e terminavam aí, sem hora marcada, porque não era preciso. Eu sabia sempre quando ele estava à minha espera. Como um sussurro no meu ouvido, eu ouvia a voz dele chamar por mim, nesse lugar muito especial, muito romântico, pode dizer-se que sim e muito, muito bonito. 

Ainda hoje, o miradouro de Setúbal é um local privilegiado pela vista magnífica que tem sobre o rio e sempre muito bem cuidado, com uns bancos em pedra, todo decorado com azulejos lindos, com umas trepadeiras que embelezavam, davam sombra e ainda desenhavam de uma forma airosa, uns cantos e recantos onde, na verdade, namorar, era um momento mágico, porque não acontecia mesmo nada, isto é, tudo era ingénuo, naqueles anos, ingénuo e doce. O namoro era estar ao pé um do outro, sem tocar um no outro. Apenas se conversava e muito mais com o olhar do que propriamente com palavras. O desejo sufocava-nos, porque não sabíamos, nem poderíamos, como extravasar toda aquela emoção que aflorava, independentemente da nossa vontade. Explodia por todo o nosso ser, mas ficava silenciosamente contida e contida ficou “ad eternum” porque, passado um tempo, veio o serviço militar e as nossas vidas tomaram o seu rumo, cada um seguindo o seu destino, que não era comum. 

Uns anos mais tarde, já eu estava casada e com um filho, encontrei uma amiga daquela época, que me deu notícias dele, que também já tinha casado e tinha um filho da mesma idade do meu. Nessa altura eu já tinha discernimento suficiente para perceber o traçado da linha do meu destino e para tanto, bastava-me olhar para trás e perceber que estava no lugar certo. Mas foi interessante falar com a minha amiga e ter notícias dele. Não que eu tivesse “saudades”. Apenas, não podia nem queria apagar o passado. Ele fazia parte de mim, da minha história. Depois disso, nunca mais voltei a ter notícias dele. Perdemos completamente o rasto um do outro sendo que, na verdade, não fazia falta. 

Os anos passaram. Na verdade passaram muitos e muitos anos. Por força das circunstâncias, as idas a Setúbal foram-se espaçando, até que se tornaram raras, raríssimas. No entanto, apesar da raridade ou por conta da raridade, não conseguia deixar de pensar nele. Ele sempre me vinha à lembrança e em certa altura, depois de tantos anos, uns vinte anos, comecei a sentir uma certa curiosidade em revê-lo. Apenas vê-lo, olhar para ele, rir com ele, do nosso passado, lembrando carinhosamente algumas passagens e nada mais. Mas isso era praticamente improvável. Há muito que ele já não vivia em casa dos pais, em Setúbal, junto ao miradouro dos nossos encontros. 

Lembro-me de duas ou três vezes ter ido ao miradouro e imaginar que ia ao encontro dele, como nos velhos tempos, sabendo, embora, que isso não aconteceria e entrar em contacto com ele, além de não ter como, não teria a menor graça. Não estava ali para me entregar ao JM, sob que pretexto fosse. A nossa entrega tinha sido a outro nível, portanto, isso estava fora de questão. Eu só queria mesmo experimentar aquela magia do antigamente, se isso fosse possível. Nenhum de nós era o mesmo, mas o facto é que tínhamos criado momentos mágicos. Como seria vê-lo no agora? E como aconteceria isso sem que eu desse um passo para conseguir essa magia? Impossível!  

E aqui começa a história. 

Certo dia, estando de breve passagem em Setúbal, decidi que queria, porque queria, reviver uma gota daquele velho passado. Em pensamento, vesti a pele da adolescente que tinha sido um dia e saí de casa destinada a subir a rampa em direcção ao miradouro. Isto era um absurdo, porque não havia a mais pequena probabilidade de acontecer. Mas eu queria e fui, calma e tranquilamente, a cada passo, me aproximando mais e mais do miradouro, porque, na verdade, eu não o queria ver só por ver. O que eu realmente queria era vê-lo naquele lugar que era nosso. Noutro sítio qualquer, não teria a mesma graça. Era a magia do quadro completo e só isso, nada mais. Depois, tudo se podia quebrar, o encanto, o espanto, ah… sei lá. Depois eu podia acordar, despir a pele já há muito despida da adolescente e voltar ao meu mundo actual, à minha realidade. Mas eu queria pôr o pé lá, por um só instante, naquele passado distante. 

E fui, ladeira acima, imaginando que, por qualquer passo de mágica do destino, ele estaria lá, como antes, chamando silenciosamente por mim. E, enquanto ia caminhando, pensava em quanta tolice passava na minha cabeça e em quanta fantasia alimentava. O razoável seria voltar para trás e pôr a cabeça no lugar. Meu Deus, como era lamentavelmente tola, por vezes! 

Mas quando já estava decidida a voltar para trás, a meia dúzia de passos do miradouro, a paisagem abre-se como a página de um livro, mostrando aquele belo cenário, sempre diferente e único. As cores do sol sobre o rio sobrepunham-se a tudo e a qualquer coisa fútil e fugaz. Era lindo demais! Do outro lado do rio, Tróia a compor o quadro. Era um belíssimo fim de tarde, com uma temperatura excelente. Mais um passo e estava no fim do muro que acompanha a ladeira. Nesse preciso ponto é uma esquina e esbarro em alguém que vem do meu lado direito. Levanto a cabeça e vejo um sorriso largo, acompanhado de um ar de espanto e admiração. Um sorriso que eu tão bem conhecia, o JM, ele mesmo, inteirinho, em pessoa... 

Nesse preciso momento percebi que não sabia de nada, que não tinha explicação razoável, plausível, nem mesmo inventando o que só podia ser uma invenção, não minha, do destino. Eu não invento, porque simplesmente não tenho a capacidade de alimentar a ficção. Eu sou sólida e mesmo no que toca ao plano espiritual, preciso de consistência, preciso de me sentir enraizada. O facto é que, sem saber como, os nossos passos, uma vez mais, tinham entrado numa sintonia cósmica perfeita, colocando-nos ali, uma vez mais, naquele momento e naquele lugar de sempre.


segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Viagem ao Paquistão - 54


Havia uns anos já que o Riaz estava comigo. A nossa relação como casal tinha tanto de descontraída como de conturbada. Não era fácil viver com um indivíduo muçulmano de origem paquistanesa, ainda mais por eu ser ocidental, nascida na Índia. Como ele próprio dizia, eu estava dividida em duas metades: uma ocidental, outra oriental. Paradoxalmente, isso deveria afastá-lo, pois nenhuma dessas condições combinavam com ele. No entanto e, novamente, paradoxalmente, eram essas duas condições que nos uniam e sem elas, a nossa relação nunca teria existido.

 

A questão é que eu o compreendia e aceitava. Aceitava o que conhecia e aceitava o que não conhecia, como um desafio. E aceitava porque queria, porque na verdade, nada, nem ninguém me obrigava a isso e quando eu contava às minhas colegas as coisas que fazia, ficavam incrédulas, achando que uma pessoa como eu, tão moderna, tão à frente, cabeça aberta, tão livre e independente, etc., não podia “submeter-me” às vontades dele. Só que elas não entendiam que eu não me submetia a nada e muito menos era forçada, bem pelo contrário, fazia exactamente o que queria. Que diferença me fazia entrar na água do mar vestida, em vez de ir de biquíni, quando era preciso?! Que diferença me fazia não comer carne de porco, se sempre fui alérgica ao porco?! Não poder usar decotes muito pronunciados e outras coisas do género… eu estava com um muçulmano, essa era a questão e seria muito burra se não soubesse o que isso significava. Portanto, ou aceitava ou não haveria relacionamento. E convém esclarecer que nada disso me inferiorizava, bem pelo contrário, porque o fazia com plena consciência de que o queria fazer. Era uma maneira de assumir a minha relação com ele.

 

Contudo, havia coisas em que eu não o deixava interferir. Por exemplo, com o meu filho. Um dia ele viu fiambre de porco no frigorífico e ficou furioso. Disse-lhe que era só ele que o comia, não eu, mas ele não ficou satisfeito e exigia que retirasse o fiambre e não o deixasse comer. Disse-lhe “não”, sem rodeios, sem hesitações, não. Não gostou, ficou chateado, mas expliquei-lhe que o que servia para mim não tinha que servir para o meu filho e que a relação dele era comigo e não com ele. Ficou calado, pensou, pensou e ponto final, não se voltou a falar no assunto.

 

Um dia disse-me que queria ir à terra dele, mas queria que eu fosse com ele. Aí estava uma coisa em que eu nunca tinha pensado, ir ao Paquistão. Já tinha estado com ele na Grécia e tinha sido maravilhoso, mas ir ao Paquistão… pensei, pensei, pensei muito. Falei com a minha família, perguntei a opinião de cada um… não que eles o decidissem por mim, mas queria ouvir o que os outros tinham a dizer acerca disso. Curiosamente, todos diziam que sim, porque todos gostavam dele. Contra todas as probabilidades, ele tinha sido aceite a cem por cento pela minha família e isso eu nunca iria entender, mas melhor assim, menos trabalho para mim convencê-los a aceitá-lo. E o facto de todos serem de opinião que eu poderia ir, seria uma boa razão para não ter dúvidas, mas na verdade não bastava.

 

Pouco depois de ter estado na Grécia fui submetida a uma intervenção cirúrgica urgente e fui para casa do meu pai para me recuperar. Mas era complicado porque o Henrique estava em casa do pai até eu voltar para minha casa e por mais que ele gostasse do pai, preferia estar na minha casa, portanto, precisava de mim em casa e isso estava a criar-me muita ansiedade, atrapalhando a convalescença. O Riaz, que tinha ficado na Grécia por conta do trabalho, veio imediatamente e expressamente para cuidar de mim. Isso eu nunca esqueceria em toda a minha vida, porque só assim foi possível o Henrique regressar à sua base e eu estar na minha casa. Ele cozinhava e cuidava de tudo.

 

Por todas as razões ou por muitas, aparentemente não havia razão para não fazer essa viagem, mas ainda não estava satisfeita e decidida a ir só pelo facto de ninguém me ter apontado um motivo em contrário e continuava à procura de indícios, isto é, à procura de uma resposta mais concisa(?)... nem tanto. Mais verdadeira, talvez. 

 

O nosso caminho está traçado, ainda assim, temos que descobri-lo. Então, porque não iria eu? Era a coisa de que eu mais gostava, viajar. Porque não? Porque não, era isso que eu precisava de saber porque, contra tudo e todos, a minha intuição falava mais alto, dando-me um alerta que eu não tinha como explicar. Precisava de uma resposta. Mas como? Como sempre. Escutando no silêncio dentro de mim. 

 

A verdade a todas as respostas de que precisamos está sempre dentro de nós, registada no nosso ADN. Não é mistério nenhum. A verdade está sempre connosco, desde o início dos tempos de toda a nossa existência, ou seja, desde sempre. É preciso saber escutá-la.

 

E comecei a minha busca na paz interior do meu ser. Eu queria saber se essa viagem era para ser feita ou não. Que ela me atraía, claro, mas isso não chegava, isso não era o mais importante. Queria tanto ir à Índia e aí estava a oportunidade de o fazer porque até isso  o Riaz tinha prometido, ir comigo à Índia, o que não era difícil e seria uma viagem de sonho. Mas se nada se cumprisse de acordo com o combinado e se tudo o que estava prometido não acontecesse como o previsto, essa viagem podia ser um inferno. Mas ele não faria isso comigo!?...

 

Em todo o caso, as viagens foram marcadas e as férias planeadas. A família dele telefonava e eu falava com regularidade com os irmãos que estavam lá, com o tio, que substituía o pai que já tinha falecido e todos me incentivavam e queriam muito que eu fosse. Eu fazia imensas perguntas ao Riaz sobre o que eu faria, como eu me relacionaria com cada um deles, o meu vestuário, a minha alimentação, o que visitaria, como seria o nosso relacionamento lá, visto que ele era casado e tinha um filho, mas isso não vem ao caso agora, isso é uma outra história. 

 

Eu iria respeitar a esposa dele e ser-lhe-ia apresentada como uma amiga. De resto, nós falávamos muitas vezes ao telefone e entendíamo-nos muito bem, porque como toda a gente sabe, eles podiam contrair mais do que um casamento, como acontecia com o irmão mais velho que vivia com duas esposas. Os mais novos, porém, as respectivas mulheres já não estavam a aceitar isso. A mudança começava a tomar forma e eu não queria que a mulher do Riaz me considerasse uma segunda esposa, de jeito nenhum. Não havia a menor necessidade disso. O nosso relacionamento só tinha acontecido por ele estar sozinho em Portugal e eu sabia que um dia teria o seu fim. Se ele estivesse com a mulher, jamais teria acontecido. Por isso, era importante definirmos o nosso relacionamento no Paquistão e eu tinha-o feito prometer que, enquanto lá estivéssemos, seríamos apenas amigos, só isso.

 

Enfim, eu fazia de tudo para me documentar, digamos assim, sobre essa que seria uma grande viagem, contudo não conseguia definir-me, não conseguia ver um sim definitivo e sem dúvidas. Por mais que tudo apontasse para lá, dentro de mim, bem no fundo da minha alma havia uma verdade que tardava em vir ao de cima e eu continuava sem saber o que seria porque, essa verdade, a ser não, teria que ter tanta consistência como a que teria o sim. E por enquanto, o não, apenas se manifestava num silêncio profundo, lá bem no fundo, fazendo-me permanecer na dúvida. Ainda assim eu sabia que tinha de lhe dar ouvidos porque tinha um peso enorme.

 

E um dia acordei com a lembrança de um sonho que tinha tido nessa noite. Assim que acordei revi o sonho por inteiro e percebi que nesse sonho havia algo de revelador. Eu estava no Paquistão, na casa do Riaz, à porta, do lado de fora, nos terrenos deles e dali avistava-se uma fronteira. Essa fronteira era a fronteira entre o Paquistão e a Índia e tinha uma porta. E para lá dessa porta, tudo era muito bonito, mágico, verdadeiramente tentador. Não que eu visse, porque estava do lado do Paquistão, mas os olhos da alma viam tudo isso e era aí que eu queria ir. Eu estava com um dos irmãos do Riaz que conheci na Grécia e pedia-lhe que me levasse lá e ele simplesmente me respondia que não, nem pensar. E depois de revê-lo várias vezes, de facto achei que era um indicador, não exactamente por ele me dizer que não podia ir à Índia, porque a linguagem onírica não é só simbólica, é também codificada. Se não fosse à Índia, ainda assim não seria uma tragédia. A tragédia escondia-se no que representava essa “fronteira” e no que estava barrado para lá dela. Essa fronteira representava literalmente o meu aprisionamento no Paquistão, o meu isolamento, as minhas dificuldades, a minha liberdade posta em causa e a não acessibilidade a tudo aquilo que eu queria e não poderia porque, fatalmente, seria feita “prisioneira” das vontades deles às quais, aí sim, teria mesmo que me submeter por estar na terra deles e não ter alternativa.

 

Durante todo o dia, enquanto trabalhava, o filme do sonho passava, passava e tornava a passar e a leitura era sempre a mesma. Não tinha nada que saber. Esse sonho era um indicador. Mas, até que ponto poderia levá-lo em consideração, uma vez que estava tão mergulhada e influenciada na dúvida? Apesar da verdade que ele continha, podia ser simplesmente o meu inconsciente a trabalhar em favor do subconsciente. Involuntariamente eu podia estar a atraiçoar-me. Logo, a coisa continuava a não ser decisiva e deixei o tempo passar.

 

Faltava uma semana para a grande viagem que continuava de pé, e um dia ligaram da agência dizendo que os bilhetes tinham que ser levantados no dia seguinte sem falta. Atormentada, pensei que o tempo se tinha esgotado e que estava na hora de saber. Mas não sabia mesmo que mais voltas dar. À noite, quando me deitei, e deitei-me um pouco mais cedo do que o costume porque me sentia esgotada física e psicologicamente, pedi a Deus que me trouxesse uma resposta imediata, porque já não tinha de onde sacar essa resposta. Era o meu último recurso e tinha plena consciência disso. Pedi com todas as forças do meu ser. Assim, adormeci.

 

O Riaz não estava porque nem sempre ficava comigo. Às vezes ficava na casa dele e nesse dia à tarde tinha ido ter com um amigo que já não via há muito tempo. Deitei-me por volta das dez e meia da noite e devo ter adormecido logo de seguida. Sei que acordei com a campainha de baixo a tocar. Achei que era engano, não liguei e continuei a tentar dormir. Mas o toque repetiu-se uma e outra vez. Olhei para o relógio, era uma e meia da manhã. O que poderia ser? O Henrique já estava a dormir e não queria perturbar o sono dele. Contrariada, levantei-me e fui ao intercomunicador. Era a voz do Riaz a pedir para lhe abrir a porta, porque ele não tinha chave. Disse-lhe que não eram horas de estar a tocar, que era muito tarde e estávamos a dormir. Pediu novamente para abrir a porta e só abri porque estava a falar muito alto e àquela hora, ia certamente incomodar todo o prédio, o que era uma chatice.

 

Num instante estava cá em cima, mas não estava sozinho. Queria entrar com o amigo que eu nunca tinha visto e queria que eu fosse com ele levá-lo a casa, de carro, claro. Percebi que não estava sóbrio. O Riaz não bebia álcool, por isso, bastava-lhe uma gota para ele ficar ko. Eu estava de rastos, morta de sono e tinha que aturar aquela cena completamente fora de contexto… alguma coisa estava errada. Ele nunca tinha feito uma coisa daquelas, porque se o tivesse feito antes, era certo que já não estaríamos juntos àquela altura. Disse-lhe que se fosse embora porque não ia levar o amigo dele, nem o queria lá em casa assim. Começou a exercer domínio sobre mim para não ficar mal visto perante o amigo e a dar-me ordens, etc, etc. Fiquei muito nervosa e disse-lhe que não o queria ver assim, que se fosse embora, que queria dormir e não o ia aturar, nem a ele nem ao amigo e que chamaria a polícia se fosse preciso. 

 

Depois desta cena, não teve outro remédio e foi-se embora. Felizmente que ele não gostava de bebida, mas aquela cena não vinha por acaso, porque era simplesmente a resposta que eu tinha pedido. Já não tinha dúvida alguma. A viagem não era para ser feita porque aquilo era apenas uma pequena amostra das surpresas negativas e desinteressantes que me aguardavam numa terra estranha em que eu, com toda a certeza, perderia toda e qualquer “chance” de fazer o que queria. 

 

A fronteira do sonho jamais seria ultrapassada. Ela estava ali, bem presente, naquele indesejável episódio e era apenas uma pequena amostra de todos os aborrecimentos que eu teria de enfrentar em território muçulmano.

 

Mesmo sem saber, o Riaz tinha acabado de me fazer um enorme favor. Ele próprio, que tanto queria que eu fosse, quase se recusava a ir caso eu não fosse, tinha acabado de ser o portador da verdade que tão bem se escondia, porque aquela atitude tão fora de propósito era tudo o que eu precisava. Era a resposta indubitável de que aquela viagem não era mesmo para ser feita.

 

E não foi.


domingo, 31 de agosto de 2014

O guarda-sol - 53


O Verão de 2013 foi um Verão quente, especialmente quente, por isso as praias em todo o país estiveram sempre cheias, mesmo lotadas. Então, eu e a Sofia, uma amiga com idade para ser minha filha, fomos muitas vezes juntas para a praia, um dia no carro dela, outro dia no meu. 

Num sábado em que ela começava a trabalhar só a seguir ao almoço e as temperaturas logo pela manhã estavam muito acima dos trinta graus, combinámos ir à praia, sendo que saíamos às oito e meia para estarmos na praia às nove e às onze regressávamos. Duas horas de praia chegava e dava tempo para ela se arranjar, almoçar e ir trabalhar. 

Nesse dia fomos no meu carro e entrámos em desacordo porque ela queria ir para a Ericeira e eu para a linha. Comecei a tomar o rumo da linha e ela muito chateada, parecia uma miúda pequena, porque queria à força ir para a Ericeira. Fui-lhe dando várias razões, mas ela não aceitava. Um calor abrasador e aquele clima entre as duas, as coisas não estavam a começar da melhor maneira. 

Quando entrámos na marginal o trânsito estava um horror. Ainda não eram nove horas, o calor já estava insuportável e as praias cheias de gente. Na verdade, já me tinha arrependido, mas agora não tinha como sair dali e estávamos muito perto, só que o trânsito não andava e a Sofia de mau humor, que chatice! Parecia que todo o mundo tinha ficado na praia de véspera, porque aquilo não era normal. Carros estacionados por todo o lado, uma confusão dos diabos! Um verdadeiro caos. 

A Sofia queria fazer toplesse, queria espaço para ela sem ser incomodada por ninguém e com aquele amontoado de gente era impossível e queixava-se de que as brigas dela com o ex-namorado eram sempre por causa daquilo. Queria praias que lhe dessem espaço e privacidade, no que não deixava de ter razão, mas àquela altura já não havia volta a dar, porque dali não tínhamos como sair e a verdade é que para o outro lado, em fim-de-semana e com aquele calor, também não seria muito diferente. 

Agora a nossa preocupação era com o estacionamento. Onde iríamos estacionar? Mas eu dizia-lhe que havia de haver um lugarzinho à nossa espera, um lugar que ninguém via, o que em boa verdade aconteceu. Entrei no parque e lá estava aquele lugar ligeiramente fora da marcação, mas que devidamente estacionado nem se dava por isso. Assim foi e só por isso a Sofia já ria. Pegámos na tralha e lá fomos, sem saber para onde ir nem por onde abrir caminho. Nunca se vira uma coisa assim e um calor insuportável, parecia o Brasil, porque naquele ano até a água estava quente, por causa das temperaturas excessivamente altas. 

Onde fixar o guarda-sol? Onde pôr os pés? Por onde caminhar, se não havia espaço?! Insuportável. Já tinha sido uma coisa extraordinária termos conseguido chegar ali e ainda mais termos arranjado lugar, quando todos os carros andavam às voltas parecendo umas baratas tontas. Um calor abrasador e eu só queria largar tudo e entrar pela água dentro e a Sofia outra vez mal disposta. Há dias em que não se pode sair de casa. Aquele era um deles. 

Enfim, com muito custo e já extenuadas entrámos à força na areia, com muito cuidado para não pisar ninguém, curvando-nos para passarmos por baixo dos chapéus, que eram mais que muitos e todos juntos, era realmente dramático. Toda a população de Portugal inteiro estava espalhada pelas praias que não davam vazão. Não se conseguia perceber onde acabava uma família e começava outra. 

Era preciso ver que eram apenas nove horas da manhã e aquilo já estava assim. Muita gente devia ter ido de madrugada, talvez até durante a noite. Há gente que tem dificuldade em dormir por causa do calor, por isso não me admirava nada que tivessem ido dormir para a praia. A areia estava a ferver, a água um caldo, estavam todas as condições reunidas para, a qualquer hora, quererem estar na praia o que, aliás, para muitos, seria mesmo a única solução. 

Mas e agora, nós, onde conseguiríamos um espaço para assentar e pôr as nossas coisas? O guarda-sol nem pensar, mas também quase não era preciso, porque os chapéus estavam todos tão próximos uns dos outros, que se apanhava uma sombra de qualquer lado. A questão era haver espaço. 

Com um ar desolado, as duas caminhando pela areia, insistindo e forçando a passagem, já nem queríamos saber se incomodávamos ou não. Só queríamos fazer valer o nosso direito de também estar ali. Na retaguarda, as pessoas que chegavam ficavam paradas, sem se moverem, olhando a massa de gente na praia, sem saberem o que fazer. Mas nós não íamos entregar os pontos assim tão facilmente. 

Já estávamos quase junto à água, paradas, olhando em volta uma brecha que não conseguíamos vislumbrar, quando de repente uma criança pequena se levantou e se dirigiu para a água. A seguir, alguém foi atrás dela. Rapidamente nos apropriámos daquele minúsculo espaço. Desviámos um pouco as toalhas que estavam no chão e como quem não quer nada, mas sentindo-nos umas intrusas, largámos os sacos no chão o mais juntos possível para não se misturarem com os de mais ninguém e aí ficámos, olhando uma para a outra, com umas caras de lástima. 

Com cuidado, tirei o guarda-sol, não precisamente por causa do sol mas para afastarmos um pouco de nós os que estavam em volta. Era realmente desagradável e sufocante. Estávamos completamente em cima uns dos outros. Montei o chapéu e disse à Sofia que ia à água, porque estava com muito calor e cansada. Como ela estava chateada ficou na areia, estendida, de barriga para baixo e com a cabeça entre os braços, para tentar evadir-se e esquecer que estava quase colada aos outros. Toplesse, nem pensar, claro. 

Fui para a água e entrei de supetão. Que bem que aquilo me sabia porque, uma vez dentro de água, o calor já não me incomodava. A água reanimava-me e as minhas energias já estavam renovadas. Tínhamos conseguido chegar à praia, estar na praia e eu estava na água que era tudo o que queria. A Sofia estava a torrar, que era a preferência dela. Mas tinha valido a pena chegar até ali e a água estava óptima! 

Nunca tinha visto tanta gente na praia. Sem dúvida, era um verão fora de série. Havia tanta gente na água, um magote! Parecia uma banheira gigante. Tínhamos que ter cuidado para não dar uma braçada ou uma patada em alguém. Era uma loucura. Mas enfim, era o que tínhamos. De tanto que pedíamos o calor, ele aí estava com toda a força. Tínhamos que o aproveitar e saber tirar o melhor partido da situação. 

Estive uns dez minutos na água, depois resolvi sair e ir para junto da Sofia apanhar sol, enquanto o corpo estava fresco, o que não seria por muito tempo. Ainda dentro de água olhei em frente para a areia à procura de espaço ao pé da Sofia, mas não a vi. Comecei à procura do guarda-sol, mas também não o encontrei. Com calma, saí da água, olhando com mais atenção. Certifiquei-me do sítio onde deveríamos estar, mas não vi o guarda-sol e nem a Sofia. O que se estaria a passar? 

Teria ela ido andar um pouco a pé? Era pouco provável, mas talvez tivesse encontrado alguém conhecido e podia ter ido falar com essa pessoa, mas, nesse caso, o guarda-sol, onde estaria o guarda-sol? Volto para a água, para me afastar da praia e ter um maior campo de visão, mas continua tudo na mesma. Nem sombra da Sofia e quanto ao guarda-sol, havia muitos azuis, mas nenhum deles era o meu. Olhei para o morro, para mais uma vez me certificar da direcção onde supostamente deveríamos estar e achando que não havia como errar, começo novamente a seguir todos os chapéus azuis, mas nenhum era o nosso. 

E a Sofia? Ela, simplesmente, não podia ter-se evaporado? Nem ela nem o chapéu e nem as nossas coisas! E eu na água, de bikini, sem mais nada!... Começo a equacionar todas as suposições prováveis, todas as conjecturas possíveis e até as impossíveis. Cheguei mesmo a pensar que a Sofia se teria ido embora, porque ela não queria estar ali e porque ela estava de posse de tudo, dos sacos, das chaves do carro, etc... mas não, isso não podia ter acontecido. Compreendo que todos temos o direito de às vezes nos passarmos e fazermos coisas inconcebíveis, mas isso ela nunca faria, era impossível. Contudo, o facto é que ela não aparecia, nem ela nem o chapéu. 

Já meio transtornada e a ficar em pânico, começo a percorrer a praia. Primeiro para um lado, depois para o outro e ando na beira da praia, depois mais acima, feito louca, meio doida varrida, toda a pingar água por todos os lados e a tentar controlar-me porque só já me apetecia gritar. Mas isso não podia acontecer. Tinha que me controlar, fosse de que jeito fosse. 

Finalmente dou-me por vencida. A Sofia não estava na praia e o chapéu evaporara-se. Tudo tinha desaparecido (ou não), o certo é que eu não tinha mais por onde procurar. Assim, restava-me uma única solução: pedir ajuda. Mas também não tinha a menor ideia de como fazê-lo. Iria aonde, ter com quem, dizer o quê? Eu, uma mulher de sessenta anos, perdida na praia, ah, essa não! Que cena! Realmente, se há mesmo dias em que não devíamos sair de casa, aquele era o dia. 

Agora tinha de agir e o mais depressa possível, porque precisava de saber o que se estava a passar e não aguentava mais aquela irrisória situação. Tinha que pedir ajuda. O que fazer? Procurar alguém, alguma pessoa dali mesmo, dizer que estava aflita, que a minha amiga tinha desaparecido da praia e eu não tinha nada, nem roupa, nem chaves, nem telemóvel, nada. Estava a sentir-me como que nua, literalmente nua, indefesa, envergonhada, tola, tudo isso e muito mais. Era absolutamente ridícula toda aquela situação, porque uma cena daquelas não podia acontecer. 

Olhei rapidamente, mas as pessoas estavam todas ocupadas com os outros ou consigo mesmas e depois quem é que ia querer saber de mim? Eu não queria mesmo incomodar ninguém, mas alguém ia ter de me ajudar. Estava exactamente no sítio onde devíamos estar. De pé, olhando em volta, tentava perceber qual a pessoa que estaria mais disponível para me ouvir. Um casal, outro casal, uma avó com dois netos... que bronca(!)… e vejo um indivíduo por volta dos quarenta anos, talvez um pouco menos. Olhei bem e pareceu-me que estava sozinho. Estava à procura de qualquer coisa na mochila... uma sandwish. Rapidamente vou na direcção dele que está a cinco metros de distância e antes que meta o pão à boca, mas já metendo, chego e digo-lhe precisamente que preciso de ajuda. 

Contrafeito, tira o pão da boca e fica sério a olhar para mim, e com ar desconfiado repete as minhas palavras: precisa de ajuda?! Sim, digo eu e pergunto-lhe se está sozinho. Ele, cada vez mais contrafeito, com cara de quem não esconde o seu desagrado e que não está a gostar nada da cena, diz-me que está sozinho, sim, porquê? Claro, só podia. Também... chega uma desconhecida ao pé dele, enfim... e antes de mais nada, digo logo que estava na praia com uma amiga mas que ela desapareceu enquanto fui à água, ela e bem assim, o chapéu. O indivíduo, sem saber o que dizer e o que pensar, olha para mim cada vez mais intrigado, perguntando como é que eu não sabia da minha amiga, então não sabe onde é que ela está e eu digo, não sei e não sei o que fazer. 

Entretanto, uma senhora que estava ali ao pé, debaixo de um chapéu, ouve a conversa e pergunta-me qual é a cor do chapéu, para eu procurar e eu respondo que isso já eu tinha feito, sem sucesso. Os dois perguntam ao mesmo tempo, onde é que eu devia estar e eu respondo aqui, aqui mesmo, ao mesmo tempo que aponto para o chão; e enquanto aponto para o chão, alguém se levanta e chama por mim, Luisa... qual não é o meu espanto, quando vejo a Sofia ali mesmo, claro, levantando-se, agarra-se ao meu pescoço dizendo que já estava muito preocupada porque eu nunca mais aparecia e que já tinha ido à água à minha procura e não me tinha encontrado e estava aflita. 

Meia aparvalhada, percebo que a Sofia estava e sempre esteve exactamente no sítio onde eu a tinha deixado, no sítio por onde eu já tinha passado várias vezes, no sítio onde eu sabia que nós estávamos. E o chapéu? Ah… o chapéu!...O chapéu também. Nada se tinha evaporado, tudo estava como deveria estar. Tudo tranquilo, tudo certo. 

Então? 

Então, que o chapéu estava lá, é verdade, só que não era azul, era vermelho. Vermelho!? E eu sempre à procura de um azul! Ah, disse eu e levei um susto, porque percebi que tudo se tinha dado por conta de um erro meu. O chapéu era vermelho e era meu. Eu mesma o tinha comprado. Como podia acontecer-me uma confusão daquelas? 

Mas este erro não era um erro qualquer. Era um erro assaz importante e com o qual aprendi. 

A nossa mente é diabólica. Eu tinha feito uma programação inconsciente e só naquele momento acabava de ter essa consciência. Quando comprei o chapéu eu queria um azul. Azul é a minha côr de eleição. Acontece que não havia azul. Procurei em vários sítios e não tendo conseguido um azul, fui obrigada a escolher outra cor, tendo optado pelo vermelho. 

Mas o facto de ter comprado um guarda-sol vermelho não mudou nada. Ficou subjacente na minha mente o chapéu azul que eu queria, apesar de o não ter conseguido. Inconscientemente, tinha feito uma programação mental, sem ter levado em conta o quão importante era a cor. 

Bem, depois disto pedi desculpa dando uma explicação sumária, porque me senti tão mal que achei que era o mínimo a fazer para limpar a minha imagem, para que não ficassem a pensar que eu era doida. E tudo terminou bem. A Sofia puxou-me e fomos para a água arrefecer os ânimos, rindo muito daquela maluquice toda e ficou bem disposta com tanto que riu, tanto que, ao entrar na água até dizia “somos todos uma família”. Queria isso dizer que, finalmente, tinha aceitado estar ali como todos os outros. 

Na água, muito nos rimos e divertimos. Dávamos vazão a todas as peripécias e todas as chatices que tínhamos vivido naquela manhã. Agradecíamos à vida o facto de estarmos aliviadas e de tudo ter terminado bem. A água estava uma delícia e brincámos com outras pessoas e crianças que estavam ali também. Quando voltámos à areia já não tínhamos lugar para nos estendermos, mas ficámos sentadas. E nesse instante em que nos sentámos, um garotinho que vinha da água, ali mesmo em cima de nós, deu um berro "Vóoooooooo..."! No meio daquela confusão, ele não tinha reconhecido nem o chapéu de sol, nem a irmã, nem a avó, que mesmo ao lado dele o agarrou pelo braço e o puxou, dizendo-lhe também a gritar "estou aquiiiii... já te disse para quando fores à água vires sempre na mesma direcção"… 

Eu e a Sofia olhámos uma para a outra e desatámos a rir. Parecíamos umas tontas. Mas a história do chapéu não ficou por ali. Devia, mas não foi. Aquela situação não foi o suficiente para reprogramar o meu cérebro. Uns dias depois fomos para a Ericeira, para a Sofia fazer o seu merecido topless e ficámos do lado das rochas, para onde quase ninguém vai. Haviam três chapéus, com o nosso eram quatro. Fui à água e a Sofia ficou a torrar. Quando saí da água, olhei os chapéus à procura do nosso e onde é que ele estava? 

Mais uma vez eu procurava um chapéu azul e não o vendo, comecei a sentir aquele mal estar do outro dia, mas rapidamente me lembrei da cena. Então olhei as pessoas que estavam debaixo dos chapéus e lá estava a Sofia toda estiraçada na areia, debaixo do chapéu vermelho. Ah, o chapéu era vermelho! Nem queria acreditar que estava novamente no mesmo registo. 

Esta história só acabou porque, contando ao meu filho, ele ficou um pouco apreensivo com a situação e logo tratou de me comprar um chapéu azul. Finalmente eu tinha um chapéu azul. 

Umas semanas mais tarde fui à praia, toda contente com o meu chapéu azul. Eu tinha um chapéu azul, lindo. Quando me vinha embora, estava a levantar-se muito vento e ao tentar fechar o chapéu, o vento virou-o e partiram-se umas varetas. Ficou tão danificado, que dali já não saíu. Infelizmente, achei que não valia a pena levá-lo. 

Porém, na bagageira do meu carro, está novamente um chapéu azul.  Eu vou à praia mas o guarda-sol, até ver, fica na bagageira do carro. Dali não sai. Este, veio para ficar. 

Porque eu quero.


terça-feira, 19 de agosto de 2014

O Dieter - 52


Era o mês de Julho de um verão com dificuldades em chegar. Os dias já estavam quentes, mas não muito e com alguma instabilidade. Naquele sábado, porém, o dia estava bonito, radiante, porque o sol brilhava e a temperatura estava amena. Os dias cinzentos tinham sido uma constante do inverno, prolongando-se pela primavera e teimavam em ficar. Tinha uma consulta marcada sem hora definida, porque se tratava de uma urgência. Na tarde do dia anterior, tinha ido até à cozinha, porque me apeteceu comer alguma coisa. Era hora do lanche, por isso fui à fruteira e tirei uma maçã que, depois de lavar, meti à boca. Logo na segunda ou terceira dentada, o aparelho de contenção dos dentes do maxilar inferior veio atrás da maçã.

 

É verdade que a maçã era um pouco rija, mas já tinha o aparelho há tantos anos e nunca tinha acontecido nada. Daquela vez aconteceu e aí estava ele a dar-me problemas. Fui ver no espelho e apenas tinha descolado na parte central, porque continuava fixo nas pontas, porém, não podia ficar assim. Os dentes começariam logo a desandar e eu não suportava a ideia de voltar a andar de "ferraduras". Já não tinha mais idade para isso, portanto, era absolutamente necessário marcar uma urgência.

 

Tinha conseguido a consulta mas nada garantia que seria atendida. A condição era ficar disponível a partir das três horas da tarde, para ser atendida pelo primeiro dentista que tivesse uma aberta, o que poderia ir até às sete da tarde, e para piorar a situação, seria uma despesa com que seguramente não contava, nem tinha ideia do quanto teria que gastar.

 

No sábado acordei nervosa, mas isso eu já sabia que iria acontecer. Lembrei-me de imediato do que me estava reservado, do dinheiro que teria de "inventar", dado que o meu seguro da Médis não cobria dentista e, enfim, tudo andava para atrás. Desde o início do ano que tinha sido assim. Por mais esforços que fizesse não estava a conseguir aguentar a pressão. Sentia-me perturbada e insegura. A cena das "crianças" irem para os Estados Unidos por dois anos tinha-me deixado de rastos, e por mais que quisesse fingir que nada se passava, era completamente impossível. Estava estampado no meu rosto com demasiada evidência e não me apetecia ver ninguém e muito menos falar.

 

Faziam sempre as mesmas perguntas que não ajudava em nada e ninguém percebia isso. Toda a gente achava que era óptimo, excelente, o facto de irem para Nova York. Claro que sim, mas e eu? Falar pelo skype, com certeza mas e tudo o resto? E a minha neta Sofia? Iam em Setembro, em Dezembro já estariam de regresso para o Natal. Depois, em Agosto, viriam passar férias e era num instante que o tempo passava. Só dois anos... dois anos! Para os outros, talvez, para mim era uma eternidade.

 

Olhava o relógio e nunca mais eram horas de ir para o dentista. De qualquer modo, não adiantava ir antes das três, pois não estaria lá ninguém. Mas como estava muito ansiosa decidi antecipar-me. Precisava de sair de casa, não sabendo bem para onde e na realidade precisava bem mais do que isso. Precisava mesmo era de encontrar alguém com quem pudesse falar, falar... embora também não soubesse o quê. Mas precisava de algo novo; um agito na minha vida; algo que me desse ânimo. Precisava sair de dentro de mim e focar-me em algo fora do meu ser. Estava cansada de carregar com a minha ansiedade e a dos outros também. Em resumo, estava farta.

 

Foi então que me olhei no espelho e prestes a sair de casa vi as horas, percebendo que tinha tempo. Porque não me arranjava convenientemente? Estava escrito na minha cara que não queria ver nem falar com ninguém, mas era preciso mudar esse padrão e não custava tanto assim. Só um pouco de paciência comigo mesma e a transformação valeria a pena.

 

Vendo o meu rosto assim, com os olhos esfumados e o rímel, só isso era mais do que suficiente para disfarçar as olheiras a que ultimamente já me tinha habituado e que tanto detestava. Em seguida, liguei o babyliss e passei por todo o cabelo. Rapidamente troquei as jeans por umas calças de seda mais leves. Depois, troquei de saco de mão e voltei a olhar-me no espelho. Que força estranha me impelia a fazer o que aparentemente não queria ou não me apetecia. Mas uma vontade maior do que a minha apelava agora a todo o meu ser, numa súbita necessidade de resgatar a minha própria identidade. Eu queria viver e ser feliz e algo me travava. A minha vontade habitual estava bloqueada. Algo faltava e algo falhava em mim.

 

Espelho meu, espelho meu... não sabia para que me tinha dado a todo aquele trabalho. É verdade que estava bem, bastante bem até. As olheiras tinham desaparecido como que por magia. E não fora só por disfarce mas porque, enquanto me pintava, me distraía. Há criatividade nisso e eu gosto. Depois, logo os meus olhos ficaram com outra vida e ao ver-me assim, percebi que era de novo eu que estava ali. Olhando para mim agora, assim, ninguém poderia dizer que estava deprimida. Ninguém. Nem eu mesma. A minha confiança e a minha auto-estima vieram ao de cima rapidamente. Porque não fazia aquilo todos os dias, como sempre fizera? Porque me tinha desleixado nos últimos meses, entregando-me a uma neurose aparentemente sem razão!?

 

A vida tem que ser aceite como é. As coisas vão, as coisas vêm; pessoas vão, pessoas vêm. As coisas às vezes melhoram, outras vezes pioram. É assim, sempre foi e sempre será. Porque se complica sempre tudo? "Aceitação" é o segredo para viver em paz e harmonia. Eu sabia tudo isso e nem percebia porque estava a repetir tudo aquilo que estava farta de saber. Mas no fundo continuava a perguntar a mim mesma para que me tinha dado a tanto trabalho. Estava bem demais, mas para quê? Não ia encontrar ninguém e muito menos falar com quem quer que fosse.

 

E quem poderia responder a isso? Porque não encontraria ninguém? As pessoas andam na rua, umas e outras. Porque não se daria algo de diferente? Já me tinha acontecido tanta coisa! Aliás, toda a minha vida tinha sido pautada por insólitos e coisas inéditas, as mais imprevisíveis e eram essas as que mais apreciava e as que mais me tinham marcado. Provavelmente nada aconteceria, além de me encontrar com o dentista, sentada na cadeira, enquanto ele me mandaria abrir a boca várias vezes. Mas o facto de desejar e de sonhar já era alguma coisa, já era um padrão diferente daquele que ultimamente ia na minha cabeça. Estava na altura de reparar mais nos outros do que em mim, o que seria uma boa terapia.

 

Saí de casa com mais de uma hora de antecedência porque não aguentava mais. A minha autoestima e confiança tinham retornado, mas a ansiedade continuava como antes. Estacionei o carro um pouquinho distante para não ter de pagar parquímetro e para me permitir andar um pouco a pé na beira do rio. Gosto muito de passear no Parque das Nações. Se pudesse era ali que morava.

 

Peguei num livro e no I Pad e aí fui eu, observando as pessoas, detectando o seu estado de espírito, lendo-lhes a mente, enfim, divagando ao sabor da percepção. Cada um na sua. Cada um, um mundo diferente. Olhava a ponte, os carros, vum... vum... vum... os desportistas andando e correndo, esfalfando-se... como os admirava, porque sempre achei aquilo um sacrifício. Andar de bicicleta, tudo bem, mas correr assim?

 

Já tinha andado quinze minutos. Andando e parando entrei numa zona de sombra por causa das árvores frondosas dos jardins do oriente, quando resolvi sentar-me um pouco e ficar. Havia uma ou outra pessoa, mas nada de mais. Olhei para o relógio e faltava, nada mais, nada menos, que uma hora. Ficaria bem ali, olhando o rio, observando o vôo das aves, curtindo a quase imperceptível aragem. Meditaria um pouco, também e então chegaria a hora do dentista.

 

Onde sentar? Num banco... não, na pedra que corre junto ao rio. Era importante o lugar que escolheria. Os caminhos não passam todos pelo mesmo sítio e o sítio onde eu me sentasse, com certeza decidiria os acontecimentos (ou não). Percebi que as minhas energias estavam no comando e a minha sensitividade me guiava fortemente porque, de repente, a minha voz interior dizia não, aí não. Até que apareceu uma zona que me impeliu e me guiou até lá. Fosse por que fosse, era ali que devia abancar e assim o fiz.

 

Olhei à direita, uma rapariga sentada uns metros mais adiante. À esquerda, uma outra e um pouco a seguir um casal. Atrás, quase ninguém passava. Estava-se bem. Olhei o rio, observei novamente o vôo das aves e fiquei no vazio. Estava sentada na pedra frente ao rio, com uma perna no chão e a outra em cima. Pus as coisas que trazia comigo ao lado e apertei o joelho contra o estômago. Depois troquei. Estiquei o pescoço, ajudando a coluna a alongar-se e a relaxar e deitei a cabeça para trás, ao mesmo tempo que observava a rama das árvores frondosas e frescas.

 

Alguém passou atrás de mim. Oh, queria lá saber. Não era ninguém que conhecesse, de certeza. Mas parou um pouco mais à frente, do meu lado esquerdo. Como quem não quer nada, olhei discretamente. Um indivíduo de bicicleta. Não interessava, mas percebi que ele tinha firmado a bicicleta contra o chão e se tinha afastado. Olhei mais uma vez, tão discretamente quanto  possível e vi-o tirar uma foto à bicicleta que estava carregada que nem um burro. Nunca tinha visto uma bicicleta tão carregada. Até saco cama ou algo semelhante ele levava. Devia vir de longe, pensei. Além disso estava equipado com todo o rigor dos pés à cabeça. Numa bicicleta... incrível!

 

Continuei no meu canto, tentando evadir-me. Mas então, senti o olhar dele na rapariga que estava quase ao pé da bicicleta e pensei que ia falar com ela. Depois, olhou em volta, atentamente, e desistiu do que quer que era, ou não. Senti o olhar dele em mim e fiquei um pouco incomodada. Que quereria ele? E de repente percebi que devia querer uma foto com ele ao pé da bicicleta. Veio na minha direcção e senti-me bastante desconfortável, sem saber o que fazer. Achei por bem ignorar. Mas ele baixou-se um pouco e perguntou-me algo que achei que não tinha entendido. Mas quando o repetiu em inglês, percebi que afinal sempre tinha entendido. É que, primeiro, falou em alemão e isso deixou-me na dúvida, e só depois em inglês. Não estava à espera que fosse  um alemão.

 

Dieter, pediu-me para lhe tirar uma foto ao pé da bicicleta e ensinou-me como o fazer, a partir do seu telemóvel. Ok, tirei uma e mais outra. Ele veio ter comigo e devolvi-lhe o telemóvel, que agradeceu. Perguntei-lhe de onde vinha. Seguem-se uma série de perguntas e respostas de parte a parte. Quinze minutos depois já falávamos um com o outro com grande entusiasmo e mais quinze minutos e já sabíamos muita coisa acerca um do outro. Entretanto, estava quase na hora de ir para o dentista e perguntei-lhe se ele queria deixar a bicicleta de lado e dar uma volta no meu carro. Expliquei-lhe que tinha uma consulta que não sabia quanto tempo teria que esperar. Ele disse que não tinha importância, que o hotel dele era ali mesmo e que aproveitaria para descansar. Trocámos os números de telefone para nos contactarmos e cada um foi à sua vida. A minha auto-estima continuava em alto e agora sentia-me rejuvenescida. Afinal valera a pena ter-me produzido. Agora as coisas começavam a fazer sentido. Em todo o caso tinha que ir para o dentista que podia levar horas para me atender e o nosso encontro poderia ficar comprometido em função disso ou até adiado "sine die" posto que, no dia seguinte, ele regressaria à Alemanha.

 

Chegada ao dentista mandaram-me sentar e esperar. Fui à casa de banho e sentei-me. Mal tinha acabado de me sentar veio uma assistente que me mandou entrar. Fiquei boquiaberta e estupefacta. Um dentista ia atender-me de imediato. Nem queria acreditar! O destino parecia estar a meu favor. O puzzle da vida encaixava-se naturalmente. Em meia hora estava a sair do dentista com o problema dos dentes resolvido e ainda por cima tinha pago uma ninharia, comparado com o balúrdio que eu achava que ia pagar. Sentia-me leve, mas com a adrenalina a chamar por mim de todas as formas. Estava livre para uma tarde que seria muito bem saboreada e nada desperdiçada.

 

Liguei para o Dieter que já estava pronto. Veio ao meu encontro no lugar em que tínhamos combinado e em dois minutos aí estava ele, novo em folha, sorridente, simpático, afável e ao mesmo tempo misterioso. Vestia uma t-shirt branca que realçava o azul dos olhos e o cabelo era claro com muitos brancos à mistura, mas podia dizer-se que estava muito bem para os seus cinquenta e dois anos. Fomos pela linha do Estoril e parámos numa esplanada ao ar livre sobre a praia. Estava um tempo muito agradável, um dia óptimo e aí ficámos, esquecidos do tempo, falando das nossas vidas. A vida pessoal, familiar e até o trabalho. De tudo nós conversámos.

 

Dieter, tinha vindo da Alemanha a pedalar até Portugal, carregando com ele apenas o estritamente necessário. Tinha sido uma aventura inesquecível, segundo ele mesmo e Portugal tinha sido uma descoberta muito agradável, com tudo o tinha para oferecer. Estava encantado com o nosso país. Dieter não se comunicava com a família desde que tinha saído de casa. Para o efeito, tinha aberto um blogue no qual postava tudo. Os sítios por onde passava, onde ficava, o que comia. Tirava fotos dos lugares, dos restaurantes, enfim, tudo estava no blogue que a família seguia com a curiosidade que o assunto merecia. Ficámos juntos até à noite e cerca das dez horas deixei-o no hotel e fui para casa, com as lembranças daquela inesperada tarde, que tanto fugia à minha rotina e que muito bem me fizera. O destino tinha preparado um encontro leve, que nos tinha dado muito prazer a ambos e eu estava grata à vida por isso.

 

O tempo passou e eu fui esquecendo o Dieter. Outras coisas vieram. Tínhamos trocado endereço de mails, mas eu deixaria que fosse ele a comunicar comigo, a dar sinal da sua chegada. E o tempo continuava a passar e eu já me tinha esquecido daquele agradável episódio. Já nem me lembrava mais dele.

 

Um dia à noite em que estava sentada a ver televisão, de repente, a minha atenção foi desviada por um breve flash que passou na minha mente, no qual, apenas aparecia a imagem do Dieter. Não sabia porquê. Estava atenta ao que estava a ver na tv e não estava a pensar em mais nada. Foi como se alguém tivesse falado nele, porque a minha atenção foi abruptamente cortada para entrar a imagem dele, que se foi no mesmo instante. Achei muito estranho e ao mesmo tempo pensei que ele nunca mais tinha dado notícias. No mesmo instante, o telemóvel dava sinal de chegada de mail. Um mail, pensei, é o Dieter! Só podia ser. Por isso aquele inesperado flash. Peguei no I Pad que estava mais perto de mim e abri a caixa de correio electrónico. Lá estava o mail acabadinho de chegar:


“Dear Lilly, on Monday, 30.Jun the airplane brought me back to Germany. I had some very good days in Lissabon and I specially enjoyed the few hours on Friday with you. It was a pitty, we didn't had more time for each other...”

 

A Internet é uma coisa fabulosa. O mail do Dieter atravessou vários países e percorreu parte da Europa vindo das mãos dele directamente para as minhas. Se pensarmos bem nisso, realmente, é um feito e tanto. Não é pouca coisa, não, de modo algum. Eu já não saberia viver sem Internet e muitos de nós ficariam completamente perdidos e até isolados. Mas a mente é um computador vivo. A mente humana ganha pontos. A verdade, é que, o momento em que ele carregou na tecla "enviar", foi o momento em que eu o vi. Aquele disparo da cabeça do dedo indicador - porque nesse preciso momento ele pensou em mim com toda a carga energética - accionou a recepção no meu cérebro, fazendo a imagem dele aparecer na minha mente. Apenas isso, esse poder de comunicação a que se chama "telepatia" e cujo percurso foi mais rápido do que a Internet. É praticamente instantâneo.

 

Para a telepatia só é necessário um "emissor" e um "receptor", nada mais. Não são necessários fios, maquinaria, nada.

 

O que está escrito no mail é secundário e eu ou qualquer um podia adivinhar. São apenas palavras de cortesia que traduzem um sentimento comum aos dois.  Achei até que não iria chegar mail nenhum, o que não teria a menor importância. Foi um encontro agradável, mas casual, sem antecedentes nem precedentes.

 

Se há uma coisa que tem que ser percebida pelos humanos é que a força do pensamento é mais forte do que o ser humano em si.  É algo que nos supera, apenas porque nos passa ao lado.  Quando tomarmos consciência dessa realidade, imediatamente teremos mais campo de acção e os nossos "super poderes" serão definitivamente desbloqueados. 

 

O ser humano tem tudo para ser muito mais do que é. Mas é limitado porque quer. Porque não acredita em si mesmo. Porque se fecha ao seu próprio potencial para recorrer a qualquer coisa que venha do exterior. Não importa o que é. É preciso é que venha de fora de si, porque não confia em si mesmo.

 

Fala-se tanto da passagem da terra para outra dimensão - a nova terra -, essa nova terra só terá lugar se nós mudarmos. Se continuarmos como somos, sem abrir as vias da informação que sempre existiram em nós, mas que estão adormecidas, bloqueadas, nunca assistiremos a essa nova era, nova terra, a tão desejada. O bloqueio permanecerá.

 

Até quando?  

 

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O cão da Wanda - 51


Eram onze e meia da noite quando cheguei à porta do prédio onde vivo. Com as chaves na mão para abrir rapidamente a porta e entrar no prédio, alto!... Algo me impedia de o fazer. Nem tentei abrir a porta. Precisava de perceber o que estava a acontecer. Do lado de dentro estava um cão de pé, imóvel e virado para a saída, portanto, frente a frente comigo, separados apenas pelo vidro da porta. Eu olhava para ele e ele olhava para mim, sem se mover. 

Não sou muito chegada a animais. No meu prédio quase toda a gente tem animais domésticos. Ou é um cão ou é um gato e às vezes até mais do que um, mas eu nunca tive animais, nem mesmo quando era pequena. Na minha família nunca houve animais em casa. 

Não posso dizer que não gosto, porque isso não seria verdade, mas eu cá e eles lá. Com os animais das minhas vizinhas e amigos, brinco, mimo-os, tenho uma boa empatia; com os outros não. Se eu não conhecer o animal, fico intimidada, sim. Não propriamente transida de medo, mas tomo cautela com a situação. 

E então, o que fazer? Olhei melhor o cão, posto que eu estava segura, mas não o reconheci. Seria de alguém do prédio?! Enfim, devia ser, mas de quem?... Definitivamente, eu nunca o tinha visto ou, pelo menos, não me lembrava de o ter visto antes. 

Não era um cão qualquer, porque tinha um ar bem cuidado e, se bem que eu não entenda nada sobre cães, achei que era um cão de raça. Tinha uma coleira e ali estava ele, como que a pedir-me que abrisse a porta. Mas eu não abri. A verdade é que tive receio. Àquela hora da noite estava cansada, querendo ir para casa o mais depressa possível para me deitar e dormir e um cão ali a testar a minha paciência?!... 

E passaram quinze minutos e ele ali sem que eu me atrevesse a abrir a porta. Sabia lá se ele resolvia saltar para cima de mim? Não!... 

Entretanto, como eu não abria a porta, foi até à escada e ficou a olhar para cima, como se estivesse à espera de alguém. Fiquei um pouco mais animada. Fazia sentido que estivesse à espera de alguém para o levar à rua. Olhava para o cimo da escada, depois voltava a olhar para mim, como que dizendo que ninguém o vinha buscar e eu tinha que fazer alguma coisa. 

Com isto, já tinha passado quase meia hora, e eu chateada que nem um peru em véspera de Natal. Aquilo não estava no programa. O que fazer? Várias vezes estive tentada a abrir a porta mas, mesmo fazendo todos os cálculos para me pôr a salvo, caso o cão se desnorteasse... não, não dava. Era melhor ficar quieta. Àquela hora da noite quem é que eu ia chatear para me socorrer? E a vergonha que eu ia passar? Que complicação, meu Deus! 

Passava da meia noite e nada. E como não vinha ninguém da escada a buscar o cão e eu não lhe abria a porta, decidiu ficar por ali mesmo, deitando-se no chão. Ele era grande, mas aninhou-se, posicionando-se na laje do patamar superior, entre as escadas e os elevadores e ali ficou. Estava tudo tramado. Mais tramado do que nunca. Agora é que eu não ia entrar mesmo. Teria que passar por cima dele e isso era absolutamente impensável. 

Olhei à minha volta, mas nem vivalma. Já íamos em quarenta e cinco minutos e eu tinha que tomar uma atitude. Aquela brincadeira já ia longe demais. Era eu do lado de fora e ele lá dentro! Ok, um dos dois iria levar um susto. Talvez os dois! 

Abri o trinco segurando a porta para testar a reacção do animal. Ao ouvir o barulho do trinco eis que se levantou e, devagar, desceu para o patamar inferior, encaminhando-se de novo para a porta. Como se mantivesse calmo, tive que jogar com isso e abri a porta toda, para ter espaço bastante para os dois, não fôssemos esbarrar um no outro. Assim que a porta se abriu ele saiu e eu, com o coração a bater com toda a força, corri para o elevador, que subiu até ao meu andar, saí a correr e entrei em casa, fechando a porta rapidamente. Estava a salvo, queria dormir e esquecer. Mas depois... depois, queria dormir e não conseguia, porque era assaz estranho, aquele cão ali sozinho... muito estranho. 

No outro dia logo me lembrei do episódio da noite anterior, claro. Ao fim da tarde, encontrei a Rute, que mora no mesmo andar que eu e como somos amigas, comecei a contar-lhe a história, até porque ela tem um cão. Qual não foi o meu espanto quando ela me disse que tinha estado no café e tinha ficado a saber que o cão da Wanda tinha "fugido" de casa. 

O cão da Wanda? Fiquei a falar sozinha. É que quando ela falou, logo me lembrei de realmente ver o cão com o marido dela. Sim, era aquele cão. Lembrei-me imediatamente de o ver brincando, saltando e eu com um certo receio dele, apesar de estar com o dono. Mas como é que não me tinha ocorrido que era o cão da Wanda? Como é que me tinha esquecido dele? Ao mesmo tempo, há muito que não o via. A Rute explicou que era natural, porque eles tinham mudado para o último andar, uma cobertura com um terraço muito grande e então deixaram de ter necessidade de o levar à rua, por isso eu não me lembrava mais dele. 

Então eu tinha praticamente deixado "fugir" o cão da Wanda!?... Estava passada e zangada comigo. Furiosa, com uma sensação de culpa imperdoável. Ainda por cima eu gostava muito da Wanda, apesar de não ter muita intimidade com ela. Ela era indiana e só por isso eu já sentia um carinho especial por ela. 

Ah, ela devia estar desolada! Que má que eu sou!? Ela e as crianças, porque todas as crianças adoram os seus animais. Por outro lado, como é que ela tinha deixado o cão ir lá para baixo, sozinho, àquela hora? Era um enigma. A coisa não estava bem explicada, o que não impedia de me fazer sentir mal, muito mal. Eu precisava de ir ter com ela e contar-lhe o que tinha acontecido. Mas ia ser difícil, isso ia. Tinha que arranjar coragem. Big problem... 

No dia seguinte, ou seja, no terceiro dia, falei com uma outra amiga que mora também no prédio e claro, já tinha mais novidades. O cão tinha saído de casa sozinho. Apanhou a Wanda distraida, abriu a porta e saiu. Mas isso não era possível!? Como é que o cão abria o trinco da porta que não é propriamente fácil? Estava tudo muito estranho, mas quem se sentia mal, muito mal, era eu. Agora, onde andaria o cão? Eles deviam estar todos tristes e a culpa era minha. 

Bom, não seria só minha, mas em boa parte, aliás, em grande parte era minha, só minha. Embora a minha amiga achasse que eu não tinha culpa nenhuma, que a culpa era de quem o tinha deixado sair de casa, eu não me convencia disso. Eu sabia que tinha a minha quota parte naquilo. Era preciso falar com a Wanda. Tinha que ser. Só precisava de um tempo para me mentalizar e saber como o fazer, sem causar mágoa... enfim. 

E no meio desta confusão toda, sem saber como gerir o peso que sentia, eis que me veio uma luz. Como é que eu não tinha pensado nisso ainda? Pedir, desejar, querer muito que o cão voltasse. Como? Não sabia. Não fazia a menor ideia, a não ser pedir ao universo que trouxesse o cão de volta, que a esta altura estaria para aí perdido, morto de fome ou alguém já o teria apanhado. Isso mesmo e eu não ia desistir da minha única arma: a vontade. A soberana vontade de quem quer o que quer e eu já tinha tido muitas vezes essa prova. Eu sabia que, quando queremos muito uma coisa, conseguimos – nem tudo -, mas querer é poder. 

Já tinham passado três dias e eu só estava à espera de me preparar para arranjar forças e ir falar com a Wanda. Isso estava decidido. Mas ao mesmo tempo, a minha vontade começou a trabalhar no sentido de dirigir todas as minhas energias para trazerem o cão de volta. E mentalizava, mentalizava sem descanso. 

Em pensamento, situava-me no centro do universo e comunicava-me telepaticamente com toda a força da mente, com todos os meus canais de luz abertos e todas as energias a fluirem, sempre pedindo, desejando, visualizando o cão de regresso, como se nada tivesse acontecido; suprimindo o espaço de tempo em que ele tinha estado fora de casa, reunindo o tempo num só, sem aquele fragmento em que ele se escapara. Enfim, fazia o que me era possível no plano espiritual, onde tudo, tudo é possível, dependendo da dimensão do nosso querer, se é que isto é possível.  

Ao quinto dia, quando vinha a chegar a casa, ao abrir a porta de entrada do prédio, voltei-me para ter a certeza de que se fechava e vejo o marido da Wanda saindo de um táxi com o cão, como se nada tivesse acontecido. De repente, senti-me tão leve, tão leve... as minhas preces tinham sido atendidas e eu não precisava mais de ir falar com a Wanda. Só precisava de agradecer ao universo, que mais uma vez me tinha atendido.

Então, o que aconteceu de verdade? O cão saiu de casa, do oitavo andar, porque com certeza alguém fechou mal a porta. Não acontece todos os dias mas por algum motivo aconteceu. Ou até as crianças o podiam ter feito. Apanhando a porta mal fechada, abriu-a e veio pela escada abaixo até à porta de entrada. Não saiu, claro, porque a porta estava fechada e ele não podia abrir. Um cão não abre trincos. Aí, apareci eu que abri a porta e ele saiu. 

Como era um cão de raça foi apanhado por uma pessoa que tomou conta dele e logo o levou ao veterinário para ver se estava tudo bem. Por acaso, o veterinário era o veterinário dele, que logo consultou a ficha, informando quem era o dono do cão, para ser imediatamente contactado. Isto foi o que aconteceu de facto. 

Independentemente disto eu acredito que a força do meu pensamento teve parte neste final feliz. Ele podia ter sido apanhado e levado para longe e ter tido um destino completamente diferente. Assim, se eu me considerava culpada por ele ter fugido, também agora eu achava que a minha vontade tinha tido um papel preponderante e que forças ocultas tinham trabalhado em prol daquilo a que chamo "fé".