sábado, 19 de fevereiro de 2022

Encontro - 99

 

Todas as noites na hora de me deitar para dormir, sinto um fardo pesado em cima de mim, que não tem que ver propriamente com o dia ter sido bom ou mau, mas por todo o tempo que durou e por tudo o que passou por ele. Talvez pela intensidade com que vivo todos os momentos, que é como se um dia fosse muito mais do que as quinze horas habituais da minha jornada diária.

E enquanto estou a tirar a roupa para me deitar, tenho a sensação de que com ela algo mais se está a ir de vez. De repente, passa o filme pela minha memória, um filme rápido, mas onde está tudo pormenorizado e gravado, sem a mais pequena possibilidade de alteração. Penso sempre que já passou e que foi mais um, e cada um que passa é mais um que já não volta. Não há retrocesso para isso.

Quando finalmente deito a cabeça na almofada, passa na minha cabeça mais uma página do livro da minha vida, para dar lugar a outra, a seguinte - porque também não é possível saltar -, que vem em branco, pelo menos na minha consciência, para ser preenchida no dia que se segue, desde o abrir dos olhos até novamente os fechar para voltar a adormecer. E essas páginas têm uma carga enorme, porque são as páginas dos nossos registos akáshicos, devidamente elaboradas e trabalhadas pelo cosmos, onde apenas lhes damos a nossa vida, o que não é pouco.

Entre essas duas páginas, a que passou e a que vem a seguir, escolho sempre a que vem em branco. Porque é a que representa o futuro e porque é aquela que ainda não tem peso, sendo por isso, a mais leve, a que me ajuda a ir ao encontro do sonho. Porque é a que vai abrir o meu próximo dia, o dia seguinte, aquele em que as portas se podem sempre abrir para uma nova paisagem ou um novo cenário, uma boa decisão ou uma boa escolha. Um caminho diferente, mais construtivo, mais edificante e em que sempre nos podemos tornar melhores, maiores e assumir novas oportunidades, que nunca deveriam ser desaproveitadas.

E com esses pensamentos começo a aliviar a minha carga do dia que passou. É como se a minha pele, aquela pele, estivesse a sair para dar lugar a uma nova. Começo a soltar-me, a desprender-me do já passado, para poder dar lugar ao que vem, ao que se segue, porque a vida é, ou deveria ser, sempre para a frente e nunca para trás.

A nossa vinda a este mundo é exatamente uma enorme oportunidade da mudança para melhor e nunca para pior. Infelizmente, a verdade é que alguns de nós fazem o percurso inverso, o que é lastimável. Mas também, se o fazem, é porque é necessário. Contudo, dependendo do nosso ajuste espiritual, podemos sempre dar o salto quântico, tomar consciência e alterar esse padrão. E então, já terá valido muito a pena.

Mas a hora de adormecer é sempre uma hora de introversão. Uns fazem orações, preces, outros simplesmente interiorizam, fazendo um exame de consciência, projetando-se nos acontecimentos que passaram… enfim. Eu prefiro, sem dúvida, deixar ir o que foi e focar-me no que está por vir, no que vai ser ou não, sem tentar adivinhar, para não correr o risco de errar, mas desejar que o amanhã me traga seja o que for, diferente, único, o que tiver que ser, para o qual, nesse preciso momento, me comprometo comigo mesma a enfrentar da melhor maneira possível, com a bênção e a ajuda do universo, que tudo e todos rege.

E um dia, na hora de me deitar, no meio destes pensamentos, lembrei-me que tinha tido um acontecimento um pouco estranho. Estava sentada no sofá, durante a tarde, a fazer qualquer coisa que não me lembro o que era e ao mesmo tempo com a televisão ligada. De repente, senti algo que vinha do meu lado esquerdo, do fundo da sala, para onde o meu olhar foi imediatamente atraído. Senti então a presença de uma energia, mas uma energia que eu não conseguia identificar. Até pensei que era impressão minha. Mas não, não era. Ali havia alguma coisa. Uma energia envolta num vulto escuro e completamente esfumada. Contudo, ainda que sem identificação, eu conseguia perceber que se tratava de uma energia masculina. Porém, não conseguia reconhecer, nem perceber o que queria e o que estava ali a fazer.

Prossegui com os meus afazeres, mergulhada nos pensamentos em que estava. E naquele dia quando me deitei, logo me veio à ideia aquele acontecimento inusitado, porque eu não via ligação daquilo com nada da minha vida. A coisa parecia que não encaixava. Foi o que mais uma vez pensei, mas ao mesmo tempo, não descartando a hipótese de haver algo de mais concreto por de trás daquilo. Nada feito, porque continuava sem resposta. E adormeci, esquecendo de vez aquele incidente.

No outro dia ao acordar, já não me lembrava daquele assunto e na verdade o dia foi decorrendo normalmente, sem pensar naquilo, até que ao final da tarde, uma colega e amiga da universidade sénior me telefonou, como muitas vezes o faz, falando de projetos e de decisões a tomar sobre a universidade. Estivemos cerca de uma hora a trocar informação e já no final do telefonema, surgiu uma novidade sobre uma outra colega, que veio esclarecer tudo. Essa outra colega era a Fátima.

A Fátima foi alguém com quem, desde o início, tive uma ligação muito forte e muito boa. Desde o primeiro dia percebi que sentimos uma pela outra uma verdadeira simpatia. E logo no primeiro convívio que tivemos, o almoço de natal, ela fez questão de me apresentar ao marido, como uma amiga muito especial, o que muito me lisonjeou. O marido levantou-se e cumprimentou-me com um simpático aperto de mão e um sorriso que lhe era muito peculiar, mas que eu só com a continuação o perceberia. E aquele casal eram umas pessoas com quem sempre mantive um excelente e especial relacionamento, pelo carinho que sempre me dispensavam.

A Fátima frequentava as aulas, já o marido era só sócio, mas acompanhava a mulher em todos os eventos, por isso era conhecido de todos. E sempre que ela estava sozinha eu fazia questão de perguntar por ele, que para a idade que tinha, estava muito bem conservado, o que não é muito comum nos homens que, em geral, envelhecem mais cedo que as mulheres. E eu falava muito com os dois. Dava-lhes sempre uma especial atenção, porque eles mereciam e faziam por isso, sendo também especialmente carinhosos comigo. E quem não gosta disso?

Um dia a Fátima adoeceu. Foi diagnosticada com cancro na mama. Todos gostávamos muito dela, até hoje, pelo que todos lastimámos o acontecido. Tanto assim, que nas minhas aulas de Meditação lhe dedicámos um tempo, canalizando e enviando energia positiva com todo o nosso amor. Nesse dia tivemos notícias ótimas. Tinha sido operada e a cirurgia tinha corrido muito bem.

A Fátima continuou com o seu processo de recuperação e sempre a evoluir de modo muito positivo, para grande satisfação de todos à sua volta que muito a estimam, por ela ser a pessoa especial que é, de facto.

Sempre que nos encontrávamos eles eram uns queridos. E o marido, apesar de discreto e sem muita intimidade comigo, sempre me falou muito bem, dando para perceber que não era indiferente, pelo menos comigo, pela maneira como falava e até do que falava.

Lembro-me de um dia, em que a Fátima e eu estávamos em conversa, porque ela é uma pessoa com quem é possível desenvolver um assunto. Sabe do que fala, é sensata, tem uma opinião formada e um pensamento claro. Não é dramática, pelo contrário, é uma pessoa muito positiva e com experiência da vida. E quando acabámos o que estávamos a falar, mais uma vez lhe perguntei pelo Agostinho, que já não o via há algum tempo e estava com saudades de o ver. A Fátima sorrindo, agradeceu o cuidado e em resposta afirmou que o marido também gostava muito de mim e tinha um grande carinho pela minha pessoa.

Achei surpreendente, mas nem por um instante duvidei do que ela acabava de dizer, porque isso não faz o género dela. Definitivamente, não é pessoa para estar a ser agradável só para agradar aos outros. Nem havia porque fazê-lo, mas esse não é o seu género.

Voltando atrás, estava eu no final de conversa, ao telefone com a minha outra colega, quando de repente ela se lembrou de me dar uma notícia desagradável. Sabes quem morreu, dizia ela. Não faço ideia, respondi. O marido da Fátima. O marido da Fátima(?!)…

Sim, continuava ela, foi ontem, às não sei quantas horas (já não me lembro). Fui completamente surpreendida com tal notícia, pois não estava nada à espera e acho que ninguém estava, mas foi aí que de repente voltei algumas horas atrás no tempo e imediatamente me lembrei da visita que tinha tido no dia anterior durante a tarde, quando surgiu uma entidade que não reconheci.

Ao pensar nele, senti exatamente a mesma sensação, ou seja, a mesma energia, que não identifiquei na altura porque, apesar de tudo, nós não tínhamos intimidade nem convivência suficiente para que eu o pudesse ter reconhecido. E, se algumas pessoas fazem a sua passagem de uma forma, outras fazem de outra, dependendo única e exclusivamente de si mesmos. Tem que ver com o seu estado evolutivo ou vibracional. Não quero dizer que ele não fosse uma pessoa espiritualmente evoluída, não é nada disso. Mas, digamos que, para haver uma identificação, as portas têm que estar abertas de ambos os lados e provavelmente não era esse o caso. Além disso, o facto de ele ser uma pessoa muito discreta, só isso, já pode justificar não se ter deixado identificar por mim.

Não deixou de ser relevante, porque a presença da sua energia tal qual ela se apresentava, era a prova do que ela um dia me tinha dito: que o marido gostava muito de mim. E estes acontecimentos são sempre dignos de registo, porque eles revelam o mundo para além da matéria e confirmam a sua poderosa existência. Ele veio anunciar a sua partida para uma outra esfera, a sua partida definitiva para outra dimensão, querendo ser ele mesmo a dar-me conhecimento disso. E ele sabia que eu era recetiva, embora não o tivesse reconhecido. Talvez se me tivesse debruçado um pouco mais sobre o assunto e tivesse levado mais a sério, talvez o tivesse reconhecido. Mas eu nem sabia que ele estava doente, por isso mesmo estava longe de imaginar tal coisa.

Independentemente disso, agradeço sempre esse especial encontro de almas, que mesmo em planos diferentes se conseguem comunicar, o que considero uma coisa extraordinária e que nem por isso deixa de ser um encontro.


terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Destino - 98

 

Outubro de 1976. Eu estava no aeroporto da Portela, com toda a minha bagagem rumo aos Açores, mais precisamente S. Miguel, Ponta Delgada, sem regresso marcado. No dia anterior tinha ido ao aeroporto levar a minha irmã que seguiu para S. Paulo, Brasil, também ela sem data de regresso. Os nossos destinos estavam definitivamente traçados. Nessa altura eu tinha vinte e três anos e a minha irmã dezanove. Ela ia ter com o namorado, com quem logo depois se casaria. Por mim, estava sozinha como convinha, de mudança para os Açores, onde a televisão (RTP) estava no início das suas emissões regulares, e cujo lugar eu tinha escolhido para recomeçar a minha vida do zero. Tudo o que eu encontrasse lá seria inteiramente novo para mim. Amigos, conhecidos, colegas, tudo e todos seria uma viragem completa de cento e oitenta graus, no rumo que conscientemente oferecia a mim mesma.

O vinte e cinco de abril estava ainda muito recente e eu sentia-me cansada, precisando de respirar. Eu não conhecia os Açores. Mas já que tudo estava no seu início, sim, eu gostaria de fazer parte dessa equipa que trabalhou para levantar esse marco na história da televisão em Portugal. Os Açores! Quem diria. Era mesmo um salto no completo desconhecido. E quando todos me perguntavam porquê, porque razão me tinha dado na telha de me mudar para os Açores, quando estava tão bem onde estava, secretária do Conselho de Administração da RTP, um futuro de certo modo risonho, etc…, eu não tinha resposta para dar. Eu tinha sim resposta para mim. Para os outros não, porque não entenderiam a única resposta sincera e genuína: porque o meu destino está lá; porque eu sinto um chamado para ir para lá… só isso. Essa era a única verdade. Mais nada interessava.

Mas as perguntas surgiam de todo o lado. Era na RTP, o militar então administrador, incomodado porque queria saber se alguém me tinha tratado mal e que por mais que eu lhe dissesse que não era nada disso, não parava de me interrogar para tentar saber o que estaria errado comigo. Era a família, que gostariam de uma resposta que os fizesse entender o porquê da minha súbita decisão de debandar para tão longe, no meio do oceano, enfim… ninguém me dava tréguas.

É claro que eu percebia que aos outros fizesse confusão. Mas a vida é assim mesmo. E eu achava que não tinha que justificar a ninguém. Não estava a fazer nada de errado, nada que fosse prejudicial para ninguém, só queria dar voz ao grito ou à chamada que vinha de dentro de mim. A minha decisão estava tomada e nada mudaria os meus planos.

Na televisão era uma canseira. Nunca tinha hora de saída, nunca podia prever o que seria o meu dia, com quem iria trabalhar, uma vez que estavam sempre a incumbir-me de missões difíceis, sigilosas e comprometedoras. Por isso mesmo já tinham transferido uma das colegas da administração. Para tudo me indicavam como pessoa de total confiança e então caíam sobre mim todas as tarefas pesadas, chatas e complicadas. Até com o advogado de acusação do Dr. Ramiro Valadão por parte da RTP eu tive que trabalhar, na organização de todos os processos, que eram documentos e papelada que nunca mais acabava. Hoje, quando penso nisso, acho tudo uma grande loucura, porque o vinte e cinco de abril não foi aquilo que a maioria das pessoas acredita que foi. Lembro-me, como se fosse hoje, do advogado comentar comigo acerca de uns papéis que eram despesas de almoços e flores, com alguém com quem o Dr. Ramiro Valadão esteve, insistindo que aquilo era uma “vergonha”, a RTP a pagar. Uhau! Depois disso, aos dias de hoje, quantos almoços e ramos de flores, para não falar em coisas muito piores, mas muito piores, não foram e não são pagos aos governantes e aos presidentes e diretores de todas as empresas?! E o outro é que era o ladrão?!

Os militares estiveram no controle da RTP e imediatamente puseram de lado os carros de luxo. Compraram R5’s e nem logotipo quiseram. Alguns nem motoristas quiseram e quando levavam motorista iam sentados ao lado deles para não serem identificados e não dar muito nas vistas. Veja-se agora, os carros parados no estacionamento, os carros dos administradores. A maior loucura. E não se pagam almoços de luxo? E outras despesas que nem me vou dar ao trabalho de enumerar, porque só não vê quem não quer.

Quando cheguei aos Açores, aquilo era um paraíso. O meu paraíso, que eu sozinha tinha conquistado para mim. Mas como não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe, aos poucos os problemas começaram a surgir. E quando lá cheguei, também os militares estavam no comando. Um deles achou que podia arruinar aquilo tudo. Não raras vezes ia para a única boîte lá do sítio e no dia seguinte aparecia um empregado da dita boîte com as faturas do sr. Tenente C.P. para a RTP pagar. Todos os meus colegas pagavam sem nada dizer. Uns verdadeiros idiotas. Um dia teve o azar de ser eu a atendê-lo e quando apresentou os papéis e vi as bebidas e mais bebidas, etc… disse-lhe que não pagava. Ele olhou para mim e de olhos arregalados começou a falar alto, dizendo que eram despesas do sr. Delegado, que mandava cobrar à RTP. Então, se eram despesas dele, ele tinha que as pagar do bolso dele!? Ah, mas sempre pagaram e nunca ninguém recusou(?). Pois, o problema é esse mesmo, é que nunca deveriam ter pago. E recusei-me a pagar, para grande espanto de todos os colegas presentes.

Claro que logo de seguida fui chamada ao sr. Delegado, baixinho e gordinho, que gritava e esbracejava por todos os lados. Atrás de mim a Delegação em peso, admirados com o meu comportamento. Como é que eu tinha a coragem de enfrentar o homem? Era ele que mandava(!). E gritava alto e bom som, que ali quem mandava era ele, frisando bem que eu não era ninguém. O homem estava quase a ter um treco, mas tive que lhe responder à letra, dizendo-lhe com todas as letras que por acaso estava enganado e realmente não podia fazer o que simplesmente lhe apetecesse, por exemplo, querer que a empresa pagasse as despesas da sua vida noturna, por onde quer que ela passasse e dar cabo daquilo tudo antes de se ir embora. No que dependesse de mim isso não aconteceria, até porque ele não me metia medo, além de que ele, o Delegado, não era funcionário, estava ali apenas de passagem, como todos os outros. Já eu não, eu trabalhava ali, era efetiva, tinha um número e nada nem ninguém me tiraria dali.

A loucura completa. O homem gaguejava sem conseguir articular uma palavra. Os colegas indignadíssimos com a minha “ousadia” e com medo do que me pudesse acontecer. Mas eu não tinha medo. Eu sabia que estava certa. E quem teria a coragem de dizer o contrário? Então e o vinte e cinco de Abril, onde ficou ele, coitado! Eu podia não ter dito nada. Podia não me incomodar com nada daquilo, como os outros. Mas então que raio de ser humano era eu? Podiam até despedir-me, mas isso seria por ser e sempre ter sido a pessoa de confiança que viram em mim e nunca pelo contrário.

O capitão que se mostrara incomodado com a minha transferência tinha-me advertido de que, caso as coisas não corressem como eu gostaria, o meu lugar e a minha passagem de regresso estavam garantidos. Mas isso eu não faria de jeito nenhum. Eu tinha decidido ir, sinal de que tinha que aguentar com o que estivesse na minha frente. E teve de tudo. Bom, muito bom e mau, mesmo muito mau. Mas a vida é assim. Eu só regressaria na altura certa, mas nunca por desistir.

O facto é que a minha chegada a S. Miguel mudou radicalmente o ritmo e a vivência da ilha. O ano do verão quente, como lhe chamavam. O ano em que as festas e os convívios deram uma dinâmica completamente diferente à quietude daquela ilha. Por tudo eu organizava festas onde nos divertíamos em grande. Com as sardinhas e o pão de mistura como os reis da festa, o resto fazíamos nós, com piadas e brincadeiras, as mais variadas, até altas horas da madrugada. O verão quente ajudava e muito e a vida era para ser vivida.

Não me enganei quando disse para mim mesma que o meu destino estava lá e que ia porque sentia o chamado. Não estava enganada de maneira nenhuma. Não sei de onde vinha aquela voz, como até hoje não sei de onde ela vem, sempre que a ouço, porque toda a vida fui guiada por essa voz que guia os meus passos e me abre os caminhos. Não sei. Sei que fui porque era lá que estava o meu futuro. Era lá que estava aquele com quem havia de ter um filho, uma família, ainda que isso muito pouco tenha durado. Mas isso não conta. O que conta é o facto em si. E desde a primeira vez que vi aquele que depois foi meu marido, desde que olhei para ele, percebi logo que era ele, o tal que estava destinado a ser o pai do meu filho que eu tanto aguardava e tanto desejava. Era como se estivesse escrito no rosto dele. A mensagem invisível estava marcada com uma força que precisava de palavras. Ela chegava até mim através do ar que respirava.

Não foi fácil. Até porque não era, nunca foi e provavelmente nunca será a pessoa mais fácil, nem a mais compreensiva, nem a mais amorosa deste mundo. Não era de todo a pessoa mais fácil de conviver, de dialogar, de compreender. Era tudo menos isso. Dava-me imenso trabalho e mais ainda me daria. Contudo, era muito provavelmente, para não dizer de certeza, a pessoa mais inteligente que eu conhecia. E isso era importante, porque não gosto de gente estúpida. Sem instrução até poderia ser, mas estúpida não. Era inteligente e bonito e eu queria isso para o meu filho. Era uma pessoa também de múltiplas facetas criativas, o que muito me encantava. Romantismo era coisa que nem sabia o que era. Nunca na vida me disse que gostava de mim. A maneira que tinha de o demonstrar era pôr defeitos em todas as mulheres, porque para ele eram todas iguais. Todas falavam muito. Todas eram muito chatas. Todas tinham todos os defeitos. Não era ele. Eram elas. E dizendo isto, eu apenas percebia que ficava de fora. As outras eram tudo isso que ele não gostava. Eu não. Mas isso nunca na vida foi revelado ou afirmado. Apenas surgia por omissão, fazendo-se notar no intuir da questão.

Enganei-me a seu respeito? Claro que não. Eu sabia que ele era assim. O que eu não sabia é que não ia ser capaz de aguentar. Achava que o amor que sentia por ele conseguiria ultrapassar tudo. Sabia que ia ser muito difícil. Ainda assim, achava que conseguia. Portanto, se me enganei, não foi a respeito dele, mas sim a meu respeito. Percebi que afinal não era uma supermulher, apenas humana e nada mais. Fui ingénua? Acho que não. É legítimo atribuirmo-nos determinados poderes que afinal não temos. Mas parece-me legítimo. É um direito que temos. Porque não? Se não tivermos a coragem de abraçarmos algo que está para além das nossas forças, também nunca vamos permitir conhecer a nós mesmos. Depois a vida é assim mesmo.

Alguma vez me arrependi? Não. O facto de me ter divorciado ao cabo de dez anos não significa que me tenha arrependido. Divorciei-me porque foi necessário. Ou melhor, foi imperioso. Isto é uma coisa que a família e muita gente não compreende. Não havia condições para coabitarmos, os três. Nenhum de nós beneficiava de nada, absolutamente. Pelo contrário, era muito complicado. Tudo em nós era dissociado, a começar pela nossa vida profissional. Mas depois, diferenciávamo-nos emocionalmente, psicologicamente, para já não falar da nossa vida pessoal que nem existia. Era nula. E o nosso filho, como ficava no meio disto tudo? Foi muito duro ter chegado à triste conclusão, bem difícil de reconhecer e aceitar por mim mesma, de que não havia solução para nós e que a única coisa, para prosseguirmos as nossas vidas sem tragédias inevitáveis, era o divórcio, que ele para não variar, não queria aceitar.

Eu podia ter escolhido outro, claro que sim. O problema é que para mim não era uma questão de escolha. Não me cabia escolher. Então era o quê? Ah, sim… com toda a liberdade possível, liberdade para aceitar o destino.