sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

A vida espiritual (cont.) - 96

 

Almancil, Março de 2001, meditação guiada (II). 

Seguida da mandala, a meditação do nível II. Felicidade abre um livro. Todos à sua volta sentados em posição de lótus, preparados para ouvir e seguir a voz da guia espiritual. 

É um campo muito verde, cheio de árvores. Cada um deverá escolher uma árvore e eu já estou enraizada. Que sensação boa, cheia de braços e ramificações, olhando para o alto, as minhas folhas balançam ao sabor do vento, num lindo dia duma Primavera florida e orgulhosa dos seus frutos desabrochando de aspecto delicioso. Eu e a árvore numa perfeita sintonia, com a luz trespassando os ramos, entrando por todos os lados. A guia pede para prestarmos atenção a um raio de sol que entra pelo centro da copa e percorre todo o tronco da árvore. O tronco da árvore é o nosso próprio tronco. Algumas raízes estendem-se, outras descem ao fundo da terra. A minha consciência desce com elas e de repente está muito escuro onde estou, algures nas profundezas no centro da terra. E eu não gosto do escuro. Porém, a guia diz-nos que lá em baixo vamos encontrar um lugar cheio de luz. A mesma luz que no início me trespassou, entrando pela copa, percorreu o meu tronco e está comigo no centro da terra. É um lugar muito bonito. A luz que brota da escuridão revela-nos sempre lugares de uma beleza inaudita. Agora estou bem. Há um ribeiro e a guia manda-nos mergulhar as raízes nessa água cristalina que corre cantando, revelando toda a pureza da sua energia. É um quadro muito prazeiroso. Quem o conseguiu atingir, testemunhá-lo-á. Para mim é muito fácil entrar em sintonia com o guia. A minha capacidade receptiva é muito boa, o que significa que o meu chacra está muito aberto. Então, Felicidade manda-nos seguir por onde a luz nos leva. É uma espécie de gruta. À medida que vamos andando, a gruta vai-se abrindo, o sol iluminando mais o seu interior e a guia diz que vamos sair por um descampado, do qual eu já havia avistado um jardim. Em volta desse jardim há um campo de trigo ensolarado, por onde caminhamos agora, tendo no meio uma espiral de luz dourada. O meu corpo funde-se com essa luz por alguns instantes. Espero que os outros o consigam porque é uma sensação deliciosa. Continuando, caminhamos por esse campo, em corpo de luz durante algum tempo, contemplando toda a natureza, recebendo todos os benefícios daquele lugar radioso de luz pura, de cheiros indecifráveis, passando por entre espigas de trigo louro banhado de luz, de toque suave, até chegarmos a um lago. No meio desse lago avisto uma fonte que brota no seu centro e num impulso corro ao seu encontro. Felicidade pede-nos para entrarmos no lago. Já lá estou, no centro, onde agora me vejo como um cristal, estando o meu corpo de luz apoiado na fonte que brota do lago. Sinto-me leve, leve, dançando em torno do meu próprio eixo imaginário, tal qual uma estátua, mas uma estátua transparente, que se move num lento movimento e de repente apercebo-me de que não estou sozinha. A guia diz-nos que se aproxima o nosso anjo. Ei-lo na minha frente. Na meditação do primeiro nível eu nem o queria receber. Era um estranho. Agora eu e ele estamos felizes, brincando. Ele está feliz, toca-me levemente com as pontas dos dedos erguendo-me no alto e eu giro, giro, em torno de mim mesma, plena de bem-estar, cheia de luz e graça e ele orgulhoso da sua pupila. Agora parece que toda a vida estivemos ligados e que nunca fomos estranhos um para o outro. Agora o reconheço perfeitamente. Isto significa que houve um grande progresso na minha evolução espiritual. Ele e eu estamos felizes. E é agora que sucede algo extraordinário. Algo que em nada tem que ver com o caminho que a guia nos aponta. O anjo, na minha frente, aponta a sua mão direita para o lado, a direita dele. Tem o seu braço direito esticado, apontando para a direita com a mão e o dedo indicador esticado. Presumo que ele quer que eu olhe naquela direcção que é a minha esquerda. Eu paro de girar, fico de frente para ele e olho na direcção que ele aponta, a minha esquerda. Não me apercebo logo do que se trata. Mas olhando mais atentamente, começo a avistar ao longe, um lugar escuro. Continuo a olhar e então vejo alguém que, andando apressado e compondo a lapela do casaco do fato que tem vestido, atravessa o escuro vindo na minha direcção. Olhando-o mais fixamente acabo por reconhecê-lo. Vem apressado, quase correndo e por cima dele há uma faixa de luz, horizontal, que deita chuva. É uma chuva de prata. Soube mais tarde que significa, para quem a recebe, limpeza espiritual. Toda igual, certinha, caindo abundantemente sobre ele. E ele apressava o passo com medo de chegar “tarde de mais”. Mentalmente pergunto ao anjo o que faria ele ali, ao que o anjo, mentalmente, responde que no momento ele é a minha outra “metade”, ou seja, a minha energia complementar. Fico parada, sem saber o que pensar e o que fazer, mas querendo continuar no caminho da guia. Então o anjo detém-me, continuando na minha frente e como que respondendo à minha pergunta, ele deixa cair, depositando nas minhas mãos, um par de alianças grossas de ouro maciço, lindas, elas estão agora depositadas nas minhas mãos. Olho-as, um pouco espantada, admirando-as, enormes e reluzentes, perguntando-me, o que faço com elas, para que me servem? O anjo fecha as minhas mãos, transmitindo-me que elas são minhas… simbolizando o meu livre arbítrio(?!)… E tudo não tem nada a ver com a meditação guiada. 

Quero sair dali. Ele deixa-me passar. Ouço a voz da guia dizendo para continuarmos o caminho. Mas eu já tinha continuado até ao ponto onde havia um túnel por onde entrámos. Era um pouco escuro, mas logo encontrei a luz e a saída que dava para uma pequena ponte cheia de roseiras e outras flores, deixando o ar bem perfumado. Talvez seja a resposta ao direito da minha escolha, ao direito ao livre arbítrio, à liberdade. 

Finalmente, somos conduzidos a um jardim, onde nos sentamos, descontraímos e de novo voltamos ao nosso mundo material, com todo o eu peso e as suas consequências. 

E debaixo deste delírio muitas respostas foram dadas.

 


quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

A vida espiritual - 95


Ponta Negra, Brasil, Janeiro de 2001, Meditação guiada (I). 

Olhos suavemente fechados, Inajá e eu sentadas lado a lado com um pequeno intervalo para que as auras não interfiram uma na outra e Irene começa descrevendo no espaço imagens de tanta beleza que não esquecerei jamais. 

A concentração é grande. Presa por um fio de respiração à vida real, a única coisa que me interessa a partir deste momento, é a voz de Irene que fez a minha mente viajar no seu pensamento com a velocidade da luz. 

Irene manda inspirar e expirar três vezes, devagar, para afastar as tensões e as preocupações, liberando a mente e preparando-a para a meditação. Esse momento é para mim de grande expectativa e tem um encanto todo especial, como o de uma criança numa noite de Natal, cheia de mistério. Tudo depende da concentração da mente, do que ela é capaz de nos proporcionar e da capacidade de aderirmos ou não à viagem astral, onde a criatividade do espírito é soberana. 

Inspirando e expirando, vamos ficando cada vez mais leves, deixando o nosso eu mais superficial de fora e mergulhando no eu mais profundo, que passa pelo subconsciente até atingir o inconsciente. Agora entramos num estado de transe e a minha comunhão com Irene é perfeita.  

Primeiro, a luz verde que vem da terra, entrando pelos pés, percorrendo todo o corpo até atingir a cabeça, mais precisamente o chacra da coroa. Depois, a luz dourada que vem fazer o percurso contrário, vinda do céu, entra pelo chacra da coroa, sai pelos pés e entra na terra. Ambas se misturam no nosso corpo. É a energia reicky a fluir dentro de nós. De seguida, uma luz branca que vem do alto, entrando pelo chacra da coroa, percorre todos os chacras através do tronco, saindo pelo “sacro”, o primeiro chacra, limpando todo o nosso ser, indo para a terra mãe, a fim de ser purificada. Novamente uma luz dourada lá do alto, que se dirige ao prana, o terceiro chacra, começando a circular à minha volta, em ondas de mar e terra, formando um círculo cada vez maior. Eu sou o centro e as ondas continuam alargando-se por toda a terra, mais e mais, até atingirem o limite do horizonte. Já não é possível alargar mais o círculo. A energia preencheu completamente todo o globo terrestre atingindo a linha do horizonte e já não tem por onde crescer, porém, continua rodopiando à minha volta, alternando o verde com a terra. Aguardo directrizes de Irene, porque não sei para onde expandir toda a energia que transborda de mim. Parece que vou sair do planeta e projectar-me no espaço. E surge, algures no espaço, um lugar onde estou realmente, onde me vejo. É como se fosse um duplicado de mim mesma, porque continuo na terra, mas estou a ver-me num plasma, instalado no espaço. Nesse instante, Irene intervém, pedindo para tomarmos consciência do lugar onde estamos. 

O chacra da terceira visão abre-se e o filme surge nesse écran da minha alma. Só eu posso vê-lo. Inajá verá o dela, sendo, contudo, Irene quem nos fornecerá a chave deste ecran panorâmico, atingido pela nossa mente, mais precisamente pelo nosso espírito, predisposto para esta extraordinária sintonia telepática. 

Aí estou eu correndo graciosamente, em “slow motion”, sem idade, não sei onde nem quando, com tanta leveza, por entre árvores repletas de luz, num lugar fresco e arborizado, sem tocar o chão coberto de relva, onde passa como “laser”, entre o verde e os meus pés, uma energia muito definida, muito bonita, muito fina, numa mistura de água e vapor, absolutamente indescritível. Essa sou eu e quão maravilhosa foi essa descoberta. Aquela era o meu eu mais verdadeiro, a minha essência mais profunda. A que existia na terra era outra, disfarçada de tudo o que era negativo, carregada de preconceitos, completamente distorcida da verdade, assustada, encerrada em medos sem sentido, enfim… uma sombra nula e escura do que afinal eu era realmente. Então decidi que voltaria a vestir a minha pele original. Prometi a mim mesma trabalhar para recuperar a minha essência. Isso valia a pena. 

Com a sua voz de comando, Irene pede-nos para olharmos para trás, o que eu já havia feito, tendo avistado umas árvores que se deixavam atravessar por raios de sol, tal qual ela acabara de mencionar e que chegavam até mim trazendo-me uma luz impossível de descrever, de tão especial, que me deixava no rosto e na alma um sorriso delicioso, fazendo-me sentir feliz e abençoada, naquele cenário transcendente, sem tempo e sem lugar. 

Irene diz-nos que vamos chegar a um sítio que tem um lago. De facto, antes mesmo de ela o dizer, eu já o avistara, por isso paro, até porque ele não me deixa passar. Talvez haja um caminho em volta, mas algo me diz que é por ali que tenho que seguir, sendo que o lago constitui uma barreira. Que faço então? Irene pede para pararmos junto ao lago onde eu já me encontrava. De repente, começo a sentir uma energia do meu lado direito. Irene pede-nos para olharmos para o nosso lado direito e nos esforçarmos por ver quem lá está. De facto, eu o reconheci. Era o Dr. X. Lá estava ele, de óculos e com livros debaixo do braço, com um fato escuro. Era ele. Não tinha dúvidas. Logo em seguida apercebo-me de uma segunda energia, muito mais forte, quando Irene nos pede para olharmos para o nosso lado esquerdo. Fiquei ligeiramente confusa, tive que olhar bem para cima, abrir mais o chacra e prestar muito mais atenção, porquanto aquela energia era demasiado portentosa para ser reconhecida imediatamente. Agora, porém, ela já preenchia todo o meu ser, banhando-me com a sua luz e deixando-me ver o seu rosto, para que não restassem dúvidas... era Jesus. Senti-me tão pequena e ao mesmo tempo tão importante. Como podia Ele estar ali ao pé de mim, sem mais nem menos... era uma sensação que tinha tanto estranhamento bom como fascínio… e de repente senti-me protegida. Nada, absolutamente nada de mal me podia acontecer naquele momento que parecia eterno. A minha alma planava, leve como uma pluma, ao sabor destes acontecimentos tão deliciosos e inesperados. 

O lago continuava lá e fui arrancada a este delírio pela voz de Irene, que nos chamava a atenção para a chegada de um anjo, quando eu já tinha sido orientada pela energia de Jesus para lhe ser entregue. Ele vai ajudar-me a atravessar o lago e a partir desse momento ele é o meu anjo da guarda. Não sei quem é, mas ele estava lá e reconhecendo-o ou não, ele tinha chegado até ali para minha guarda, que eu julgava futura, mas que, na verdade, era muito mais do que isso, sendo o nosso ponto de encontro no passado, presente e futuro. Todos temos uma protecção divina que nos acompanha por todo o sempre. Essa protecção aqui é entendida como um anjo que nos protege desde o nosso nascimento. Todos sabemos mais ou menos isso, mas tê-lo presente, ainda que noutra dimensão, torna tudo cada vez mais estranho. Mas, enfim, é realmente outra dimensão. Ao vê-lo e não sabendo quem ele era, fiquei confusa. Um anjo para mim! Desde o falecimento da minha mãe, apenas com 32 anos de idade, eu sempre contara com a sua protecção para mim e mais tarde, muito especialmente, para o meu filho. Eu tinha dez anos quando ela fez a sua passagem. Nesta cena, com os meus quarenta e nove anos, há uma relutância quase infantil da minha parte em aceitar o anjo, uma entidade que não me era familiar e, no entanto, tão próxima de mim, o meu anjo da guarda. Por outro lado, eu não podia aceitar tal reacção da minha parte. Seria como negar a minha ligação ao divino. Que fazer? Eis se não quando do meu lado esquerdo surge, com grande evidência, uma outra energia que logo identifico, não sem espanto, como sendo a minha mãe, como sempre, um ser de luz, descrevendo uma meia lua de cima para baixo e elevando a minha mão, sem a tocar, entregando-me ao anjo. E vai-se toda a minha relutância. Sou entregue ao anjo pela minha própria mãe. Percebo então que, provavelmente, ela vai deixar aquele estado, o estado de luz e entrar numa outra dimensão, ou seja, parece chegada a hora de uma vez mais, reencarnar (?!) … Por isso tem de me deixar à guarda do anjo. É espantoso o decorrer do tempo noutra dimensão. Não tem nada que ver com o tempo que nós conhecemos, o tempo de que nos servimos como padrão que nos rege. E conforme veio, foi, descrevendo uma meia lua no caminho inverso. Dou então um passo em direcção ao anjo e sou-lhe entregue com alegria, respirando fundo. Sei agora das razões porque tal aconteceu. Tudo isto aconteceu à margem das directrizes de Irene, num breve piscar de olhos. Irene prossegue, depois de ter dito que o anjo ficaria então sempre connosco, por toda a nossa caminhada na terra, auxiliando-nos em tudo, não nos deixando nunca sós. 

E estou do outro lado do lago. 

Está escuro. A princípio não consigo ver nada. Talvez uma montanha. Maior concentração, maior abertura do chacra. É uma montanha muito escura. Não consigo ver mais nada. Porquê uma montanha? Irene pergunta-nos se conseguimos ver o que está na nossa frente. Respondo para mim própria que na minha frente tenho uma montanha e está tudo escuro. Irene adianta que devemos encontrar um Templo. Não vejo templo nenhum. Estou esforçadíssima, numa concentração a cem por cento, mas onde está esse templo? Ela deve ter observado a minha expressão de perplexidade, porque continuou insistindo para observarmos bem, que nalgum sítio da montanha avistaríamos um templo. Afinal sempre havia uma montanha, portanto, eu estava certa. Talvez isso me tivesse deixado confusa. Então, se havia uma montanha e eu a vi, se ela diz que há um templo, porque é que eu não o vejo?! Gera-se a impaciência. Será que vou ficar por aqui? Será que terminha aqui a minha caminhada? Será que as minhas capacidades não me permitem ir mais longe? Fico muito impaciente. Tempo demais no escuro. Nada acontece. Eu não o vejo e Irene não fala, provavelmente dando-nos tempo. Onde será que anda a Inajá? Provavalmente já o avistou. Dentro de mim há um sentimento de desânimo, mas volto a concentrar-me tentando reunir uma maior concentração e faço um esforço grande, grande mesmo, como se estivesse a parir um filho mentalmente, provocando uma ainda maior abertura do chacra. A montanha está lá. O templo não. Fico à espera dos efeitos da abertura do chacra. Ouço um barulho estrondoso que parece um enorme terramoto. Simultaneamente, o chacra funciona como um “zoom” e a montanha vai-se aproximando de mim e vai chegando perto, mais perto, sacudindo-se toda de cima a baixo e de todos os lados e eis que se abrem dois gigantes portões de madeira, com ferrolhos fortes em ferro, assombrosamente grandes, saindo de dentro da montanha, abrindo-se de par em par. O templo está soterrado, completamente coberto pela montanha. Como é grande! As portas abrem-se sacudindo terra e pó por todos os lados e eu ali, de frente para aquela coisa tamanha, pasma, enfeitiçada, sem saber o que fazer. De repente, aquela escuridão no interior do templo começa a tomar forma de gente e não é pouca. Irene diz para olharmos para o seu interior. É o que já estou fazendo. Irene pede para vermos se encontramos lá alguém conhecido. Continua uma escuridão de arrepiar, mas cheia de gente que nunca mais acaba. Pergunto-me, o que faz toda aquela gente ali. Olho atentamente para aquela amálgama de gente sufocante, é uma verdadeira massa, não sei se gritam, não entendo o que querem, parece que apelam não sei a quê, parece que imploram e de repente alguém se eleva, deixando-se reconhecer. Surpresa das surpresas, não estou enganada, é Seu António, pai da Inajá, ali na minha frente. É ele, que parece levitar para que eu o veja. Será que ela também o vê? Porque será que ele me aparece? Muito curioso, muito estranho, mas é ele, não tenho dúvidas. Irene diz para tentarmos comunicar, caso encontremos alguém conhecido. Espero na retaguarda, imóvel, que ele me contacte, mas ele não o faz. Apenas se apresenta. Tem um ar meio apático, meio desiludido e uma expressão séria, que me constrange. Faz-me sentir culpada, mas não sei de quê. Porque não reage? Tenho a certeza de que quer ver a filha. Porque apareceu para mim? Sinto-me como peixe fora de água. Que situação embaraçosa e delicada!? 

E conforme veio, foi, engolido pela multidão e pela escuridão, também. Então, Irene, pede-nos para entrarmos no templo. E da escuridão faz-se luz. Todo aquele cenário lúgubre e deprimente desapareceu, dando lugar a um estadium muito mais agradável e compensatório. Quanta luz! Um clarão branco invadindo o átrio do templo é um convite para entrar. Eu estava ansiosa por saber o rumo de Inajá. Quem dera que ela andasse por um caminho bonito como o meu! Mas só no fim poderíamos saber. Era preciso esperar. Por outro lado, tudo aquilo era tão fascinante que não me apetecia que tivesse fim. Mas a nossa dimensão é a dimensão dos limites, das fronteiras e bermas e de tudo o que começa e termina, portanto, a única coisa que me interessava era insistir na concentração a qualquer custo, para não me dispersar. 

Luz, muita luz e eu já estou no seu interior. À medida que vou entrando no templo, vai-se abrindo o caminho numa amplitude cada vez maior. São alas e alas. Já não me lembro muito bem, mas naquela altura, sei que era tudo muito nítido: o chão, as paredes, o fundo, o tecto. Mas já não me lembro exactamente dos deliciosos pormenores por que passei na altura. Lembro-me de que havia uns pilares cilíndricos, colunas que sustentavam a arquitectura fabulosa dos tectos trabalhados em forma de abóbada. Era tudo inundado por uma imensa luz muito clara que, conforme eu ía passando me seguia, focando-me sempre, iluminando-me ainda mais, assim como tudo à minha volta. E enquanto vou penetrando por aquela imensidão, vejo que há uma passadeira vermelha estendida pelo chão, por onde eu passo e como se isso não bastasse, de cada lado há uma fileira de anjos suspensos no ar, corpos de luz, tocando pequenas harpas, cítaras, violinos e entoando cânticos belíssimos que me tocaram na alma e me encheram de tanta felicidade e tanta paz. Alados e em fileira, vão-me conduzindo para a parede central do fundo, onde avisto um buda que se vai ampliando à medida que me vou aproximando. Um buda de verdade, sentado em posição de lótus. E Irene? Já quase me esquecera que fora a voz dela a responsável por eu estar naquele lugar. E recomeça, dizendo-nos precisamente que lá dentro está um buda à nossa espera, o que quer dizer que eu continuo no caminho certo. Olho melhor o buda que, por sua vez, segura um embrulho muito bonito e atraente. Irene convida-nos a aproximarmo-nos dele e vermos o que tem para nos dar. Olho novamente para o embrulho nas suas mãos e apercebo-me de que aquilo, o que quer que seja, é para mim. Irene diz-nos que o buda tem um presente para nos dar. É isso mesmo, ele tem realmente uma oferta para mim. Estupefacta, sem fazer a menor ideia do que possa conter aquela caixa espectacular, cujo aspecto em si já é um presente, não faço a menor ideia do que possa conter. Uma caixa quadrangular, com cerca de 20 cm de lado, em papel vermelho acetinado e com um fiozinho dourado passado em toda a volta, que termina com um pequeno laço de pontas caídas na parte superior; vermelho e dourado era o que eu via nas mãos do buda que as estendia para me fazer entender que era meu. Que estaria lá dentro? Irene incita-nos a abrir o presente. Enquanto eu faço um gesto de receber, esticando os braços ao seu encontro, ele faz o gesto de dar, estendendo os braços e mostrando a dádiva nas suas mãos. Sem nos tocarmos, eis que o fio dourado insinua desatar-se sozinho e sem que o papel de embrulho fosse retirado, num acto mágico, que fez o meu delírio completo, começou a saltar de todos os lados do embrulho um pó dourado em estrelinhas, brilhando e rebrilhando, era uma coisa verdadeiramente mágica, magnífica, uma coisa inexplicável. Parecia ouro que não acabava nunca. Era um espectáculo fabuloso. Era ouro, confirmava-o a expressão do buda. E era para mim?!... Era ouro puro que caía continuamente sobre as minhas mãos e se espalhava pelo chão à minha volta. Ouro, o metal mais precioso do planeta. Jamais me ocorreu receber das mãos do buda, semelhante oferta. Era simplesmente espectacular! 

E com esta visão fabulosa, revestida de tão grande riqueza espiritual, Irene chama-nos a atenção que é terminada a nossa meditação, trazendo-nos para a realidade da nossa dimensão, ao nosso tão conhecido mundo tridimensional. Abrimos os olhos ao chamado de Irene e respiramos fundo. Estamos novamente de volta à casa materna: a terra mãe. Abro os olhos, respiro com tranquilidade. Onde foi que eu estive, que foi que me aconteceu? Estou em estado de graça, isso sim, feliz e leve como uma pluma. 


Quando nos interrogámos em conjunto sobre o acontecido e comentando entre nós, descobri que o pai de Inajá, que tinha feito a sua passagem há um tempo atrás numa cama de hospital, tinha sido conduzido por um budista que estava presente, depois de ter obtido a concordância da família para aquela cerimónia, uma vez que eram católicos. Eu, porém, desconhecia tal facto. Mas foi por essa razão que ele me apareceu no templo, o que eu tanto estranhei. A Inajá não viajou. O chacra da terceira visão não funcionou com ela. E foi também por isso que ele me apareceu, porque não conseguiu ser visível à filha, pretendendo que eu lhe passasse esta informação.

  


domingo, 19 de dezembro de 2021

Reencarnação - 94

 

Reencarnação… algumas pessoas acreditam, outras não. Independentemente de quem acredita ou não, se prestássemos mais atenção à vida, ao desenrolar dos acontecimentos, talvez víssemos e percebêssemos melhor as coisas. E a aceitação seria bem diferente, com toda a certeza.

Uma criança nasce, é recebida no seio familiar e até pelos amigos, como um desconhecido que acaba de chegar a este mundo. Mas será mesmo um desconhecido ou será muito mais do que isso, alguém bem chegado a nós, bem já nosso conhecido, de outras vidas, de outras histórias?…

Há tempos, uma amiga minha contava-me que tinha ido a um lugar muito místico, onde teve uma experiência que achou muito interessante, que se relacionava com a sua pessoa baseada nas mulheres da vida dela, ou seja, até que ponto as mulheres que a antecederam: mãe, avó, bisavó, tias e por aí adiante, até que ponto essas mulheres tiveram importância na sua vida e na pessoa que ela é. Portanto, ela será de certa forma, um reflexo de tudo o que está para trás.

E enquanto ela me falava disto eu ia pensando e visualizando o processo de reencarnação. Quem sabe ela não é hoje a que foi sua avó ou bisavó, por exemplo? E assim, o “reflexo” como ela lhe chamou, não terá um significado completamente diferente? Somos sempre os mesmos que vamos para logo - mais tarde ou mais cedo - voltarmos?!

Isabel, uma outra amiga, contou-me que a cunhada, Amália, estava grávida. Esta gravidez tinha uma certa relevância, porque Amália estava há dez anos a tentar engravidar, convencida de que nunca iria conseguir. E de repente, sem mais nem menos, a gravidez aconteceu. Uau! Achei interessante. Já estava de sete meses, era um menino e já tinha nome: Thiago. Thiago?! Quando ela disse Thiago, imediatamente se fez luz, quer dizer, imediatamente vi o filme passar.

Amália é cunhada de Isabel, que casou com o seu irmão mais novo, sendo que eram um total de cinco irmãos. O mais velho, Tiago, morreu há cerca de quatro anos com quarenta e oito anos. Foi uma partida dramática na vida desta família, como se pode imaginar e para trás ficaram dois casamentos com dois filhos do primeiro e um do segundo. Uma menina que à data tem cinco anos.

Quando Tiago adoeceu e teve que ser internado às pressas, curiosamente foi a Amália e o Paulo, que o levaram ao hospital e trataram disso, porque estavam com ele no momento. Tiago passou um mau bocado e acabou por falecer. Mais uma vez, curiosamente no dia de aniversário não de um outro dos irmãos, mas deste, o Paulo, o mesmo que o levou ao hospital e esteve mais em contacto com ele. Paulo, inclusive, ficou muito marcado com este incidente, a morte do irmão no seu dia de aniversário, o que é perfeitamente natural.

E a vida continua. Amália, convencida de que não teria filhos, quando já nem pensava mais nisso, de repente engravida. Incrível! A vida é cheia de surpresas. E há quem não acredite no “destino”!?

Felizes da vida, é um menino e querem fazer uma homenagem ao irmão, por isso lhe chamam Thiago com “h” porque Amália é brasileira e no Brasil usa-se o “h”. E então pensei, pois claro, é Thiago porque é o Tiago que volta. E Amália esteve dez anos sem conseguir engravidar porque estava destinado que ela receberia o cunhado depois da sua partida.

Mas tudo isto poderia ser invenções minhas. Pões podiam… a questão é que há pormenores de uma enorme subtileza que me demonstram que não é nada imaginação minha e é só prestar atenção aos acontecimentos onde tudo se encaixa por si, com toda a naturalidade e sem o menor esforço.

Thiago nasceu apenas uns dias depois do aniversário do pai, Paulo, ou seja, poucos dias depois da data do falecimento daquele que agora seria o seu tio mais velho, Tiago, que na verdade é ele mesmo. O poder da reencarnação! E agora está de volta à família que há quatro anos tanto chorou a sua morte!?

Quando Tiago estava no hospital, porque morreu no hospital lutando pela vida sem sucesso, eu achava que ele não tinha chance. Tanto fisicamente como a outros níveis. A vida dele estava completamente destruída, sem rumo e sem viabilidade de se reerguer. Ele não tinha nada. Tudo se perdera pelo caminho. E ele já tinha dado provas suficientes de que não tinha capacidades psicológica de encontrar meios de sobrevivência a todos os níveis. O seu estado físico não era senão um perfeito reflexo disso. Ninguém pode ajudar quando o próprio não quer, não aceita, ainda que diga o contrário. Portanto eu sabia que ali estava o fim.

Mas dentro de mim não via aquela família com a ausência dele. Porquê, não sei. Eu simplesmente não conseguia explicar esta estranha sensação para mim mesma. Apenas a minha alma se apercebia disso. Era como se ele fosse, mas não fosse, porque eu não via a sua ausência. Não era uma simples questão de não aceitação. Não. Era algo que estava para além disso, mas que eu não tinha como explicar. Quando Isabel me contou que Amália estava grávida e seria um menino chamado Thiago, foi então que percebi. Ele reencarnaria num espaço de tempo relativamente curto para nós, uma vez que fora da matéria a questão do tempo é bem diferente. Mas nessa altura fez-se luz e pensei, pois claro, é por isso que eu não materializava dentro de mim a partida dele.

Quando as pessoas partem com problemas de saúde que as obrigou a permanecer nesta vida com um sofrimento penoso e muito arrastado, ou elas desencarnam e ficam o “tempo” suficiente para entrar na luz, sendo que a luz trabalha para transmutar toda a negatividade e puderem voltar à vida livres e “curadas” do mal da vida anterior ou elas não tiveram tempo de fazer esse processo e escolheram reencarnar num breve espaço de “tempo”, trazendo ainda sequelas, reflexo do que foram.

E como se restassem dúvidas, Amália teve uma complicação relacionada com o parto, que a fez ficar internada, sendo que Thiago veio a esta vida da mesma forma problemática com que partiu, só que desta vez era uma nova vida. As páginas do livro estavam todas em brancos, por reescrever, pelo que foi possível superar. Tão simples quanto isto.


quarta-feira, 17 de novembro de 2021

O túnel do tempo - 93

 

Apesar da sua sempre boa disposição, mesmo perante as adversidades da vida e da responsabilidade que lhe pesa sempre sobre os ombros por conta dos seus negócios, Humayen estava uma vez mais apreensivo e lamentando-se pelo facto de nunca mais chegar o dia de ir buscar a mulher e o filho ao seu país de origem, o Bangladesh. Mas desta vez estava mais carregado do que era costume, o que me fez redobrar a atenção em relação ao seu desânimo.

Eu sei quando uma pessoa se lamenta por hábito e costume e quando é de alma, ou seja, com verdade. E era o caso. Humayen, o meu amiguinho - que me considerava uma mãe pela ajuda que sempre achava que lhe dava e que para mim não era nada -, passava as tardes em comunicação por vídeo com a família: mãe, pai, mulher, filho e demais família, a fim de minimizar as saudades tanto quanto possível, mas agora dava sinais de estar no auge da sua luta de emigrante, no desejo e necessidade de ter a sua pequena família junto de si, o que era perfeitamente normal.

Depois de ter captado a minha total atenção, que me fez encarar com toda a seriedade as suas queixas de que mal conhecia o filho que tinha então quatro aninhos, concentrei-me inteiramente nas palavras dele, no problema que expunha, e não podendo fazer nada de concreto, tentei ir ao fundo de mim mesma para resgatar a verdade, aquela verdade que está dentro de nós, que mora lá bem no fundinho, no inconsciente, à espera de ser resgatada pelo consciente e fazê-la emergir.

Não diria que é fácil, mas é possível. É só alhearmo-nos de todo o resto, afastar tudo para deixar que fale mais alto, mais alto que tudo. E assim, concentrando-me, deixei que saísse o que ele precisava de ouvir. Estávamos no final do ano de 2020 e ele queixando-se de que os anos passavam e era mais um e ele de mãos e pés atados. Já tinha estado quase, depois do confinamento em Portugal. Mas aí, veio o confinamento na Índia, no Bangladesh, o corte das ligações aéreas e lá se foram os planos ao ar. Era deveras desanimador.

Concentrando-me, entrei no túnel do “tempo” do tempo, que mentalmente percorri rapidamente, para lhe dizer que no ano seguinte o problema estaria resolvido. Mas ele pareceu não dar muita importância às minhas palavras. Por isso reforcei e aprofundei, incutindo-lhe a veracidade que o assunto merecia, pois não era para ser levado a brincar nem de ânimo leve. E uma segunda vez fui mais pormenorizada dizendo-lhe o que estava a ver, que até ao final do ano eu tinha a certeza de que ele conseguia realizar o seu sonho. Ele, porém, continuava a implorar e a não levar muito a sério o que lhe estava a dizer. Olhei para ele de frente, tentando que me olhasse nos olhos, e aprofundei bem mais a questão. Percorrendo novamente e cuidadosamente o calendário do ano seguinte, vi os meses passar, desde Janeiro até Outubro, dizendo-lhe que Outubro, sim, Outubro seria o mês em que ele iria ao Bangladesh. Acredita, em Outubro as coisas resolvem-se.

Ele olhava para mim sem que eu percebesse muito bem se estava a acreditar ou não. E, entretanto, sem saber porquê, continuei: Outubro… Outubro – mas aí vi o meu dedo deslocar-se para o mês seguinte, Novembro, sem perceber porquê, e repeti em voz alta, que em meados de Novembro já cá estariam todos com tudo resolvido. Ele olhava para mim querendo acreditar com todas as suas forças, mas ao mesmo tempo interrogando-se do porquê de eu estar a fazer previsões. Eu própria não entendia muito bem o que tinha acabado de dizer. Primeiro tinha referido Outubro, mas depois passei para Novembro, reforçando os meados de Novembro… porquê?

Contudo eu sabia que não era uma simples previsão, só que ele não me conhece o suficiente para saber pormenores que apenas alguns sabem. E mais, como um bom muçulmano, ninguém pode saber tanto como Alá. Eu lia o pensamento dele e continuava a induzir-lhe aquilo que para mim era uma verdade absoluta, talvez estranha, até posso concordar. Mas naquele momento fiquei a saber com toda a exactidão o mesmo que ele acabava de saber. E só o soube para satisfazer a sua necessidade, não a minha.

Um tempo atrás, ele chamou-me para ir com ele ao Marl, no que concordei, movida pela curiosidade. Sempre gostei de mercados. Tenho mesmo um grande fascínio, por que me lembram a minha infância e agora aí estava mais uma oportunidade de ver um grande mercado abastecedor das grandes e pequenas superfícies comerciais. Depois de lá estar, foi preciso tirar uma senha para ser atendido numa determinada zona. Mas havia muita gente antes de nós, o que era uma chatice e tanto. Era Inverno e apesar do dia estar bonito, estava frio, por isso disse-lhe que ia esperar sentada no carro que estava ali mesmo ao lado. Ele concordou e entrou também no carro para eu não estar sozinha. E ficámos entregues aos nossos telemóveis, que é o que toda a gente faz, pois não havia mais nada para fazer.

O tempo foi passando e a certa altura achei por bem sabermos em que número ia. Ele apressou-se a ir, mas para tornar a coisa mais leve, porque era muito chato estar ali ao frio à espera, disse-lhe para fazermos uma aposta, no que ele disse um número e eu outro. Ele atirou um número provavelmente ao acaso, e mais uma vez o meu dedo indicador esquerdo, porque sou canhota, no ar, percorreu a linha do tempo, tendo parado num número que já não me lembro. E assim estavam determinados os nossos números da aposta. E lá foi ele. Esteve lá uns minutos e logo voltou, entrando rapidamente no carro, porque à medida que o tempo passava, mais frio ficava. E então(?), perguntei. Oh, ainda falta, disse ele. Vai no número tal. O número tal era evidentemente o meu. Ele achou graça e claro, achou que era por acaso. Mas não, não era por acaso, disse-lhe eu, fazendo-o rir, por achar que eu estava a gracejar com ele. E lá ficamos novamente ligados nos telemóveis, até que passado mais algum tempo lhe pedi que fosse outra vez ver. E novamente fizemos a aposta. Ele disse um número e eu outro. E rindo lá foi ele, feito criança, conferir a chamada. E logo em seguida voltou, dizendo que mais uma vez eu tinha acertado, certíssimo de que mais uma vez não passava de uma curiosíssima coincidência. Expliquei-lhe que não era uma simples coincidência, mas ele ria e gozava-me por acreditar nisso. Paciência! Também não tinha, nem tenho interesse em convencer ninguém do contrário.

Voltando à sua ida ao Bangladesh, eu tinha acabado de lhe dar a informação precisa, ou não, porque não percebia muito bem porque razão lhe tinha dito “Outubro” e depois de alguns segundos tinha passado para Novembro, mais precisamente meados de Novembro, em que estariam “todos” cá. Não, não me parecia fazer muito sentido. Mas… já aprendi a não me questionar por estas coisas porque, é o que é. É esperar para ver.

E o ano novo entrou e o calendário foi passando os meses, um por um, com seus dias, horas minutos e segundos, até ao dia em que ele veio ter comigo todo contentinho, dizendo que já podia ir ao Bangladesh(!)... Agora era só pedir o visto e queria, porque queria, que eu fosse com ele. Muito gostaria de ter ido, mas, primeiro a pandemia por todo o lado e segundo aquilo era um momento dele, só dele, porque há três anos que lá não ia. Estávamos em pleno Verão, mês de Agosto. Mas agora ainda teria que ter o visto para ele e para a família e isso não era fácil e também levava o seu tempo. Era preciso continuar a esperar. E eu voltava a dizer-lhe que até ao final do ano viriam. Ele não se ria, mas os olhos dele sorriam, pensativo e desejoso de acreditar naquilo. Eu própria já nem acreditava muito no que tinha dito. A força que tinha tido na altura em que lhe disse já tinha desaparecido. A única coisa que restava era continuar a esperar.

A vida prosseguia com todas as suas dificuldades e um belo dia lá veio ele com a notícia de que já tinha os vistos! Agora era mesmo só marcar as passagens. Estávamos em Setembro, mas ele precisava de mais uns dias, pois queria mais um dinheiro e tinha muitas compras para fazer. A família no Bangaladesh reclamava muita coisa de Portugal e ele não queria decepcionar ninguém. Nesta altura eu limitava-me a estar atenta ao natural desenvolvimento dos acontecimentos e das suas decisões, lembrando-o apenas de que as coisas eram favoráveis e que de repente tudo podia desmoronar, em função da pandemia. Ele percebia, mas precisava de mais um tempo. Até que chegou finalmente o dia em que me pediu para ir com ele comprar as passagens. E lá fomos, embora o tenha deixado sozinho a tratar do assunto. Quando acabou e veio ter comigo estava muito contente, com um ar feliz, com a passagem de ida marcada para o dia oito de Outubro e o regresso com a família para dezoito do mesmo mês. Tudo encaixava. Só não encaixava o facto de eu ter dito que em segunda mão, que em Novembro estariam cá “todos”. Só isso era estranho. A que propósito?

E o dia oito chegou, não sem antes termos percorrido os centros comerciais à procura de coisas que queria comprar para levar e onde gastou uma pipa de massa. Mas o dinheiro era dele, ele é que sabia, e as malas eram mais que muitas e foi preciso pagar bastante dinheiro pelo excesso de bagagem, o que em nada o incomodou. Acho que ele achava que aquilo não estava a acontecer, que era apenas um sonho. E assim Humayen seguiu mais a pesada bagagem rumo ao seu destino: Bangladesh.

A viagem chata e longa demais correu normalmente, chegou bem e toda a família chorou lágrimas de emoção, o que já era de se esperar. Ele telefonava-me quando tinha rede, para dar notícias e me tranquilizar, até que se aproximou a data de regresso, dia dezoito de Outubro. Foi então que o inesperado e de todo inusitado aconteceu.  

Dezasseis de Outubro, o meu telemóvel tocou e peguei nele para atender a chamada em vídeo do Bangladesh. Com imensas dificuldades na ligação, Humayen falava-me quase a gritar, chateado até mais não, completamente alterado, o que não é nada seu hábito. A mulher, Moon, estava impossibilitada de viajar. Os testes obrigatórios ao Covid para embarcarem para Portugal tinha dado positivo e apenas o dela. Humayen estava de todo inconsolável. De repente parecia que todo o trabalho tinha sido em vão, porque não havia nada a fazer. No dia seguinte, impreterivelmente, ele viajaria para Portugal, pois os negócios assim o exigiam. Não havia a menor possibilidade de prolongar a sua estadia. Ela viria depois, quando voltasse a fazer o teste e estivesse negativo. Viajaria sozinha com o menino.  Todos de rastos com esta notícia, incluindo eu, que fiquei sem fala, sem saber o que dizer.

E mais uma vez parecia que as coisas não faziam sentido. Eu não conseguia perceber esta realidade, mas compreendia o sucedido. Foram tantas festas, tantos ajuntamentos, que deu no que deu, apesar de só ela ficar positiva.

Humayen regressou, chateado e frustado, tentando resignar-se com a situação. Aos poucos retomou os seus negócios, tendo a minha ajuda no que era possível, pois o fuso horário tinha mexido muito com ele. Além disso, já não estava habituado com aquele calor insuportável, como ele próprio referia e tudo no Bangladesh já estava um pouco no passado. Os dias passavam e catorze dias depois Moon repetiu o teste, desta vez negativo. A alegria voltou, mas agora sobrepunha-se outra preocupação. Como ela viria sozinha com o menino, numa viagem de longo percurso, com escala no Dubai por oito horas e sem experiência nenhuma de viajar!? Era muito complicado. Até eu estava pensativa com aquilo. Foi então que Humayen veio ter comigo para se aconselhar, com a possibilidade de voltar ao Bangladesh para apenas pegar a mulher e logo voltar. Seriam cinco dias apenas. Claro, parecia-me o mais sensato e não só a mim, mas a toda a família no Bangladesh. Era uma grande estafa para ele, mas parecia a coisa certa a fazer. E a decisão foi tomada. Assim, no dia seis de Novembro, seguiu uma segunda vez rumo ao Bangladesh. Desta vez sem bagagem. Apenas o indispensável. E no dia doze de Novembro os três desembarcavam no aeroporto da Portela, em Lisboa, para uma nova vida, a vida a que tinham direito.

Enquanto esperava que saíssem do aeroporto para os levar a casa, comecei a pensar que estávamos praticamente em meados de Novembro. E de repente lembrei-me da minha previsão: “Outubro… Novembro, sim, meados de Novembro e estão todos cá”. Com efeito ele tinha ido em Outubro. Mas foi Novembro que os trouxe juntos e em definitivo, saídos do túnel do tempo…


domingo, 12 de setembro de 2021

Jorge Sampaio - 92


Era um dia de semana normal e eu estava no Marquês de Pombal, onde tinha acabado de estacionar o carro no parque subterrâneo, para me dirigir à clínica onde fazia acupuntura com regularidade.

Caminhando tranquilamente, de repente avisto a escassos metros de mim o Presidente Jorge Sampaio, acompanhado de um jovem, muito provavelmente seu filho, não tenho a certeza. E os dois conversavam normalmente enquanto caminhavam na via pública, numa zona bem central da cidade de Lisboa.

Pensei para comigo mesma, Sampaio a pé, sem escoltas nem protecção, um homem como outro qualquer, na maior discrição, que quase passava despercebido. O mesmo não aconteceu com outros presidentes, especialmente com um que vi variadíssimas vezes sempre enfiado num carro cheio de seguranças e mais outro(s) carro(s) atrás para ainda maior segurança e de todas as vezes em que isso aconteceu foi uma má experiência, sendo que uma delas foi mesmo uma péssima experiência. Eu ia também de carro, com o meu filho no banco de trás, que era pequeno, e quando os carros do “senhor presidente” passaram, com ele todo cheio das importâncias como era habitual, fizeram tanta bagunça para passarem nem que fosse à força, que me empurraram intencionalmente, o que é espantoso, para a berma da estrada, sem dó nem piedade, como se o meu carro não existisse e as pessoas lá dentro, no caso o meu filho e eu, fossem um lixo desprezível. Fiquei tão nervosa que quase fui arrastada pela berma que era muito inclinada e por pouco não capotei. Foi de tal modo humilhante que tive que esperar para me recompor. Se eu já não gostava dele, a partir daí, até hoje, não gosto nem quero gostar nem saber.

Quando Jorge Sampaio foi eleito vasculhei um pouco acerca dele, como faço com frequência com todas as figuras de relevo que por algum motivo vão estar implicadas na vida da sociedade. Por isso preciso de ter um mínimo de informação para perceber quem é e o que será. Com Jorge Sampaio, por ser presidente dos portugueses, mas um pouco mais do que disso. Desde as primeiras imagens que vi dele percebi que era uma pessoa especial. Não foi por ele ter morrido, nem pelas homenagens que então lhe foram prestadas. É pena que estas coisas só sejam sempre feitas e evidenciadas depois das pessoas partirem. Nunca entendi o porquê, porque é quase sempre assim. Por mim, não preciso de nada disso porque eu sempre vi nele uma pessoa especial. Tracei o seu perfil desde o início. E desde o início, como não sou bruxa, não sabia se ia ser um bom presidente, mas que era um homem íntegro, honesto e confiável, sim. Tinha a certeza disso. E não foi preciso procurar saber muito à cerca dele. Bastava-me olhar o seu rosto, a sua expressão e observá-lo atentamente para o ver além do seu aspecto físico. Porque para além do que era possível ver, havia uma profundidade que me era muito acessível e que eu gostaria que pudesse ser visto por todos.

Mas continuando e voltando à Praça do Marquês de Pombal, única vez em que vi Jorge Sampaio ao vivo, na sua vida normal como era normal tudo nele, passa um indivíduo do sexo masculino que aparentava estar na casa dos cinquenta anos, de aspecto rude e abrutalhado, que se deu ao trabalho de chegar bem próximo dele e apontando-lhe o dedo começou a insultá-lo, dizendo-lhe apenas que não gostava dele, num tom nada amigável e fazendo um escarcéu dos diabos sem razão aparente, nada polido, nada a propósito, dizendo-lhe que se podia ir embora, que não precisava nada dele e repetia que não gostava e não gostava, como se da pessoa mais desprezível se tratasse, enquanto gesticulava e esbracejava abusadoramente.

A minha vontade foi correr, “bater” no homem e chamar-lhe nomes. Como era possível duas pessoas, no caso ele e eu, verem Sampaio de maneiras tão diferentes!? Neste caso, o oposto. Fiquei tão indignada com aquela situação que só me apetecia gritar em defesa de Jorge Sampaio por achar aquela atitude de uma trementa injustiça e completamente fora de propósito. Porém, a reacção a este incidente não só me acalmou como enalteceu em mim o que já sentia e pensava acerca do nosso querido Presidente Jorge Sampaio, que sempre teve a minha humilde mas merecida e especial admiração.

Com toda a calma e dignidade Jorge Sampaio atendeu o homem, deixou-o desabafar, por assim dizer, deixou-o dizer todos os disparates, deu-lhe toda a atenção e apenas lhe dizia “sim… sim… está bem… certo… o senhor é que sabe, está no seu direito…” e coisas assim deste género, da maneira mais civilizada possível. Quem estava longe e não ouvia a conversa deve ter pensado que o homem aproveitou o “encontro” com o Presidente para reclamar de alguma coisa, só isso. Mas quem estava a pouquíssimos metros como eu, e ouviu toda a conversa, a reacção do presidente foi sublime. Uma coisa absolutamente espantosa. Sampaio mostrou-se um ser humano da maior dignidade possível. De uma compreensão fora do comum. De uma aceitação incrível. Uma imparcialidade invejável. Enfim… não há palavras que descrevam o altruismo e a capacidade de encaixar uma situação tão inusitada e imprevisível, de tanta baixaria como esta, a meu ver.

E depois desta cena que durou alguns minutos, cada um seguiu o seu caminho, incluindo eu, sem que nada restasse. Tudo igual a antes. O Presidente continuou sem qualquer alteração, como se não tivesse havido nada. Grande homem!

Sempre o achei uma pessoa especial, essa é que é a verdade. E não é por ter sido mais um Presidente da República Portuguesa. Não tem nada a ver com isso. Fiquei feliz por ele ter sido presidente, sim, claro, como não?! E nem nunca o conheci pessoalmente como aconteceu com outros, nomeadamente Ramalho Eanes, com quem trabalhei directamente por ter sido indicada como pessoa de total confiança para os assuntos altamente confidenciais enquanto Presidente da RTP, quando eu era ainda uma jovem de 21 anos apenas, ingénua, inocente, sem experiência da vida, mas já reconhecida por ser de total confiança. Isso envaidecia-me? Nem por isso. Reforçava sim a minha noção de responsabilidade. Eu apenas tinha um foco: ser uma boa profissional porque era para isso que me pagavam e relativamente bem para a minha idade e para a minha experiência. Eu e Ramalho Eanes entendíamo-nos bem. Nunca houve nada a reclamar de parte a parte. Eu ficava enfiada num gabinete relativamente pequeno que só tinha uma janela lá no alto, onde eu não chegava, e um telefone só para me comunicar com ele. E só saía dali com a sua autorização. Mas era o meu trabalho e não havia do que reclamar. Trabalho é trabalho. Falávamos o estritamente necessário. “Sim, com certeza, claro, naturalmente, como entender”… etc. Não havia conversa fora deste contexto. Era tudo muito formal como convinha e como também era uma sua característica, convenhamos. Depois disto Ramalho Eanes foi para a Presidência da República. Não tenho nada contra. Está tudo certo.

Jorge Sampaio era realmente uma pessoa especial. A minha alma reconhecia a sua alma. E eu tinha uma verdadeira admiração por esse homem, sem precisar de motivo especial e muito menos de um motivo que fosse meu.

Quando adoeceu e vi as primeiras imagens dele, fiquei impressionada e algo em mim deu sinal de que o seu fim estava próximo. Fiquei triste mas disse para mim mesma que talvez não, talvez eu estivesse enganada.

De todos os adjectivos que o caracterizam há um que ainda é para mim o mais importante de todos, a “simplicidade” que tão bem o caracterizavam e acho que ainda não mencionei. Mas é, sem sombra de dúvida, o que mais admiro no ser humano, seja quem for, e tenho como provar.

Meu ex-marido com quem estive casada cerca de doze anos, com uma relação complicada e que tinha todos os defeitos do mundo, como eu, apesar de ser um homem muito inteligente e notável no seu trabalho, era de uma simplicidade a toda a prova, sem dúvida alguma... meu filho Henrique, nosso filho, que tão novo deu um passo gigantesco na ciência elevando-o para os mais altos patamares, com defeitos e qualidades, é de uma simplicidade impressionante…

Dez de Setembro, véspera dos atentados em Nova York, primeiras notícias do dia, Jorge Sampaio já não estava mais entre nós. Jorge Sampaio simplesmente partira desta vida. Coincidência das coincidências, dez de Setembro, nunca vou esquecer, dia do meu aniversário.


sexta-feira, 11 de junho de 2021

O nome certo - 91

 

A enfermeira Tânia providenciava a minha mudança do recobro para a enfermaria e já a minha cama deslizava a todo o vapor pelo corredor interminável do hospital. Mas entretanto uma outra enfermeira muito jovem, como todos os outros, se aproximara para ajudar, quando lhe perguntei como se chamava. Joana, respondeu ela. Joana(!), repeti eu, que bonito nome. Se eu tivesse tido uma menina teria sido Joana. Então ela perguntou se não tinha filhos. Respondi-lhe que tinha um filho homem com quarenta anos. E ela continuou, então como se chama o seu filho? Henrique, respondi. Porque não lhe pôs João, perguntou novamente. Se gostava tanto de Joana, podia-lhe ter chamado João!?

Achei imensa graça à apreciação dela e sorrindo disse-lhe que não, que as coisas não eram assim, pelo menos para mim. Eu tinha uma lista com alguns nomes e em princípio, seria algum daqueles. Mas quando olhei para ele, logo no primeiro olhar, na primeira impressão, percebi que nenhum daqueles nomes encaixava. E tentava descobrir qual o nome certo, porque isso era muito importante para mim.

É frequente, quando conheço uma pessoa, seja homem ou mulher, criança, adulto ou idoso, ao saber o seu nome, perceber se tem ligação ou não. Umas vezes faz todo o sentido, outras vezes nem tanto, ou seja, alguma coisa não bate certo e o problema é do nome, de acordo com a minha intuição. E com o meu filho não foi diferente. Nenhum dos nomes da lista batiam e muito menos João, que nem constava da lista. E não é que não goste do nome João. Gosto mesmo muito. Mas não era para ele. E aí começou a minha luta, a procura do nome certo, porque eu precisava de lhe dar um nome, claro. Assim, nos dois dias que se seguiram ao seu nascimento, a minha única preocupação era encontrar o nome, o que não foi tarefa fácil. 

Durante toda a minha gravidez, os tios padres chamavam-lhe o “Óscar”. Óscar, imagine-se! Um nome complicado, um pouco áspero para o meu gosto, sem doçura, com uma energia que não se coadunava com o que estava no meu ventre. Teria de ser algo muito mais fresco, não muito batido e com alguma selectividade, digamos. O que haveria de ser então? Era uma grande dor de cabeça, pois não poderia errar.

E assim começou a minha exaustiva busca pelos recônditos do inconsciente, que parece que não sabe de nada quando na verdade sabe de tudo. Só que está muito bem guardado, só para nos dar trabalho. E pensava, pensava… um nome que não fosse muito corriqueiro. Que fosse sonante, num conjunto bem equilibrado de vogais e consoantes. Contudo, os nomes que me vinham não tinham nada a ver com isso. Mas eu tinha que achar um nome, ou melhor “o” nome, o tal.

Como estava na Clínica e não tinha nada que fazer a não ser descansar, esse foi o meu trabalho intensivo. Comecei então a pensar na história de Portugal, nas figuras importantes que de algum modo se destacaram e as primeiras figuras que me apareceram foi a célebre e afamada família ínclita, conforme o atestou Luís de Camões. D. João I e D. Filipa de Lencastre, uma família de destaque com vários filhos, sendo o Infante D. Henrique o que teve especial relevo. Posso ter-me esquecido de todos os reis, mas deste nunca, porque achei admirável, especialmente a vida do Infante, pelo empenho que teve nos descobrimentos e a expansão do império. 

Lembro-me perfeitamente, ainda criança, da primeira vez que ouvi falar dele e da sua vida, como fiquei maravilhada com esta família e em especial com ele, pelo facto de me religar a África, onde passei a melhor parte da minha infância. De certa forma achei que era ele o responsável por essa extraordinária e maravilhosa experiência que tive. Daí, achá-lo corajoso, sem precisar de entrar em guerras; corajoso, por conquistar o mar, o terra, o céu… corajoso por ir à procura de “novos mundos”, novas culturas, novos projectos de vida. Era o máximo. 

E aí estava ele, um nome que soava bem, com um toque de elegância e diplomacia, embora fosse muito mais do que isso. Sonhador, mas um sonhador acessível, que foi atrás e encontrou, que se atreveu e não temeu. Enfim, muito, muito auspicioso. Um nome começado por “H”!... Maravilhoso e diferente, quanto mais não fosse pela sua história. Uma letra que não se lendo, está lá, marcando a sua presença, a sua consistência. Henrique, proveniente de uma família especial, com todo um historial marcante e inesquecível. Era isso. Estava encontrado o nome.

Dois dias. Dois dias para essa tarefa, mas eu estava feliz, pois tinha acabado de encontrar o nome para o meu amado filho. A primeira pessoa a visitar-me depois dessa descoberta foi a minha tia/mãe e logo me apressei a dar-lhe a notícia. Ela, curiosa, logo quis saber. Henrique, proferi. Mas ela não reagiu como eu gostaria. Ficou até decepcionada, dizendo “Henrique… ai filha… não é um nome muito bonito…!” Mas logo a interrompi, dizendo que o filho era meu e era eu que escolhia. E se eu achava bonito não me importava que os outros não o achassem. Ela encolheu os ombros e por um breve instante ficou calada e depois voltou a falar dizendo “pois… tu é que sabes…”

Esta reacção, embora a não a tivesse em conta, para falar verdade deixou-me um bocado insegura. Eu gostaria que ela o confirmasse e reagisse de modo muito positivo. Mas não foi nada disso. Por isso, em parte, a minha felicidade parecia cair por terra.

Eu estava num quarto com outra senhora um pouco mais velha, que já estava no terceiro filho. A senhora também estava à espera da família, que deviam estar a aparecer por ser a hora da visita. Ao ouvir a conversa, o nome escolhido e a reacção negativa da minha tia/mãe, logo interveio para dizer que também ela tinha um Henrique na família. Era um sobrinho de oito anos que devia estar a chegar. Aí a minha confiança voltou e começou a derrubar a insegurança que me tinha causado a reacção da minha tia/mãe, que se encolheu um pouco com o que a senhora tinha acabado de dizer. E de repente as portas abriram-se e entrou pelo quarto dentro um verdadeiro bando de crianças que nunca mais acabava. Eram mesmo muitos, todos sobrinhos da minha companheira de quarto, como ela mesma acabava de explicar, que vinham ver a tia e conhecer o priminho mais novo, recém-nascido. As crianças entraram, cumprimentaram e dirigiram-se à tia, que se apressou a continuar a conversa. “Oh, cá está ele, o meu sobrinho Henrique”, disse ela, e logo o garoto levantou o braço, identificando-se.

E porque nada é à toa, sem razão de ser, se eu tivesse alguma dúvida, ela acabava de se desvanecer naquele exacto momento. Aquele menino era sem dúvida um enviado do “destino” para confirmar o nome que eu tinha acabado de encontrar e que parecia que não estava a ser muito bem aceite por uma pessoa que tinha alguma influência sobre mim. 

Lima Duarte, um actor brasileiro ímpar, que marca pontos na tela brasileira em todo o mundo, de seu nome verdadeiro Ariclenes Venâncio Martins, trocou de nome para ser famoso. Sua mãe percebeu que para ele ser quem queria ser, não chegaria longe com o nome que lhe tinha dado e ela mesma lhe deu outro nome, o que ela achou certo para tal. Porque não, fazer isto logo de início, à nascença? Mas ele não é o único. Quantos não trocam de nome pela vida fora, por perceberem que com o nome que têm não vão a lado nenhum!?

O facto é que se o Infante D. Henrique fez um trabalho excelente com os Descobrimentos, o meu filho Henrique, sem ser infante, não fez um trabalho inferior no caminho da informática. Muito novo, como trabalho da sua tese de mestrado, ele desenhou um algoritmo que permitiu desbloquear um problema sério que estava sem solução há vinte anos e com o qual ganhou ainda o primeiro prémio num concurso a nível internacional.

Apenas por causa do nome certo? Não só, mas também.


sábado, 1 de maio de 2021

A vida depois da morte - 90


Quando as pessoas falam e se indagam sobre a vida depois da morte, é sempre uma grande dificuldade falar sobre o assunto porque… é complicado. Mas a vida depois da morte existe, sem sombra de dúvida. Tentar passar a palavra é que é difícil, porque não há perguntas para este assunto, nem respostas para as mesmas, que deixem as pessoas em geral entendidas e satisfeitas com o que se possa dizer. Normalmente pretende-se uma resposta concisa, perfeita, exacta. E num assunto destes isso é algo impossível. Se as pessoas não tiverem já consigo uma intuição que as faça chegar lá, também não vai adiantar nada falar no assunto, porque não vão conseguir ligar-se. Se já lá estiverem, então sim, o que se falar sobre esse assunto não carece de muita perguntas porque a coisa é aceite de forma natural e intuitiva.

Quando o meu filho era pequeno muitas vezes tinha alergias. E uma das alergias mais frequentes era ao chocolate. Ele podia comer chocolate mas até uma determinada quantidade. Quando ultrapassava aquele limite que o corpo dele lá sabia, era certo que a alergia aparecia. E depois eram as comichões e a pele com prurido. Por isso, com frequência, lá ía eu com ele ao pediatra que observava e conforme o caso, prescrevia o medicamento acertado.

Numa dessas vezes em que ele mais uma vez teve alergia o médico receitou dois medicamentos. Dois frascos de vidro, mais ou menos do mesmo tamanho, um para ele tomar o xarope, outro para passar na pele e suavizar a erupção. E depois era esperar que o tempo fizesse o seu efeito.

Era o terceiro ou quarto dia que estava a tomar e durariam para uma semana ou um pouco mais. Como ele teria nessa altura uns nove anos, era eu que lhos administrava. Assim, após as refeições, lá vinha a colher de sobremesa de xarope e o de passar no corpo à noite depois do banho e de manhã quando se levantava.

Os dois frascos de tamanho idêntico estavam sobre a pedra mármore de um móvel na casa de jantar, onde eu os colocava sempre na mesma ordem: primeiro o xarope e ao lado o outro da coceira.

Uma tarde de sábado, estava eu sentada no sofá da sala com a televisão ligada enquanto ia fazendo outras coisas, quando me apercebi de que uma energia se apoderara do meu espaço e pouco a pouco interferia comigo. Passava para lá, passava para cá. Passado pouco tempo voltava a fazer o mesmo e assim, repetidamente, por aí fora. Percebi que era a energia da minha falecida mãe, só não conseguia perceber o que é que queria. E sempre que aquela energia se manifestava eu indaga-me, na esperança de conseguir decifrar o motivo da sua presença.

Uma entidade desencarnada só se manifesta por um motivo imperioso. Ao contrário do que muitos acreditam, não andam cá e lá porque esta já não é a terra deles, já não é o seu mundo. Mas sim, vêm em nosso auxílio quando têm essa missão. Porque todos estamos destinados a cumprir missões. Todos temos os nossos “deveres”, as nossas tarefas espirituais. E a minha falecida mãe era uma grande protecção do meu filho. Talvez porque ela desencarnou muito cedo e não nos pode valer de muito nesta vida. O facto é que ela se fez presente sempre que foi necessário. Umas vezes porque eu a chamava, outras vezes por sua própria iniciativa. Foi o caso. Eu estava tranquila da vida, achando que estava tudo bem, mas ela estava constantemente a passar à minha frente numa chamada de atenção que eu não conseguia descortinar, não conseguia antever.

E à medida que o tempo caminhava, a sua energia se tornava mais forte, mais rápida, mais prepotente. Várias vezes me levantei para inspeccionar o meu filho no quarto, que estava sempre entretido com os seus jogos e no seu mundo de sempre. Portanto, não tinha a menor ideia do que aquilo poderia ser.

Até que chegou a hora do jantar e fui para a cozinha preparar as coisas para jantarmos. Jantámos e a seguir ao jantar, novamente na cozinha, chamei o meu filho que já se tinha levantado, para tomar o xarope. Ele imediatamente acorreu, dizendo que não era preciso ser eu a dar-lho, que ele mesmo o tomaria. Não vendo qualquer impedimento, respondi-lhe que sim, ao mesmo tempo que lhe passei para a mão a colher de sobremesa com que o tomaria. E lá foi ele todo contente por se sentir independente a tomar o xarope sozinho. É então que depois de tomar o remédio sozinho, retorna à cozinha com a colher numa mão e o frasco por fechar na outra. Passou para a minha mão a colher e disse-lhe que deixasse o frasco em cima da bancada que eu o colocaria no sítio. Assim foi. E voltou para o seu quarto para as suas brincadeiras.

Quando pego no frasco e o levo para o seu lugar, sobre a pedra mármore junto ao outro, e vou colocá-lo no lugar certo, cai a ficha. Vem-me imediatamente à ideia que da última vez que lhe tinha dado o remédio, por uma pressa qualquer, não coloquei o frasco na ordem certa, ou seja, tinha alterado a posição dos frascos. E o frasco que estava sempre em primeiro plano, o de tomar, tinha passado para o segundo. Azar! Ele tinha acabado de ingerir o que era de passar no corpo.

Aflita, comecei imediatamente e sofregamente a ler a burla que falava da substância em termos “venenosos”, e a chamada de atenção para a eventual toma do medicamento. O meu querido filho, por minha culpa, tinha acabado de ingerir uma substância altamente tóxica. Percebi então o que aquela intervenção queria dizer. Uma vez mais a minha saudosa e amada  mãe tinha vindo fazer o que lhe era possível. Por isso ela corria de um lado para o outro, para me chamar a atenção de algo que estava prestes a acontecer. A energia dela passava precisamente junto aos frascos dos medicamentos. Era sempre ali e só ali. Mas agora estava explicado.

A seguir segue-se o caos. Pego no meu filho, entro aflita no elevador e saio do prédio a gritar. Vem o homem do café e grito-lhe por amor de deus que me chame uma ambulância para ir para o hospital. Assim foi. A ambulância chegou e lá fomos os dois para o hospital, rezando e chorando quantas lágrimas havia para deitar e rogando aos céus e a tudo o mais que o meu querido filho se salvasse.

Estivemos no hospital o tempo necessário para resolver o problema e regressámos a casa com ele são e salvo. Isto foi um fim de semana. Na segunda-feira quando fui trabalhar marquei logo uma consulta para o pediatra para o pôr ao corrente da situação, que me garantiu que não havia o menor problema no que aconteceu, uma vez que a quantidade tóxica do produto era tão, mas tão baixa, que mesmo que ele tivesse tomado o frasco inteiro, o mais que lhe podia acontecer era ficar nauseado e vomitar.

Tudo bem, percebi que não tinha passado de um grande, grande susto e que a vida do meu filho não tinha estado em risco. Excelente. Em todo o caso a minha mãe viera em meu auxílio. Porquê, então, uma vez que não havia grande problema? Pois… porque ela sabia que eu não sabia disso, e que uma vez o remédio tomado, eu ia ficar em pânico como fiquei. É normal. Qual é a mãe que não ficaria? E portanto, a advertência dela era dizer-me simplesmente que os frascos estavam trocados. Mas como podia eu adivinhar?

Não é fácil. Estávamos em planos diferentes. Nem sempre é fácil receber a mensagem deles do outro lado da vida. Aqui mesmo nesta vida quantas vezes as pessoas se comunicam sem se conseguirem entender, com coisas simples, parece que falam línguas diferentes!? Há vida depois da morte? A vida apenas se limita a continuar. Num outro plano, sem lugar, sem tempo, sem matéria, mas é para lá que ela segue e prossegue. A vida é infinita, imortal. Apenas mudamos de rumo. Se isso não fosse verdade, ela não se teria podido manifestar. Ah, mas isso não acontece com todos. Pois não! É por isso que uns sabem e entendem. Outros não.


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A manga - 89

 

Numa bela tarde de calor tropical na Guiné Bissau, sentada no chão da varanda da sala do primeiro andar onde morávamos, percebi que a árvore mais próxima, do conjunto de árvores que se seguiam à beira da estrada pela rua fora, tinha ramos que se estendiam até muito próximo de mim. A varanda tinha um gradeamento de ferro com desenhos floreados, através da qual eu metia as mãos na tentativa de chegar aos galhos. Mas apesar de chegarem muito perto do gradeamento, eu não conseguia alcançá-los. E uma coisa que eu gostava de fazer era sentar-me no chão e meter os meus braços de fora para ir ao encontro dos ramos e tentar tocar nas folhas, pelo que todos os dias fazia esse exercício para ver quando os meus bracitos alcançariam a mangueira. 

Não havia muito o que fazer, a não ser descobrir por mim mesma formas diferentes de me entreter. A casa ficava dentro do quartel e a única distracção eram as paradas militares e os exercícios da tropa. De resto, a minha irmã era bebé, passava muito tempo com a nossa mãe e eu, com cinco anos, tinha que me virar sozinha, entretendo-me com o que quer que fosse. Assim, passava muito tempo comigo mesma, sentada num canto da varanda, olhando lá para fora para ver quem passava e quem não passava. Qualquer coisa do exterior era uma distracção para mim. Gostava de apreciar as diversas formas de vestuário dos nativos e os seus múltiplos adornos. Era como uma passagem de modelos, que naquela altura ainda não sabia o que isso era.

Num belo dia, ao chegar ao meu canto da varanda descobri que havia uma bolinha minúscula no ramo mais próximo da varanda. Meti o braço, mas a minha mão ainda não conseguia alcançá-la. Chamei o faxina que me disse que era uma manga pequenina que estava a crescer. Eu estava habituada a ver as mangas grandes, prontas para comer. Uma manga pequenina como aquela eu nunca tinha visto. O faxina explicou que ela iria crescer e ficar igual às outras que se compravam e logo a minha reacção foi exprimir-me no sentido de lhe fazer saber que eu queria aquela manga. Ele explicou-me que ela tinha que crescer para se poder comer. Compreendi, mas era ponto assente que aquela manga era minha, uma vez que era eu que a tinha descoberto e porque estava ali mesmo junto à varanda, como se estivesse a espreitar-me no meu canto preferido de muitas horas. De facto, se eu já passava bastante tempo naquele lugar para ver a rua e quem por lá passava, a partir daquele momento passaria muito mais tempo para apreciar e vigiar a minha manga.

É então que começa uma saga. A cada dia a manga crescia um pouquinho. Às vezes notava-se menos, outras vezes mais. E a certa altura eu já queria apanhá-la. A sorte da manga é que, apesar de todos os meus esforços, eu não conseguia lá chegar, ainda que fosse por muito pouco. Por outro lado, o faxina chegava na perfeição e isso já me bastava. Na hora certa ele apanhá-la-ia por mim, ou melhor, para mim. A manga era minha.

Muitas e muitas vezes eu ia com ele ao mercado. A minha mãe ficava com a minha irmã, ainda bebé, deixando-me ir com ele, no qual confiava. Todos os militares tinham em casa faxinas. Faxinas eram os Guineenses que faziam parte do corpo militar e que eram destacados para ajudar em casa dos militares que eram acompanhados das respectivas famílias em África. O facto de lhes chamarem faxinas não tinha nenhuma conotação depreciativa. Eles auxiliavam nas tarefas domésticas da mesma maneira que na metrópole havia as empregadas ao domicílio. Ali quem lhes pagava era o exército e os militares ensinavam-lhes muitas coisas. Se calhar também aprendiam coisas com eles, não sei. Nas outras casas não faço a menor ideia como seria. Em nossa casa os trabalhos que eles faziam eram trabalhos de rotina: limpeza e às vezes cozinhavam. Era tudo pacífico e eles faziam parte da família. E na verdade eu ia sempre com ele ao mercado, que era uma coisa que adorava. Aquilo era uma festa para mim. Muitas tendas com tudo o que se possa imaginar. Desde a alimentação até às mais variadas coisas. Às vezes ele dizia-me para ficar sentada num determinado sítio até ele voltar e eu tinha ordens expressas da minha mãe para lhe obedecer, o que sempre fazia. Compreendia que era assim que tinha que ser. Nunca houve problemas. Limitava-me a ficar sentada a observar o movimento, a barulheira, a confusão e a tudo eu prestava imensa atenção.

Mas voltando à saga da manga. Todos os dias quando acordava lá ia eu a correr para o meu posto de vigia observar a minha manga. E dia a dia ela crescia ao mesmo tempo que ia mudando de coloração. Muitas vezes chamei o faxina para a apanhar, porque eu a queria, mas ele dizia que ainda não estava na altura, que tinha que esperar. E lá ficava eu sentada a observá-la e a admirá-la, conformada com o facto de ter que esperar. A manga cresceu e ficou grande e bonita. Uma maravilha! Um presente dos deuses. E todos os dias eu chateava o faxina para a apanhar, mas ele ia sempre dizendo que ainda não estava na altura. Até que um dia, ao chamá-lo mais uma vez, finalmente disse que no dia seguinte a apanharia. No dia seguinte? Ainda tinha que esperar mais um dia? Se já estava no ponto, porquê mais um dia? Não percebi porquê mas não tinha outro remédio. Afinal eu não chegava lá, portanto tinha que ser ele a apanhá-la. Mas pronto, pelo menos o dia tinha chegado. Era só mais umas horas e a manga estaria enfim nas minhas mãos e o meu desejo seria uma realidade.

E o dia seguinte chegou. Mal abri os olhos lembrei-me imediatamente daquilo a que estava destinado o meu dia. O encontro com a minha preciosa manga. É que aquela não era uma manga qualquer. Aquela era uma manga especial porque eu a tinha visto praticamente nascer e tinha assistido ao seu crescimento, à sua maturação, etc. Além disso ela foi aparecer mesmo em frente à minha varanda, bem próximo do gradeamento, como se realmente quisesse ser adoptada por mim. Não havia volta a dar, aquela manga era minha. Ela mesma sabia que era minha, com toda a certeza.

Mas chego à varanda e nem queria acreditar no que os meus olhos viam, ou melhor, não viam. A manga não estava lá. A minha bela manga evaporara-se. Já era. Justamente no momento em que viria para mim, fora-se. Olhei imediatamente para baixo, para ver se estaria no chão, mas nem rasto dela. Era uma vez uma manga. Chamei o faxina que não ligou muita importância e desatei a chorar. Fiquei muito triste. Tanto tempo de espera, tanta paciência, eu sempre a resistir e a poupar a minha manga para ela ser o que tinha que ser e no momento certo foi-se. Fiquei mal. Aquilo não estava certo e era uma grande injustiça. O fachina disse que alguém a tinha apanhado e pronto. Acabou-se.

Este episódio aparentemente insignificante e sem interesse nenhum, foi relevante. Pela vida fora acompanhou-me em momentos de maior introspecção em que eu sempre lembrava a manga que um dia me tinha escapado. A manga que me tinha sido sonegada, para não dizer roubada. É claro que eu sabia que a manga na verdade não era minha. Não era de ninguém. Era da árvore e de quem a apanhasse. Mas no meu íntimo era minha. Quem a teria levado, exactamente no dia em que estava previsto ser apanhada? Era uma grande coincidência e isso não me saía do pensamento.

Fui crescendo e percebendo que aquela cena me tinha marcado não sem um propósito, por isso estava dentro de mim de uma maneira tão intensa. Os anos passavam mas havia sempre alguma altura, algum momento, em que aquela lembrança voltava a assolar o meu espírito e a pergunta permanecia no ar, sem resposta. E porque era aquilo assim tão importante?

Acima de tudo eu era uma criança feliz. A melhor e a maior coisa que os meus pais me deram foi amor. Eu não era propriamente uma criança mimada, mas uma criança feliz, muito feliz. Eu tinha tudo o que queria, sendo que o que eu queria era ser livre e era livre porque era amada. Posso dizer que tive uns pais maravilhosos, sem dúvida. Apanhei uma ou outra palmada do meu pai, sim, quando mereci, mas o amor estava lá sempre. E eu sabia disso. Aquele episódio da manga foi o meu primeiro buraco negro. O meu primeiro confronto com os reveses da vida. Mais tarde eu haveria de perceber que ali estava o selo do meu destino. A manga representava tudo o que a vida me daria para em seguida me tirar. Ao longo de toda a minha jornada estabeleci comparações entre aquela história e cenas “tristes” que por mim passaram. Pessoas que vêm e vão, coisas que vêm e vão.   

Mas não foi só isso. Toda a vez que eu pensava naquilo havia uma pergunta que nunca tinha tido uma resposta. Seria porque não havia resposta? Não, claro que não. Nós temos sempre a resposta para tudo ou quase tudo. A resposta estava lá, todo o tempo esteve lá, mas eu não conseguia vê-la. Um dia, tinha eu uns quarenta e tal anos, estava a trabalhar e por qualquer razão que nem me lembro uma vez mais a manga veio à minha memória. Quem levaria a “minha” manga? Só que dessa vez a resposta caiu logo, sem mais demoras. E não foi inútil, não. Aquela resposta era finalmente o fecho de uma história que duraria mais do que muito. Se arrastaria por toda uma vida. O faxina. O faxina, claro, apanhou a manga para ele. Por isso ele disse que no dia seguinte a apanharia para mim. Estava fechado o puzzle. E eu não sabia disso? Claro que sabia. Porque demorei tanto tempo a perceber ou admitir? Assim é na nossa vida. As respostas para tudo estão lá, juntamente com os problemas, com as dificuldades, com as situações. Não vemos porque não queremos. E ao admitir isso, alguma coisa significativa mudou em mim. Eu tinha que admitir que a manga definitivamente não era minha. E ele tinha o direito de a apanhar, tanto quanto eu. Não me disse nada porque não tinha que me dizer. Só isso. Percebi que naquele exato momento o quebra-cabeças estava resolvido e eu não precisava mais de matar a minha cabeça com aquele dilema. Estava tudo bem. A verdade estava finalmente assumida. Até porque ele podia. Ele era meu cúmplice. Antes mesmo que eu tivesse nascido e existido já ele apanhava mangas. Todas as mangas eram muito mais dele do que minhas. Estava resolvido um problema que me acompanhara por toda a vida estupidamente. Ou não, não tão estupidamente. Percebi nesse momento porque o episódio da manga tinha tido uma dimensão tão vasta e relevante e porque fora tão importante encontrar a resposta. A resposta encerrava um assunto que estaria subjacente em toda a estrada da minha vida. O que vem, o que vai, o que eu não quero ver ou a verdade “oculta” e a capacidade para enfrentar a realidade: o amadurecimento ou o desenvolvimento espiritual.

Eu era muito pequena, mas tinha a noção de que aquilo era importante. Um espelho onde toda a minha vida se reflectiria. O faxina? Bem, o faxina é parte integrante desta história. Sem faxina a história não teria sido completa. O faxina representa todas as barreiras que se interpõem na nossa vida para as ultrapassarmos, para nos ajudarem a crescer e sem as quais nunca aprenderíamos a aceitar a vida como ela é, sem fantasias e sem delírios.