Alguém me disse, depois de ter lido algumas das minhas histórias, que dou
sentido à minha vida. Por acaso eu acho que é mais a vida que me dá o sentido,
a orientação, sei lá… porque as coisas acontecem simplesmente, encaixando-se
por si mesmas.
Eu tenho uma meia-irmã, filha do segundo casamento do meu falecido pai, com
quem deixei de me comunicar, por conta das maluquices do meu cunhado, marido
dela, que a obrigou a cortar relações com as irmãs. Foi terrível para para
ambas, mas para não complicar ainda mais a vida dela, que ficou encurralada
numa situação extremamente delicada, não tivemos outro remédio
senão distanciarmo-nos. As escolhas são feitas e a responsabilidade cabe a
quem as faz.
O tempo foi passando e as feridas sarando sem nunca serem definitivamente
curadas, mas o facto é que a vida continua. Passaram-se anos e a páginas tantas
comecei a sentir uma grande saudade dela e das crianças que, entretanto, já
estariam bem crescidas. Como estariam, como seria a vida deles? Lembro-me de
que uma das minhas grandes preocupações era que ele não queria que as crianças
fossem à escola (?) porque - dizia ele - os pretos batiam-lhes(?). E coisas
destas eram difíceis de digerir, além de que um grande problema para a minha
irmã.
Bem, então, um dia comecei a pensar neles com saudade e as preocupações
começaram a voltar. O que fazer? Como saber deles se já todos tinham falecido?
O pai a mãe, os tios… restavam os primos dela, mas como encontrá-los? Por
esta altura já eram homens… sabia-se lá por onde andavam?
Até que um dia, estando eu em casa de uma vizinha e amiga, onde vou com
frequência passar um bocadinho de tempo, por acaso comentei que precisava de
consultar um oftalmologista e logo ela me falou do dela, recomendando-o
vivamente. É muito bom, muito bom mesmo. Nós todos gostamos muito dele,
o Miguelito. Perguntei o nome: MR. Ao ouvi-la pronunciar o nome fui
apanhada de surpresa e achei curioso, dizendo-lhe que sabia muito bem quem era,
um primo/irmão da minha meia irmã.
Lembrava-me dele ainda garoto, brincando com o irmão e a minha irmã. Ela
também achou engraçada a coincidência de ele ser primo da minha irmã, sobrinho
do meu pai por parte da minha madrasta e voltou a frisar que ele era um bom
especialista. Poderia lá ir mas, de repente, lembrei-me de como toda aquela
gente era materialista, vivendo só em função do dinheiro. Ele mesmo, ainda
garoto, com frequência salientava o facto de querer ser médico e fazer uma
especialidade que desse bastante dinheiro e como o pai e a tia tinham ambos
casas de óculos (oculistas), a oftalmologia vinha a calhar. E apesar da minha
vizinha, que é psicóloga clínica, ter dado uma referência tão boa a seu
respeito, ainda assim não me convencia. Por outro lado, talvez fosse o caminho
para saber alguma coisa da minha meia irmã. Para ser bem franca, já me tinha
passado pela cabeça tentar localizá-lo, porque era o único recurso viável.
Eu sabia que ele era médico oftalmologista e isso seria uma pista. Com toda a
certeza ele teria notícias dela. Mas essa possibilidade eu mesma me tinha
encarregado de descartar. Aquela gente nunca tinha atraído a minha simpatia. E
agora, sem mais nem menos, aí estava ela a dizer-me aquilo, com a agravante de
que tinha aí um bom pretexto, porque iria à consulta e ficava a saber dela. O
que fazer?
Fiquei com aquilo no pensamento mas deixei o tempo afastar aquela hipótese,
porque era um caminho que, decididamente, não me apetecia percorrer. Havia de
haver outra hipótese de me aproximar dela. Entretanto, era certo que precisava
de ir a um oftalmologista, mas mais uma vez o tempo foi passando, até que um
dia, o meu olho esquerdo não estava nada bem, via passar umas coisas esquisitas
e aquilo estava a perturbar-me muito.
Voltando a pensar no assunto, mais uma vez veio a hipótese de ir ao Miguel
e mais uma vez senti que não queria lá ir e ponto final. E como sou uma pessoa
prática, decidi de uma vez por todas ir ao oftalmologista, independentemente de
querer ou não conciliar as duas coisas. Paciência, o problema da minha irmã
continuaria por resolver e portanto, peguei no telefone para ligar para
a Cuf Infante Santo. Eles tinham muito bons especialistas, haveria de
ser encaminhada para o médico que fosse, não importava qual, mas acreditava que
ia ser a solução certa.
Fiz a chamada, o telefone começou a tocar e veio do outro lado uma
voz feminina. Disse que precisava de uma consulta de oftalmologia, ela
perguntou para quando queria e respondi que o mais depressa possível, pois era
de carácter urgente. Para hoje, deseja? - Perguntou ela. Fiquei espantada com a
brevidade e não podia deixar de aproveitar
aquela óptima oportunidade. Estava tudo no caminho certo e eu não
tinha precisado de ir ao Miguel. A empregada disse que a consulta seria às
dezassete e trinta e como já passava das quatro da tarde, era só o tempo de me
pôr a andar, pois teria que atravessar toda a cidade para lá chegar. Perguntei
ainda qual era o médico, para me orientar e ela respondeu: consulta hoje às
dezassete horas e trinta com o doutor MR. Hã?!...
Estava feito. Não havia como fugir.