Tocaram
à campainha lá em baixo. Não era necessário perguntar quem era. O sr. Filipe,
que vinha arranjar o estore do meu quarto, cuja correia se partira. Há quatro
noites que estava a fazer o enorme sacrifício de dormir na escuridão total,
pois o estore tinha caído por inteiro, não deixando passar o menor raio de luz,
obrigando-me a ficar na mais completa escuridão. Tinha apenas uma leve
claridade vinda do lado de fora do quarto com a porta aberta.
Falei
com várias pessoas, mas todos estavam muito ocupados. Finalmente encontrei uma
boa alma, o sr. Filipe, que se propôs de imediato a deslocar-se à minha casa
para resolver o problema. Por isso, quando a campainha tocou, percebi que só
podia ser ele e sem mais demoras abri a porta. Ouvi o elevador e eis que no
terceiro andar a porta se abriu, saindo de lá uma pessoa, o sr. Filipe, que eu
não conhecia.
Um
homem de estatura alta e magro, com um enorme sorriso que às vezes me pareceu
um pouco falso e forçado. Talvez quisesse parecer simpático a toda a força. Mas
cada um é como é. Comecei por lhe agradecer a vinda à minha casa e feitas apresentações
encaminhei-o para o quarto, a fim de ver o trabalho que iria fazer. Pediu
licença para entrar e lá foi ver o que era.
Viu e
olhou para mim sempre com aquele sorriso meio estranho porque meio patético, começando
por dizer que já tinha estado ali no meu prédio, em casa de duas vizinhas
minhas, que depois da descrição feita por ele lhe disse que sabia muito bem
quem eram. Ele morava ali muito perto, era reformado e fazia estes biscates
para ganhar mais qualquer coisa e manter-se ocupado, coisa perfeitamente normal.
Depois
de ver bem o que era e com um rolo de fita na mão, que tirou da sua sacola de
trabalho, disse que estava tudo bem, mas que a fita tinha que ser substituída e
eu não lhe tinha dito isso. Respondi que sim, que lhe tinha dito ao telefone
que a fita tinha rebentado e o estore estava todo caído, obrigando-me a dormir
no escuro, mas ele com a sua cara de pateta simpático, sempre a sorrir, dizia
que não, que eu não tinha dito isso, que não lhe tinha explicado esse pormenor.
Como
não, se ele até estava com um rolo na mão?! Eu tinha a certeza de que lhe tinha
dito. E olhando para ele, percebi que ele estava a mentir. Completamente, sem
dúvida nenhuma. Mas porquê? Não me pareceu que não quisesse fazer o trabalho,
pois se assim fosse nem se daria ao trabalho de lá ir, como é óbvio. Ir lá por
outra razão qualquer, estava fora de questão, pois a pessoa que mo recomendou era
da mais completamente seriedade. Então, porque seria? Estaria eu a inventar? E
a minha intuição começa a trabalhar exaustivamente, dando sinal de alarme, o
que já é habitual comigo.
Entretanto,
da mesma maneira que eu captei que ele estava a mentir, também ele captou que
eu estava a perceber isso e para continuar o filme dele, fingiu medir a fita
que se tinha soltado, apenas para concluir que a que tinha levado não chegava
para o trabalho. Talvez sim, talvez não, só ele o saberia. Mas isso não
interessava. O que interessava é que ele não ia fazer o trabalho, foi isso que
eu percebi. Sem perceber nada do que se estava a passar e como aquilo era muito
importante para mim, disse-lhe que o levava à drogaria mais próxima,
relativamente perto, também, para comprarmos a fita. Respondeu que não podia
ser, porque estava sem tempo, tinha um não sei quê que fazer e o tempo estava
contado. Mas, tendo percebido como realmente era importante para mim o problema
do estore avariado, disse que depois do almoço, por volta das três horas,
voltaria com a fita para então fazer o trabalho. Menos mal. Contentei-me com a
decisão dele, pois não havia volta a dar. Contudo, eu tinha a certeza absoluta
de que o sr. Filipe não estava a ser franco. Havia algo que eu não percebia e
que o fazia estar a mentir. Disso eu tinha a certeza. Porquê? Não entendi nem
me apeteceu matar a cabeça com aquilo. Ele voltaria dali a pouco e o problema
ficaria resolvido. Disso eu também tinha a certeza, o resto era secundário.
De facto,
na hora combinada, uma vez mais, o Sr. Filipe estava de volta com a sua sacola
do material de trabalho, espalhando aquela cangalhada toda para começar a obra.
E à medida que ia fazendo o trabalho ia falando de si, da sua vida, do neto,
etc., conversando e trabalhando, o tempo ia passando. Ao fim de uma hora de
trabalho o estore de novo no lugar certo e a funcionar como devia. Tudo voltava
ao normal, para meu grande alívio. Essa noite mesmo eu já não teria que ficar
no escuro. De manhã quando acordasse teria o enorme privilégio de ver a luz
abençoada. A luz da vida, da energia, do princípio e do fim de tudo.
Já na
ponta final, o sr. Filipe deu um rumo um pouco diferente à conversa e começou a
falar do Covid, confessando-me que já tinha sido contaminado, tendo estado
muito mal. Por isso não tencionava ter mais vez nenhuma. Agora tomava todos os
cuidados e mais alguns. E continuando a conversa confidenciou-me que não
aceitava qualquer trabalho. Falava só ele. Eu limitava-me a escutá-lo. Então…
não aceitava qualquer trabalho. Primeiro ia ver. Se a casa não fosse
suficientemente arejada e aberta, ele não aceitava. E olhava para mim com o
olhar bem fixo nos meus olhos para eu saber que desta vez ele estava a dizer a
verdade. Percebi imediatamente que estava certa quando anteriormente ele me disse
que eu não lhe tinha dito que a fita estava partida, o que não fazia o menor
sentido. Agora sim, as coisas encaixavam. Claro que ele tinha ido de manhã só
para ver. Ele sabia de antemão que não faria o trabalho naquele momento, por
isso invocou a desculpa da fita, dizendo que eu não lhe tinha dito. Ele sabia
que estava a mentir e que eu percebi que ele estava a mentir. Mas agora as
coisas estavam explicadas.
Ele terminou,
paguei o trabalho dele, agradeci muito e foi-se.
Quando
as pessoas mentem, normalmente só contam com elas. E acham que a pessoa para
quem se dirigem apenas capta a mensagem falada, a mensagem oral. Por trás da
mentira há a verdade. Uma coisa é o que se diz e outra é o que é e o que é tem
uma força completa, muito mais poderosa do que a mentira. Digamos que a mentira
é a casca da laranja ou do fruto e a verdade é o fruto. Da mesma maneira que
aquilo que se vê nem sempre corresponde ao que é real. Por vezes há uma outra
realidade que se esconde. Quando os sentidos trabalham todos para o mesmo fim,
um sexto sentido comanda tudo e todos os outros lhe obedecem, por assim dizer.
Esta história
do sr. Filipe não tem a menor importância. Não é relevante. Mas é apenas um
exemplo do que pode ser uma mentira e da repercussão que ela pode ter. Aqui não
se trata de um julgamento. Não é essa a questão. Não é a mentira como o mal e a
verdade como o bem. Não é por aí. Até porque há mentiras que se justificam. O que
está em causa é muito mais do que isso, é a perspetiva holística, ou seja, é quando o todo é maior
do que a soma das partes. A verdade está aí. Não importa as palavras que são
ditas. A verdade está antes e depois. A verdade está impressa e tem uma força
que as palavras não têm, sejam elas quais forem.