sábado, 15 de janeiro de 2022

O sr. Filipe - 97

 

Tocaram à campainha lá em baixo. Não era necessário perguntar quem era. O sr. Filipe, que vinha arranjar o estore do meu quarto, cuja correia se partira. Há quatro noites que estava a fazer o enorme sacrifício de dormir na escuridão total, pois o estore tinha caído por inteiro, não deixando passar o menor raio de luz, obrigando-me a ficar na mais completa escuridão. Tinha apenas uma leve claridade vinda do lado de fora do quarto com a porta aberta.

Falei com várias pessoas, mas todos estavam muito ocupados. Finalmente encontrei uma boa alma, o sr. Filipe, que se propôs de imediato a deslocar-se à minha casa para resolver o problema. Por isso, quando a campainha tocou, percebi que só podia ser ele e sem mais demoras abri a porta. Ouvi o elevador e eis que no terceiro andar a porta se abriu, saindo de lá uma pessoa, o sr. Filipe, que eu não conhecia.

Um homem de estatura alta e magro, com um enorme sorriso que às vezes me pareceu um pouco falso e forçado. Talvez quisesse parecer simpático a toda a força. Mas cada um é como é. Comecei por lhe agradecer a vinda à minha casa e feitas apresentações encaminhei-o para o quarto, a fim de ver o trabalho que iria fazer. Pediu licença para entrar e lá foi ver o que era.

Viu e olhou para mim sempre com aquele sorriso meio estranho porque meio patético, começando por dizer que já tinha estado ali no meu prédio, em casa de duas vizinhas minhas, que depois da descrição feita por ele lhe disse que sabia muito bem quem eram. Ele morava ali muito perto, era reformado e fazia estes biscates para ganhar mais qualquer coisa e manter-se ocupado, coisa perfeitamente normal.

Depois de ver bem o que era e com um rolo de fita na mão, que tirou da sua sacola de trabalho, disse que estava tudo bem, mas que a fita tinha que ser substituída e eu não lhe tinha dito isso. Respondi que sim, que lhe tinha dito ao telefone que a fita tinha rebentado e o estore estava todo caído, obrigando-me a dormir no escuro, mas ele com a sua cara de pateta simpático, sempre a sorrir, dizia que não, que eu não tinha dito isso, que não lhe tinha explicado esse pormenor.  

Como não, se ele até estava com um rolo na mão?! Eu tinha a certeza de que lhe tinha dito. E olhando para ele, percebi que ele estava a mentir. Completamente, sem dúvida nenhuma. Mas porquê? Não me pareceu que não quisesse fazer o trabalho, pois se assim fosse nem se daria ao trabalho de lá ir, como é óbvio. Ir lá por outra razão qualquer, estava fora de questão, pois a pessoa que mo recomendou era da mais completamente seriedade. Então, porque seria? Estaria eu a inventar? E a minha intuição começa a trabalhar exaustivamente, dando sinal de alarme, o que já é habitual comigo.

Entretanto, da mesma maneira que eu captei que ele estava a mentir, também ele captou que eu estava a perceber isso e para continuar o filme dele, fingiu medir a fita que se tinha soltado, apenas para concluir que a que tinha levado não chegava para o trabalho. Talvez sim, talvez não, só ele o saberia. Mas isso não interessava. O que interessava é que ele não ia fazer o trabalho, foi isso que eu percebi. Sem perceber nada do que se estava a passar e como aquilo era muito importante para mim, disse-lhe que o levava à drogaria mais próxima, relativamente perto, também, para comprarmos a fita. Respondeu que não podia ser, porque estava sem tempo, tinha um não sei quê que fazer e o tempo estava contado. Mas, tendo percebido como realmente era importante para mim o problema do estore avariado, disse que depois do almoço, por volta das três horas, voltaria com a fita para então fazer o trabalho. Menos mal. Contentei-me com a decisão dele, pois não havia volta a dar. Contudo, eu tinha a certeza absoluta de que o sr. Filipe não estava a ser franco. Havia algo que eu não percebia e que o fazia estar a mentir. Disso eu tinha a certeza. Porquê? Não entendi nem me apeteceu matar a cabeça com aquilo. Ele voltaria dali a pouco e o problema ficaria resolvido. Disso eu também tinha a certeza, o resto era secundário.

De facto, na hora combinada, uma vez mais, o Sr. Filipe estava de volta com a sua sacola do material de trabalho, espalhando aquela cangalhada toda para começar a obra. E à medida que ia fazendo o trabalho ia falando de si, da sua vida, do neto, etc., conversando e trabalhando, o tempo ia passando. Ao fim de uma hora de trabalho o estore de novo no lugar certo e a funcionar como devia. Tudo voltava ao normal, para meu grande alívio. Essa noite mesmo eu já não teria que ficar no escuro. De manhã quando acordasse teria o enorme privilégio de ver a luz abençoada. A luz da vida, da energia, do princípio e do fim de tudo.

Já na ponta final, o sr. Filipe deu um rumo um pouco diferente à conversa e começou a falar do Covid, confessando-me que já tinha sido contaminado, tendo estado muito mal. Por isso não tencionava ter mais vez nenhuma. Agora tomava todos os cuidados e mais alguns. E continuando a conversa confidenciou-me que não aceitava qualquer trabalho. Falava só ele. Eu limitava-me a escutá-lo. Então… não aceitava qualquer trabalho. Primeiro ia ver. Se a casa não fosse suficientemente arejada e aberta, ele não aceitava. E olhava para mim com o olhar bem fixo nos meus olhos para eu saber que desta vez ele estava a dizer a verdade. Percebi imediatamente que estava certa quando anteriormente ele me disse que eu não lhe tinha dito que a fita estava partida, o que não fazia o menor sentido. Agora sim, as coisas encaixavam. Claro que ele tinha ido de manhã só para ver. Ele sabia de antemão que não faria o trabalho naquele momento, por isso invocou a desculpa da fita, dizendo que eu não lhe tinha dito. Ele sabia que estava a mentir e que eu percebi que ele estava a mentir. Mas agora as coisas estavam explicadas.

Ele terminou, paguei o trabalho dele, agradeci muito e foi-se.

Quando as pessoas mentem, normalmente só contam com elas. E acham que a pessoa para quem se dirigem apenas capta a mensagem falada, a mensagem oral. Por trás da mentira há a verdade. Uma coisa é o que se diz e outra é o que é e o que é tem uma força completa, muito mais poderosa do que a mentira. Digamos que a mentira é a casca da laranja ou do fruto e a verdade é o fruto. Da mesma maneira que aquilo que se vê nem sempre corresponde ao que é real. Por vezes há uma outra realidade que se esconde. Quando os sentidos trabalham todos para o mesmo fim, um sexto sentido comanda tudo e todos os outros lhe obedecem, por assim dizer.

Esta história do sr. Filipe não tem a menor importância. Não é relevante. Mas é apenas um exemplo do que pode ser uma mentira e da repercussão que ela pode ter. Aqui não se trata de um julgamento. Não é essa a questão. Não é a mentira como o mal e a verdade como o bem. Não é por aí. Até porque há mentiras que se justificam. O que está em causa é muito mais do que isso, é a perspetiva holística, ou seja, é quando o todo é maior do que a soma das partes. A verdade está aí. Não importa as palavras que são ditas. A verdade está antes e depois. A verdade está impressa e tem uma força que as palavras não têm, sejam elas quais forem.