segunda-feira, 8 de junho de 2015

A Judite - 59


Naquela manhã eu tinha várias coisas a fazer e depois de sair de casa decidi que a primeira seria passar no sapateiro. Era difícil estacionar ali pelo que, àquela hora, talvez ainda não fosse muito problemático.

 

Quando lá cheguei, o sapateiro estava ao balcão e o pai, um senhor já velhote, mas que ainda dava alguma ajudinha ao filho, estava sentado como habitualmente, numa cadeira junto à máquina de costura industrial, entretido com qualquer coisa.

 

Aquilo era mais do que um sapateiro. Era uma verdadeira oficina, muito bem equipada, o que fazia com que tivessem sempre muitos clientes. Além do mais, trabalhavam muito bem e rápido. Até calçado por encomenda faziam, portanto, tinham que estar verdadeiramente bem equipados.

 

Disse “bom dia” e quando lá estava o pai, geralmente dizia “Namasté”, que sabia que ele gostava de ouvir e ficava contente, com um sorriso bonito, os olhos muito brilhantes e quase emocionado. Namasté é das palavras mais bonitas que conheço e cujo significado é: “O Deus (ou o eu) que há em mim, saúda o Deus (ou o eu) que há em ti, para promover a paz e a luz”…

 

E dito isto, o sapateiro filho que estava ao balcão, portanto, na minha frente, parou de martelar e calma e tranquilamente como era seu hábito e costume, disse “então, a sua colega”… e em fracções de segundo, sem que ele tivesse tido tempo de continuar a frase, percebi logo que não ia querer ouvir porque, por detrás da sua calma e tranquilidade, a minha intuição percebia que algo de muito feio se escondia e tudo o que eu não queria era saber.

 

Havia algum tempo que eu não andava propriamente no meu melhor. Tudo chegava até mim com um não sei quê de dor. Fugia, mas as coisas atravessavam a barreira da sensibilidade com uma fúria desgraçada. Quase não via televisão. Os telejornais davam comigo em doida. Os filmes, as séries e até as telenovelas me incomodavam. Constantemente, dava comigo a pensar “que parva que eu sou(!)”. Mas eu sempre sabia que aquilo era passageiro. A questão, era saber quanto tempo iria andar assim, feita parva, porque não há outro adjectivo que caracterize uma coisa desta natureza.

 

Mas deixemos isso… e como ele tinha acabado de dizer “então a sua colega”… eu sabia! Mas como? Porquê, se eu tinha chegado naquele preciso instante, absorvida apenas pelos meus pensamentos e era somente largar os sapatos e pouco mais!? 


Mas não… a tragédia estava feita, eu sabia. Mas ele só tinha dito “a sua colega”… podiam ser tantas, tantas outras… mas eu sabia qual era. Porquê, não o sabia, mas sabia qual era. Mal ele abriu a boca, eu vi-a na minha frente e dizia a mim mesma… eu não tenho empatia nenhuma com ela, nem nunca trabalhei com ela… mas tinha que ser ela. 


E ele continuava “a sua colega Judite”… pronto, estava instalada e reafirmada a tragédia. O meu estômago já tinha acabado de levar um soco de todo o tamanho e a minha cabeça gritava “socorro, tirem-me daqui”. O pânico tomava conta de mim e eu só queria fugir. Mas que raio, com tantas colegas que eu tinha, logo tinha que ser aquela e eu ainda nem tinha ouvido o desfecho da notícia!?... Contudo, sabia que era algo de terrível, de muito mau. Estava estampado na cara dele? - Perguntava a mim e respondia com toda a convicção - “Claro que não”. 


Ele disse por dizer; porque era a notícia do dia; mas, principalmente, porque, embora ela já lá não trabalhasse, ele sabia que tinha estado muitos anos na RTP e portanto, tínhamos sido colegas. Fomos, durante muitos anos, em sectores totalmente diferentes, mas fomos colegas da mesma empresa. Todavia, não raro, encontrávamo-nos nos elevadores de acesso ao parque de estacionamento, com os nossos filhos ainda pequenos. O discurso dela era sempre o mesmo: “Ouviu o que a professora disse? Tem que estudar mais, tem que se comportar bem; a mamã não gosta”… e eu pensava em como era diferente o meu. Os professores sempre me diziam que não havia nada a dizer sobre o Henrique e que esperavam que continuasse assim. Enfim, não se pode ter tudo.

 

E o meu sapateiro indiano, com quem muitas vezes já tinha conversado sobre a Índia e sobre a nossa terra – Gôa -, continuava:  “A sua colega Judite… o filho teve um acidente na piscina”… a cena passava na minha cabeça e dentro de mim havia um mal estar infernal. Mas porquê, se não era nada comigo? E por mais que racionalizasse a informação, a coisa não digeria. Não era nada comigo, mas eu tremia. 


Era certo que a Judite me era indiferente. Independentemente de tudo isso, não queria estar na pele dela. Mas quem quereria? Coitada! Coitada, coitada, coitada. “O filho teve um acidente na piscina e está a morrer”. Oh, não! Era o André, ligeiramente mais novo que o meu querido e amado filho. Filho único como o meu. Que situação!? Oh, não, que horror! Porque tinha eu decidido começar o dia ali? Mas eu iria saber a notícia, mais cedo ou mais tarde. De qualquer lado ela tinha que disparar. Era inevitável.

 

E no meio daquela agitação toda que se tinha instalado dentro de mim e a que eu não conseguia escapar, pensava em como era possível, antes de ele falar no nome dela e dizer o que tinha acontecido, eu já saber que o assunto se referia à Judite e tinha a ver com o filho? Como?!

 

Às vezes, o meu chefe RM e eu, começávamos os dois a falar em simultâneo sobre o mesmo assunto, e ficávamos a olhar um para o outro com a “coincidência” da situação que, naturalmente, como ele muito bem observava, não era coincidência nenhuma. Levávamos o tempo todo a trabalhar nos mesmos assuntos, que às vezes demoravam meses a resolver, mas se um carregava uma coisa, disparava no outro e vice-versa.

 

Agora, que tudo voltou ao normal e que consigo finalmente manter a devida distância do assunto “Judite”, realmente, não sei se o que mais me afectou foi o drama dela ou o facto de ter sido um perfeito receptor do meu amigo e sapateiro indiano. É claro que me condoí e muito com a dor dela. Mas também é verdade que na altura, fiquei tão confusa, que não me apercebi de que tinha ficado bastante assustada com o facto de ter recebido a notícia de forma astral. As duas coisas mexeram muito comigo. Foi tudo muito forte. 


E a dor dela foi minha. Não invalida o facto de sempre a ter achado uma chata, de ouvir de todos os lados os colegas dizerem que ela era insuportável, histérica, que só sabia gritar, mandar e desmandar, enfim… mas a dor dela foi minha durante bastante tempo. 


Apenas porque sou mãe, com muito amor.