domingo, 8 de outubro de 2023

Um sonho - 113

Ju(ventino) tinha um sonho: ir ao Canadá acompanhado e não sozinho, como sempre fizera a vida inteira, por não ter a companhia certa, a companhia desejada. A irmã, dois anos mais nova, casada, vivia no Canadá com o marido e os filhos. Por esta altura, já eram emigrantes há cerca de vinte anos, onde tinham uma vida razoável. Ambos trabalhavam e estavam perfeitamente adaptados à sua rotina, no país que tinham escolhido. Ju, todos os anos tirava férias para ir ver a família. Naquele ano tinha decidido que não iria mais sozinho. Na verdade, estava cansado de sempre ter sido visto como um solteirão, sem uma apreciada companhia feminina, o que fazia com que permanentemente o interrogassem sobre a sua vida privada, deixando-o sempre desconfortável.

Quando a Rádio se juntou à RTP, apareceu uma nova imagem da empresa, com caras novas, novos colegas e muitos conhecimentos se fizeram. Um ano depois de me ter mudado, porque a minha Direção foi a última, um dia, vi a figura entrar pelo open space dentro. Tinha um ar um pouco estranho, não posso negar. Um ar difícil de definir porque, por um lado, um aspeto intelectualizado, talvez pelos óculos demasiado pesados, de lentes muito grossas, por outro, parecia um pouco alucinado. E ambas as coisas me confundiram, impedindo-me de traçar um perfil exato.

Deixei que saísse e perguntei à colega com quem foi falar, e que era o seu apoio administrativo, quem era, apenas porque nunca o tinha visto, o que era natural. Afinal, era tanta gente nova, que muito provavelmente não chegaria a conhecer muitos deles, como não conhecia toda a gente da RTP. Respondendo à minha pergunta sobre o colega, ela disse-me quem era, o que fazia e pouco mais. Para meu grande espanto ou talvez nem tanto, nunca tinha casado e, em princípio, vivia sozinho. Um solteirão veterano, com cinquenta e quatro anos.

Cerca de uma semana mais tarde, Ju, voltou ao lugar. Pensei para comigo mesma que nunca na vida tinha visto aquele sujeito e, agora, em tão pouco tempo, era a segunda vez que ali vinha. Percebi que aquela criatura me intrigava por demais. Ele era estranho, sem dúvida. Mas o que é isso? Há tanta gente estranha! Quem sabe se algum vez não me acharam estranha a mim, que acho que sou uma pessoa normalíssima!? É tudo muito relativo. E desta vez falou com outra colega, também da Rádio. Aproveitei para me aproximar e logo ela tentou despachá-lo para mim, por ser eu a secretária da Direção.

Ju, não ficou indiferente, tendo mostrado um certo interesse na minha pessoa, a colega nova, que ele também não conhecia. Apercebendo-se disso, depois da sua saída, as colegas da Rádio vieram falar comigo, alertando-me de que ele não era para mim, isto é, que eu merecia uma pessoa diferente e muito melhor. Fiquei intrigada, mas elas continuaram martelando, dizendo coisas nada abonatórias a seu favor e justificando o facto de nunca ter casado, com o seu mau feitio e as suas esquisitices. Em todo o caso, para mim, havia nele um pormenor importante: o facto de ser solteiro e sozinho. Eu também estava sozinha! Pelo menos, podíamos tentar uma aproximação e perceber como seria o nosso relacionamento, sem grandes consequências!? Porque não uma boa e nova amizade?

Começámos a falar um com o outro, aproveitando as questões de trabalho, depois combinando almoços aos fins de semana e, finalmente, a sair juntos para algumas coisas, até que chegou o dia em que ele ficou na minha casa. A partir daí, começou a ficar com mais frequência e só ia a casa quando tinha mesmo necessidade.

Ju, não era o homem mais bonito do mundo, nem o mais simpático, nem o mais inteligente, etc… mas era solteiro e isso era importante. Na faixa etária em que os encontrávamos, não era fácil encontrar pessoas sozinhas. Com o tempo, apesar de ele achar que eu tinha um bom feitio, que não implicava e para parafrasear as suas próprias palavras “era fácil viver comigo porque eu não chateava em nada”, pensei para comigo mesma, que era fácil enquanto ele deixasse, caso contrário, não seria mesmo nada fácil. Contudo, aprendi a lidar com o “machismo” dele, com a mania de que era o “melhor” dos profissionais no trabalho que fazia, pois exagerava e muito na sua performance, apenas para se convencer de que os outros o achavam o máximo dos máximos.

O problema é que a opinião dos outros era o oposto do que ele idealizava. Uma das coisas de que me avisaram sobre a sua pessoa, é que ele bebia e não era pouco. E muitas outras coisas, definindo-o assim como doido, maluco, enfim… nada abonatório. E toda a gente queria que me afastasse dele, por causa de tudo o que ele representava. Em todo o caso, verdade seja dita, eu não tinha do que me queixar. Os defeitos dele eu conseguia ultrapassar e nunca deixei de ser eu mesma com ninguém, portanto, isso não iria acontecer com ele.

Voltemos ao sonho. Todos temos sonhos. Todos temos sempre algum desejo secreto ou não, que alimentamos nas profundezas do nosso ser, tornando-se um sonho. E como já disse, o sonho de Ju era uma companheira que viajasse com ele até ao Canadá, para não ir sozinho, e poder apresentar à família, como uma pessoa com potencial para um eventual futuro. Por isso, logo nas primeiras conversas, veio à baila o assunto “férias”, com o programa viagem ao Canadá. Estava implícito no seu discurso, que ele queria muito que eu fosse com ele. Até se propunha pagar-me a passagem, coisa que eu logo descartei por completo. Já íamos ficar em casa da família, pelo que não pagávamos alojamento nem alimentação, o que era ótimo, portanto, jamais eu deixaria que ele me pagasse a passagem.

O facto é que concordei em ir. Nunca na vida tinha pensado ir ao Canadá. Mas o que já viajei por esse mundo fora, foi muito mais o que teve de ser, do que o determinado por mim. As coisas vêm, proporcionam-se e é esse o caminho. Portanto, uma vez mais, o destino abria uma porta desconhecida. E coisas assim eu sempre considerei um presente, um presente da vida. Porque negar? Não fazia o menor sentido. E assim foi.

A viagem ao Canadá foi muito boa. Sem dúvida, enriqueceu o meu conhecimento, o meu património cultural, a minha pessoa e diverti-me bastante. Eu estava mais completa, por assim dizer. E não posso negar que Ju foi impecável comigo, preocupando-se em me mostrar isto e aquilo, levando-me a todos os lugares que ele achava importante, etc. A família e os amigos acolheram-me muito bem e todos manifestaram o seu agrado na minha ligação com ele. Ainda que a irmã não escondesse de mim todas as suas dúvidas, o que não deixei de agradecer, porque tinha consciência de que o irmão era um pouco “doido” e sempre seria. Mas isso era uma decisão minha e só a mim cabia julgar. E por enquanto não tinha do que reclamar. Por enquanto, sim… por enquanto.

De regresso a Portugal, as coisas mudaram. Melhor dizendo, tudo mudou. Não me vou alongar com os pormenores, mas tudo virou de cabeça para baixo. Foi então que, aquele Ju(ventino) de que todos me falavam na empresa e que a irmã no Canadá reforçou, veio ao de cima. O comportamento dele alterou-se e deu uma volta de cento e oitenta graus. Começou a aparecer bêbado na minha casa. O feitio dele começou a ser insuportável, até que uma noite pirou de vez. De tal modo, que fiquei bastante assustada e me fez pensar que assim não. Não mesmo. Eu não ia aturar cenas daquelas a ninguém. Ele já tinha realizado o seu sonho e eu não precisava de um homem como ele. Não havia nada de bom. A cabeça batia mal de todas as maneiras. E assim, fui obrigada a pôr um fim àquele episódio. Tinha vivido com ele sete meses, que tinham sido muito bem aproveitados. Estava na hora de terminar.

As nossas vidas continuaram com cada um para seu lado. De quando em vez, encontrávamo-nos de passagem na empresa, mas nem sequer havia assunto ou vontade de falar. Ele continuava com aquele ar alucinado de que todos me falavam. E percebi que realmente ele me tinha escolhido para ir com ele ao Canadá e por isso me mostrara o melhor dele. Só isso. Tudo bem.

Doze anos passaram. Eu já estava reformada havia dez anos. Um dia, ao fim da tarde, sentindo-me um pouco cansada, deitei-me no sofá, a fim de fechar os olhos e relaxar um pouco. Tive um sono muito, muito superficial, em que dormia e acordava, dormia e acordava. Mas estava confortável. De repente, uma vez mais, fechei os olhos. Mas então, comecei a sentir um mal-estar, que rapidamente foi aumentando. Uma energia muito ruim tinha-se apoderado de mim, sem que eu a conseguisse expulsar. Um frio de morte percorreu todo o meu corpo, que gelou por completo. Sem entender porquê, senti realmente a presença da morte. Mas eu sabia que não ia morrer. Aquela morte não era minha, mas era a anunciação de uma morte. Foi horrível. Nunca tinha tido uma sensação daquelas. Naquele preciso momento, fiquei a saber que alguém, relativamente próximo, ou do meu conhecimento, tinha partido. E como fora ruim! Uma coisa muito má. Horrível de descrever. Mas era a morte, sem sombra de dúvidas. Isso eu sabia. Depois de ter percorrido todos os cantos do meu corpo, passou, deixando-me finalmente liberta. Alguém, naquele preciso momento, tinha sido levado pela morte. Quem seria?...

Dois dias depois eu estava ao telefone, falando com uma amiga, que mantinha contacto com colegas que ainda estavam na empresa. Sabes quem morreu?... Perguntei:  quando?

Ju(ventino) tinha partido naquele exacto momento em que senti a energia da morte percorrer todo o meu corpo.

Apesar de tudo, eu tinha tido alguma importância na sua vida. Eu tinha realizado o seu sonho.