sexta-feira, 11 de junho de 2021

O nome certo - 91

 

A enfermeira Tânia providenciava a minha mudança do recobro para a enfermaria e já a minha cama deslizava a todo o vapor pelo corredor interminável do hospital. Mas entretanto uma outra enfermeira muito jovem, como todos os outros, se aproximara para ajudar, quando lhe perguntei como se chamava. Joana, respondeu ela. Joana(!), repeti eu, que bonito nome. Se eu tivesse tido uma menina teria sido Joana. Então ela perguntou se não tinha filhos. Respondi-lhe que tinha um filho homem com quarenta anos. E ela continuou, então como se chama o seu filho? Henrique, respondi. Porque não lhe pôs João, perguntou novamente. Se gostava tanto de Joana, podia-lhe ter chamado João!?

Achei imensa graça à apreciação dela e sorrindo disse-lhe que não, que as coisas não eram assim, pelo menos para mim. Eu tinha uma lista com alguns nomes e em princípio, seria algum daqueles. Mas quando olhei para ele, logo no primeiro olhar, na primeira impressão, percebi que nenhum daqueles nomes encaixava. E tentava descobrir qual o nome certo, porque isso era muito importante para mim.

É frequente, quando conheço uma pessoa, seja homem ou mulher, criança, adulto ou idoso, ao saber o seu nome, perceber se tem ligação ou não. Umas vezes faz todo o sentido, outras vezes nem tanto, ou seja, alguma coisa não bate certo e o problema é do nome, de acordo com a minha intuição. E com o meu filho não foi diferente. Nenhum dos nomes da lista batiam e muito menos João, que nem constava da lista. E não é que não goste do nome João. Gosto mesmo muito. Mas não era para ele. E aí começou a minha luta, a procura do nome certo, porque eu precisava de lhe dar um nome, claro. Assim, nos dois dias que se seguiram ao seu nascimento, a minha única preocupação era encontrar o nome, o que não foi tarefa fácil. 

Durante toda a minha gravidez, os tios padres chamavam-lhe o “Óscar”. Óscar, imagine-se! Um nome complicado, um pouco áspero para o meu gosto, sem doçura, com uma energia que não se coadunava com o que estava no meu ventre. Teria de ser algo muito mais fresco, não muito batido e com alguma selectividade, digamos. O que haveria de ser então? Era uma grande dor de cabeça, pois não poderia errar.

E assim começou a minha exaustiva busca pelos recônditos do inconsciente, que parece que não sabe de nada quando na verdade sabe de tudo. Só que está muito bem guardado, só para nos dar trabalho. E pensava, pensava… um nome que não fosse muito corriqueiro. Que fosse sonante, num conjunto bem equilibrado de vogais e consoantes. Contudo, os nomes que me vinham não tinham nada a ver com isso. Mas eu tinha que achar um nome, ou melhor “o” nome, o tal.

Como estava na Clínica e não tinha nada que fazer a não ser descansar, esse foi o meu trabalho intensivo. Comecei então a pensar na história de Portugal, nas figuras importantes que de algum modo se destacaram e as primeiras figuras que me apareceram foi a célebre e afamada família ínclita, conforme o atestou Luís de Camões. D. João I e D. Filipa de Lencastre, uma família de destaque com vários filhos, sendo o Infante D. Henrique o que teve especial relevo. Posso ter-me esquecido de todos os reis, mas deste nunca, porque achei admirável, especialmente a vida do Infante, pelo empenho que teve nos descobrimentos e a expansão do império. 

Lembro-me perfeitamente, ainda criança, da primeira vez que ouvi falar dele e da sua vida, como fiquei maravilhada com esta família e em especial com ele, pelo facto de me religar a África, onde passei a melhor parte da minha infância. De certa forma achei que era ele o responsável por essa extraordinária e maravilhosa experiência que tive. Daí, achá-lo corajoso, sem precisar de entrar em guerras; corajoso, por conquistar o mar, o terra, o céu… corajoso por ir à procura de “novos mundos”, novas culturas, novos projectos de vida. Era o máximo. 

E aí estava ele, um nome que soava bem, com um toque de elegância e diplomacia, embora fosse muito mais do que isso. Sonhador, mas um sonhador acessível, que foi atrás e encontrou, que se atreveu e não temeu. Enfim, muito, muito auspicioso. Um nome começado por “H”!... Maravilhoso e diferente, quanto mais não fosse pela sua história. Uma letra que não se lendo, está lá, marcando a sua presença, a sua consistência. Henrique, proveniente de uma família especial, com todo um historial marcante e inesquecível. Era isso. Estava encontrado o nome.

Dois dias. Dois dias para essa tarefa, mas eu estava feliz, pois tinha acabado de encontrar o nome para o meu amado filho. A primeira pessoa a visitar-me depois dessa descoberta foi a minha tia/mãe e logo me apressei a dar-lhe a notícia. Ela, curiosa, logo quis saber. Henrique, proferi. Mas ela não reagiu como eu gostaria. Ficou até decepcionada, dizendo “Henrique… ai filha… não é um nome muito bonito…!” Mas logo a interrompi, dizendo que o filho era meu e era eu que escolhia. E se eu achava bonito não me importava que os outros não o achassem. Ela encolheu os ombros e por um breve instante ficou calada e depois voltou a falar dizendo “pois… tu é que sabes…”

Esta reacção, embora a não a tivesse em conta, para falar verdade deixou-me um bocado insegura. Eu gostaria que ela o confirmasse e reagisse de modo muito positivo. Mas não foi nada disso. Por isso, em parte, a minha felicidade parecia cair por terra.

Eu estava num quarto com outra senhora um pouco mais velha, que já estava no terceiro filho. A senhora também estava à espera da família, que deviam estar a aparecer por ser a hora da visita. Ao ouvir a conversa, o nome escolhido e a reacção negativa da minha tia/mãe, logo interveio para dizer que também ela tinha um Henrique na família. Era um sobrinho de oito anos que devia estar a chegar. Aí a minha confiança voltou e começou a derrubar a insegurança que me tinha causado a reacção da minha tia/mãe, que se encolheu um pouco com o que a senhora tinha acabado de dizer. E de repente as portas abriram-se e entrou pelo quarto dentro um verdadeiro bando de crianças que nunca mais acabava. Eram mesmo muitos, todos sobrinhos da minha companheira de quarto, como ela mesma acabava de explicar, que vinham ver a tia e conhecer o priminho mais novo, recém-nascido. As crianças entraram, cumprimentaram e dirigiram-se à tia, que se apressou a continuar a conversa. “Oh, cá está ele, o meu sobrinho Henrique”, disse ela, e logo o garoto levantou o braço, identificando-se.

E porque nada é à toa, sem razão de ser, se eu tivesse alguma dúvida, ela acabava de se desvanecer naquele exacto momento. Aquele menino era sem dúvida um enviado do “destino” para confirmar o nome que eu tinha acabado de encontrar e que parecia que não estava a ser muito bem aceite por uma pessoa que tinha alguma influência sobre mim. 

Lima Duarte, um actor brasileiro ímpar, que marca pontos na tela brasileira em todo o mundo, de seu nome verdadeiro Ariclenes Venâncio Martins, trocou de nome para ser famoso. Sua mãe percebeu que para ele ser quem queria ser, não chegaria longe com o nome que lhe tinha dado e ela mesma lhe deu outro nome, o que ela achou certo para tal. Porque não, fazer isto logo de início, à nascença? Mas ele não é o único. Quantos não trocam de nome pela vida fora, por perceberem que com o nome que têm não vão a lado nenhum!?

O facto é que se o Infante D. Henrique fez um trabalho excelente com os Descobrimentos, o meu filho Henrique, sem ser infante, não fez um trabalho inferior no caminho da informática. Muito novo, como trabalho da sua tese de mestrado, ele desenhou um algoritmo que permitiu desbloquear um problema sério que estava sem solução há vinte anos e com o qual ganhou ainda o primeiro prémio num concurso a nível internacional.

Apenas por causa do nome certo? Não só, mas também.