segunda-feira, 4 de maio de 2015

As Túlipas - 58


As túlipas são lindas, mas aquelas eram mais do que isso. Eram belíssimas e muito especiais. Negras, brancas, amarelas, roxas....

Aquelas tinham sido especialmente encomendadas. Os bolbos vieram da Holanda directamente para o frigorífico da casa de Alcobaça. E foram para o frigorífico porque não era a altura de irem para a terra. Mas chegou o dia em que era necessário plantá-las e então escolheu-se cuidadosamente o lugar.

Na porta que dava para o jardim, frente à piscina, havia dois potes de barro, muito grandes e altos, que estavam vazios. Foi aí mesmo que decidimos plantá-las e ficámos a aguardar, com grande espectativa, o dia em que elas surgiriam à luz do sol.  

Antes disso, muito chuva viria, certamente, e muitas outras coisas também, acima de tudo, com que não contávamos. Seguramente... 

O tempo passou e o Álvaro queria tanto ver as suas túlipas, sobretudo porque não sabia de que cores eram. Era surpresa e eu também estava ansiosa por vê-las, pois elas ficariam lindamente naquele espaço e dariam outra vida ao terraço e ao jardim, demasiado verde, apesar de que o verde nunca é demais. 

Todas as semanas íamos a Alcobaça e todas as semanas espreitávamos as nossas túlipas, mas nem sinal delas. O Álvaro já achava que não íam dar em nada. Já eu, não. Porque não pegariam? Tinham todas as condições, pelo que era apenas uma questão de tempo, só isso. Ele ouvia-me e ficava na expectativa de que eu estivesse certa, porque ele adorava flores. Nunca antes tinha visto um homem gostar tanto de flores. Era admirável. 

Finalmente, chegou o dia em que fomos surpreendidos com os caules das benditas túlipas a proliferarem, despontando na terra. Estavam quase todas já de fora, umas mais adiantadas que outras, mas agora já não havia dúvidas, as que faltavam haveriam de chegar, tal como aquelas. E ficámos muito contentes, feito crianças.  

Semana a semana os caules cresciam e todas rebentaram, cada uma a seu tempo. Entretanto, a chuva parou e era necessário regá-las, para garantir o seu sucesso, por isso, todas as semanas iamos a Alcobaça, nem que fosse só para as regar e supervisionar, dado que os caules continuavam a crescer a olhos vistos. 

Mas então, o imprevisto aconteceu. O inusitado chegou e as voltas das nossas vidas foram trocadas, sem dó nem piedade. O homem põe e Deus dispõe. Assim, o Álvaro adoeceu. Teve que ser internado, submetido a uma intervenção cirúrgica, a outra e mais outra e em menos de uma semana foram, nada mais, nada menos que três cirurgias. 

Logo após a terceira, percebemos que não poderíamos ir a Alcobaça e era preciso regar as túlipas. O resto podia esperar, as túlipas não. Para o efeito e a seu pedido, telefonei para o único vizinho que tinha acesso ao jardim, para fazer o favor de regar as túlipas. Tudo acautelado. 

Fui para casa descansar, posto que as coisas tinham corrido bem com a cirurgia e esperava que no dia seguinte, o mais tardar no outro, ele tivesse alta e saísse do hospital. Mas nessa mesma madrugada o coração dele não resistiu às três cirurgias em tão pouco tempo e subitamente partiu, para não mais voltar. O terramoto estava instalado. 

À minha volta tudo tremia e ruía e eu não sabia, literalmente, onde pôr os pés. Da mesma maneira que tudo ruía eu caía, não conseguia estar de pé. Um mar de emoções avassaladoras tomava conta de mim e eu não assimilava o que me estava a acontecer. Era um pesadelo infernal. Todos os nossos sonhos se desfaziam. As nossas viagens sonhadas, os planos de vida em comum, tudo, tudo... e tudo... já era. 

Tinham decorrido três semanas em que eu só chorava. Não fazia outra coisa que não fosse chorar. Falava a chorar, comia a chorar... chorava, chorava. Mas foi preciso ir a Alcobaça uma última vez. Era estranho ir lá sem ele. Seria a última vez. E a Clara levou-me no carro dela, porque eu não tinha condições de fazer aquela viagem, nem de ir lá sozinha.  

Pelo caminho, fomos conversando e eu chorava. Aquele percurso, aquela estrada de que eu tanto gostava, parecia-me um inferno, não fazia mais sentido nem queria vê-la mais. Lá fui dando à Clara as indicações, até que chegámos. Abri o portão para o carro entrar e chorava. Olhei para a figueira que todas as vezes saciava a minha gula com os deliciosos figos com que sempre me presenteava e percebi que não voltaria a tê-los. Até isso acabava ali. Claro que o supermercado tinha figos, mas não eram seguramente os mesmos, nem nada que se parecesse. Aqueles eram únicos. E eram mesmo. 

Entrámos em casa e tudo aquilo era estranho para mim. Nada mais era igual. Eu gostava tanto daquela casa... gostava, agora menosprezava. Não queria estar ali. Olhei lá para fora, em três semanas e mais uma em que ele esteve internado, a relva tinha crescido e a falta de manutenção do jardim era notória, bem como a sujidade da água da piscina, etc... 

Enfim, tal como ele, eu já não pertencia ali. Aquilo que até há bem pouco tempo eu tinha como o meu paraíso, era agora um lugar vazio, que já pertencia ao passado e que me fazia sentir mais mal do que já estava. Não percebia porquê, mas era assim que eu sentia. Tudo tinha mudado e o pior é que não havia nada a fazer, nada que pudesse reverter a situação. Era definitivo. 

Passei pela garagem e abri a porta que dava acesso ao terraço do jardim e que ficava em linha de vista com a porta que dava para a piscina... e parei. As túlipas. As túlipas... lindas! Esplendorosas! Elas estavam ali à espera dele, mas ele tinha partido sem ter tido tempo de vê-las. E ele queria tanto!... O choro parou momentâneamente. Perante tanta beleza, algo travou e mudou a minha emoção. A energia dele estava ali. Eu podia sentir. Era quase visível, quase palpável.  

Os potes tinham ficado lindos, adornados pelas túlipas de cores variadas. Elas ali estavam, imponentes, cheias de vitalidade, embora evidenciando rigorosamente a sua bela fragilidade, pela doçura das suas formas, do desenho das pétalas,  da graciosidade de toda a frescura e até das tonalidades fortes, mas cálidas... 

De pé, bem erguidas à luz, enraizadas na terra, davam a sensação de homenagear algo ou alguém, ao mesmo tempo que pareciam estar gratas à mão que as tinha dado à terra para que lhes desse vida. Vida, era isso, elas homenageavam e estavam agradecidas à vida, ainda que essa vida tivesse partido. 

Eu sentia as lágrimas nos meus olhos a rolar pela face. A pele do meu rosto já estava massacrada e cansada desse rio que se acostumara a invadi-la sem descanso. Mas, naquele momento eu não me importava de sentir o peso delas. Essas eram quase de felicidade, porque ali havia algo de mágico, algo que o tocava a "ele". 

Ali, naquele espaço, no éter ou onde quer que fosse, estávamos os dois ligados de uma forma misteriosa, através da magia libertada pelas túlipas, que se recusava a ficar presa e o manifestava abertamente, através de uma pétala que se tinha evadido. 

Sim, havia uma, uma túlipa branca... talvez um pássaro ali tivesse pousado, ou não, mas uma pétala de uma túlipa branca como a neve, tinha ido parar ao chão, a menos de um metro de distância do pote onde estava. 

E aquilo que eu via da garagem, tão bem enquadrado pela ombreira da porta aberta, bem podia ser um quadro, uma pintura. Um misto de Van Gogh e Delacroix ou até mesmo Renoir, pela luz e pela côr. Mas ali, era ao natural, genuinamente natural, aquela bela combinação da natureza com a côr e a luz. A luz!... 

O amor corria ali ao de leve, com a paz a seu lado, bebendo tranquilidade e respirando harmonia infinita, transportada pelo berço da natureza até à eternidade. 

Era uma coisa linda de se ver, de se sentir, aliás, era uma coisa única que apelava a todos os sentidos extrasensoriais. Todas as campainhas tocavam, dando alarme de algo belo e único que jamais se repetiria e que além de mim, ninguém, mas ninguém mesmo, poderia testemunhar. Um exclusivo que a minha alma jamais dispensaria. 

Não havia nada naquela casa que eu quisesse, a não ser ele. Nem mobília, nem objectos me seduziam ou valiam de alguma coisa. Apenas ele era importante.  

Mas de repente, corri para os potes, meti as mãos bem fundo na terra e arranquei os bolbos com o cuidado necessário e o propósito de os não danificar em hipótese alguma e um por um, guardei-os num saco para voltar a pô-los na terra, bem perto de mim. Aquele era o único e real valor que dali me interessava. 

Voltaria a pô-las em outra terra para voltarem a florir à luz da vida. 

Só uma pétala ficou caída.