terça-feira, 16 de agosto de 2022

Verdades ocultas - 104

 

Não tenho nada contra as religiões, mas também não tenho muito a favor. Cada um é livre de acreditar no que quiser e seguir os credos que entender. Respeito todos os povos com a sua cultura, os seus costumes e as suas religiões, porque acima de tudo prezo e respeito a liberdade, o bem mais precioso do ser humano.

Quando fui para os Açores e conheci o meu marido ele vivia com a mãe, o irmão e um tio. O tio era padre e tinha outro irmão também padre, que não vivia com eles, porque era Pároco na Freguesia da Lagoa, fora de Ponta Delgada. Mas como tudo ali é perto porque a ilha não é grande, ele ia lá muitas vezes estar com a família.

Os dois eram padres, mas um bem mais do que outro, ou seja, o de Ponta Delgada um padre a cem por cento, o outro nem tanto. E digo isto apenas no seu aspecto exterior, porque Padre Domingos andava sempre “fardado”, já o outro não. Quem o visse fora da igreja e não o conhecesse, nunca diria que ele era padre. O outro nem nunca me lembro de o ver de roupa que não fosse da igreja. Depois, enquanto que padre Domingos andava sempre, mas sempre, de missal na mão ou debaixo do braço, padre Agostinho tinha sempre um cigarro na mão. Eram realmente muito diferentes neste aspecto. No resto eram iguaisinhos.

Focando-me exactamente no Padre Agostinho, ele vivia na Lagoa por ser o Pároco daquela freguesia e morava numa bela casa, um solar de dois pisos, de frente para o mar, com uma vista soberba. Um casarão que ia muito para além das suas necessidades. Mas era propriedade da igreja e, portanto, por direito estava-lhe atribuída. Algo em que eu pensava frequentemente, mas a vida é o que é e as coisas são como são. Além disso tinha um pequeno terreno onde ele tinha feito uma hortinha bem jeitosa, no qual colhia legumes fresquinhos quando quisesse. Se eram só para ele ou se os distribuía com a população, não faço a menor ideia. Lembro-me de que de vez em quando levava uma cesta com coisas lá para casa e especialmente quando engravidei, no que ele tinha o cuidado de com muita regularidade levar produtos fresquíssimos como alfaces, cenouras, batatas e outras coisas mais, o que muito agradeci.

Mas Padre Agostinho, tio do meu marido, andava quase sempre acompanhado de um garoto a quem ele chamava de afilhado e que o tratava precisamente por “padrinho”. O garoto estava com frequência lá em casa, pelo facto de andar sempre com ele. Segundo dizia, era filho da senhora Lucinda, a pessoa que lhe fazia a faxina em casa e cuidava de tudo na igreja. E assim, ele tinha o garoto como afilhado e como afilhado acompanhava muito o padrinho.

Todos nós já estávamos mais do que habituados ao convívio do garoto e que estava completamente à vontade tanto com o padrinho como com o resto da família. E algumas vezes dei por mim a pensar que o miúdo, que deveria ter uns onze, doze anos, poderia perfeitamente ser da família, pela semelhança que tinha com todos. Achava imensa graça à coincidência das semelhanças dele com o padrinho. Mas se calhar era só eu. Talvez os outros não se dessem conta disso, porque provavelmente nem se detinham nesses pensamentos. E não é que eu quisesse ou tivesse alguma intenção especial. Era simplesmente porque aquela “coincidência” era tão consistente, digamos, que era mais forte do que eu. Quantas vezes dei por mim a pensar, a olhar para ele, a observar e sempre a chegar à mesma conclusão de porque razão aquilo haveria de ser uma obstinação para mim. Eu nem queria saber daquele assunto. Não tinha interesse nenhum. Mas acabava por ser mais forte do que eu, sem dúvida.

Olhando-os de trás, um era a miniatura do outro. A mesma forma, a mesma estatura, os ombros largos, o cabelo claro como o meu filho e os primos. Os olhos castanho-esverdeados como os da minha sogra e do meu marido. O mesmo tom de pele, enfim, as semelhanças eram inúmeras. No meu íntimo, não era nenhuma insinuação que eu fazia. Longe de mim pensar que o garoto fosse filho dele, mas é que realmente era tão grande a semelhança que me deixava completamente confusa.

Todos sabemos que os padres não podem casar, não podem ter filhos e isto, em princípio, é aceite pela comunidade. É uma estupidez! Não interessa. Problema da igreja. Quando se metem a ser padres já sabem disso. É problema deles. E também nunca conheci nenhum padre que tivesse filhos. Mas cada vez há mais casos desses. Isso é sabido. E para mim tanto faz como fez. É-me absolutamente indiferente, dado que a religião não me diz nada. O facto de ser crente, não implica ter uma religião. Mas isso sou eu, por isso também, aceito os outros como são.

Em relação ao caso do tio padre, às vezes até me sentia incomodada com a tentação de pensar constantemente naquele assunto. Longe de mim imaginar que o garoto seria seu filho. E tinha a certeza de que ninguém na família alguma vez tivesse pensado nisso. Nunca. Eles eram tão rígidos com os princípios do catolicismo! Eu fui “obrigada” a casar-me segundo os rituais da Igreja Católica para poder ter acesso aos encontros em família ao Domingo, dia do “Senhor”. Enfim… só disparates. Mas eram os costumes deles, eram as suas tradições, as suas regras e tudo tinha que seguir os seus trâmites, caso contrário era muito complicado.

Entretanto, o meu marido e eu divorciámo-nos, cada um seguiu o seu caminho, apesar de mantermos um relacionamento civilizado, quanto mais não fosse porque tínhamos um filho que precisava disso. Os anos passaram, fomos todos envelhecendo, as crianças tornaram-se adultos e também seguiram o seu rumo, o caminho destinado e por aí adiante. Os tios padres morreram, primeiro um, depois o outro e a minha sogra foi a última, porque faleceu com cento e quatro anos.

Muito recentemente dei por mim a andar para trás no tempo, porque a minha cabeça, sem motivo aparente, foi buscar todas essas recordações lá atrás, o que me parece natural. E foi aí que vi o filme na sua película original e verdadeira. Ou seja, de repente, sem mais nem menos, percebi porque razão eu ia sempre parar ao mesmo caminho: o padrinho e o afilhado. Pela primeira vez na vida eu vi com os olhos da alma, que não havia padrinho e afilhado, mas um pai e um filho, pura e simplesmente. E perguntei a mim mesma porque razão tinha escondido isso de mim mesma durante tantos anos!?

Estava claro, mais do que claro, que desde a primeira vez que os vi, percebi que eram pai e filho. Não havia dúvida nenhuma. Só não via quem não queria. E também estava claro que os outros sabiam perfeitamente. Hoje tenho a certeza disso, mas ninguém tinha a coragem de falar. Aceitavam aquilo como uma verdade oculta, por uma questão de princípio, porque estavam em causa os princípios da Igreja e o respeito pelo tio Padre, que não tinha outra saída naquela história.

Os padrões a que estamos sujeitos e as regras que nos impõem desde sempre, conseguem bloquear totalmente as capacidades inatas do ser humano. Elas foram feitas para isso e cumprem a cem por cento os resultados a que se destinam. E mais uma vez encontramos um lugar comum, ou seja, aqui, somos todos iguais. A limitação continua a dominar-nos. As verdades ocultas continuam a ter total soberania, se não evoluirmos como seres humanos. A nossa evolução passa pela luz que conseguimos chamar a nós. À medida que crescemos interiormente e desenvolvemos o nosso ser de luz, assim conseguiremos desabrochar e deixar sair a nossa verdadeira e mais pura identidade, para a qual não há meta e onde o céu não tem limite. O limite sem fronteiras que libertará de vez o espírito e acabará de vez com todos os nossos bloqueios e todas as verdades ocultas.