Não
tenho nada contra as religiões, mas também não tenho muito a favor. Cada um é
livre de acreditar no que quiser e seguir os credos que entender. Respeito
todos os povos com a sua cultura, os seus costumes e as suas religiões, porque
acima de tudo prezo e respeito a liberdade, o bem mais precioso do ser humano.
Quando
fui para os Açores e conheci o meu marido ele vivia com a mãe, o irmão e um
tio. O tio era padre e tinha outro irmão também padre, que não vivia com eles,
porque era Pároco na Freguesia da Lagoa, fora de Ponta Delgada. Mas como tudo
ali é perto porque a ilha não é grande, ele ia lá muitas vezes estar com a
família.
Os
dois eram padres, mas um bem mais do que outro, ou seja, o de Ponta Delgada um
padre a cem por cento, o outro nem tanto. E digo isto apenas no seu aspecto
exterior, porque Padre Domingos andava sempre “fardado”, já o outro não. Quem o
visse fora da igreja e não o conhecesse, nunca diria que ele era padre. O outro
nem nunca me lembro de o ver de roupa que não fosse da igreja. Depois, enquanto
que padre Domingos andava sempre, mas sempre, de missal na mão ou debaixo do
braço, padre Agostinho tinha sempre um cigarro na mão. Eram realmente muito
diferentes neste aspecto. No resto eram iguaisinhos.
Focando-me
exactamente no Padre Agostinho, ele vivia na Lagoa por ser o Pároco daquela
freguesia e morava numa bela casa, um solar de dois pisos, de frente para o
mar, com uma vista soberba. Um casarão que ia muito para além das suas
necessidades. Mas era propriedade da igreja e, portanto, por direito estava-lhe
atribuída. Algo em que eu pensava frequentemente, mas a vida é o que é e as
coisas são como são. Além disso tinha um pequeno terreno onde ele tinha feito
uma hortinha bem jeitosa, no qual colhia legumes fresquinhos quando quisesse.
Se eram só para ele ou se os distribuía com a população, não faço a menor
ideia. Lembro-me de que de vez em quando levava uma cesta com coisas lá para
casa e especialmente quando engravidei, no que ele tinha o cuidado de com muita
regularidade levar produtos fresquíssimos como alfaces, cenouras, batatas e
outras coisas mais, o que muito agradeci.
Mas
Padre Agostinho, tio do meu marido, andava quase sempre acompanhado de um
garoto a quem ele chamava de afilhado e que o tratava precisamente por
“padrinho”. O garoto estava com frequência lá em casa, pelo facto de andar
sempre com ele. Segundo dizia, era filho da senhora Lucinda, a pessoa que lhe
fazia a faxina em casa e cuidava de tudo na igreja. E assim, ele tinha o garoto
como afilhado e como afilhado acompanhava muito o padrinho.
Todos
nós já estávamos mais do que habituados ao convívio do garoto e que estava
completamente à vontade tanto com o padrinho como com o resto da família. E
algumas vezes dei por mim a pensar que o miúdo, que deveria ter uns onze, doze
anos, poderia perfeitamente ser da família, pela semelhança que tinha com todos.
Achava imensa graça à coincidência das semelhanças dele com o padrinho. Mas se
calhar era só eu. Talvez os outros não se dessem conta disso, porque
provavelmente nem se detinham nesses pensamentos. E não é que eu quisesse ou tivesse
alguma intenção especial. Era simplesmente porque aquela “coincidência” era tão
consistente, digamos, que era mais forte do que eu. Quantas vezes dei por mim a
pensar, a olhar para ele, a observar e sempre a chegar à mesma conclusão de
porque razão aquilo haveria de ser uma obstinação para mim. Eu nem queria saber
daquele assunto. Não tinha interesse nenhum. Mas acabava por ser mais forte do
que eu, sem dúvida.
Olhando-os
de trás, um era a miniatura do outro. A mesma forma, a mesma estatura, os
ombros largos, o cabelo claro como o meu filho e os primos. Os olhos
castanho-esverdeados como os da minha sogra e do meu marido. O mesmo tom de
pele, enfim, as semelhanças eram inúmeras. No meu íntimo, não era nenhuma
insinuação que eu fazia. Longe de mim pensar que o garoto fosse filho dele, mas
é que realmente era tão grande a semelhança que me deixava completamente
confusa.
Todos
sabemos que os padres não podem casar, não podem ter filhos e isto, em
princípio, é aceite pela comunidade. É uma estupidez! Não interessa. Problema
da igreja. Quando se metem a ser padres já sabem disso. É problema deles. E
também nunca conheci nenhum padre que tivesse filhos. Mas cada vez há mais
casos desses. Isso é sabido. E para mim tanto faz como fez. É-me absolutamente
indiferente, dado que a religião não me diz nada. O facto de ser crente, não
implica ter uma religião. Mas isso sou eu, por isso também, aceito os outros
como são.
Em relação
ao caso do tio padre, às vezes até me sentia incomodada com a tentação de
pensar constantemente naquele assunto. Longe de mim imaginar que o garoto seria
seu filho. E tinha a certeza de que ninguém na família alguma vez tivesse
pensado nisso. Nunca. Eles eram tão rígidos com os princípios do catolicismo!
Eu fui “obrigada” a casar-me segundo os rituais da Igreja Católica para poder
ter acesso aos encontros em família ao Domingo, dia do “Senhor”. Enfim… só
disparates. Mas eram os costumes deles, eram as suas tradições, as suas regras e
tudo tinha que seguir os seus trâmites, caso contrário era muito complicado.
Entretanto,
o meu marido e eu divorciámo-nos, cada um seguiu o seu caminho, apesar de
mantermos um relacionamento civilizado, quanto mais não fosse porque tínhamos
um filho que precisava disso. Os anos passaram, fomos todos envelhecendo, as
crianças tornaram-se adultos e também seguiram o seu rumo, o caminho destinado
e por aí adiante. Os tios padres morreram, primeiro um, depois o outro e a
minha sogra foi a última, porque faleceu com cento e quatro anos.
Muito
recentemente dei por mim a andar para trás no tempo, porque a minha cabeça, sem
motivo aparente, foi buscar todas essas recordações lá atrás, o que me parece
natural. E foi aí que vi o filme na sua película original e verdadeira. Ou
seja, de repente, sem mais nem menos, percebi porque razão eu ia sempre parar
ao mesmo caminho: o padrinho e o afilhado. Pela primeira vez na vida eu vi com
os olhos da alma, que não havia padrinho e afilhado, mas um pai e um filho,
pura e simplesmente. E perguntei a mim mesma porque razão tinha escondido isso
de mim mesma durante tantos anos!?
Estava
claro, mais do que claro, que desde a primeira vez que os vi, percebi que eram
pai e filho. Não havia dúvida nenhuma. Só não via quem não queria. E também
estava claro que os outros sabiam perfeitamente. Hoje tenho a certeza disso,
mas ninguém tinha a coragem de falar. Aceitavam aquilo como uma verdade oculta,
por uma questão de princípio, porque estavam em causa os princípios da Igreja e
o respeito pelo tio Padre, que não tinha outra saída naquela história.
Os padrões a que estamos sujeitos e as regras que nos impõem desde sempre, conseguem bloquear totalmente as capacidades inatas do ser humano. Elas foram feitas para isso e cumprem a cem por cento os resultados a que se destinam. E mais uma vez encontramos um lugar comum, ou seja, aqui, somos todos iguais. A limitação continua a dominar-nos. As verdades ocultas continuam a ter total soberania, se não evoluirmos como seres humanos. A nossa evolução passa pela luz que conseguimos chamar a nós. À medida que crescemos interiormente e desenvolvemos o nosso ser de luz, assim conseguiremos desabrochar e deixar sair a nossa verdadeira e mais pura identidade, para a qual não há meta e onde o céu não tem limite. O limite sem fronteiras que libertará de vez o espírito e acabará de vez com todos os nossos bloqueios e todas as verdades ocultas.