Eliane
era uma garota que vivia no meu prédio, no mesmo andar. Era a irmã do meio de
três adolescentes, de uma família brasileira que aqui residiram por três anos.
A família era constituída pela mãe, muito nova e o padrasto, mais novo ainda. Eliane
tinha dezassete anos, com uma irmã de 15 e outra de 19. As três viviam correndo
para minha casa sempre que se chateavam umas com as outras, com a mãe ou com o
padrasto.
E
vinham porque queriam algo diferente, um ambiente fora do que tinham em casa.
Às vezes precisavam de sossego, outras vezes precisavam de falar, de conversar
e desabafar acerca da vida delas. Coisas de adolescentes. Cada uma delas tinha
uma igreja diferente, inclusive a mãe, e viviam fazendo guerra umas às outras
sobre a igreja de cada uma delas. Todas achavam que a sua igreja era melhor do
que a das outras e por aí adiante, como se de um clube de futebol se tratasse.
Eliane
era a mais inteligente e a mais aplicada nos estudos e tinha muito boas notas
na escola. O seu grande sonho era ser médica. A mais velha, decididamente, não
queria estudar e vivia o tempo todo correndo para a sua igreja, num rigor
desgraçado. A meu ver, aquilo era doentio, ainda que a mãe achasse que era a
que não lhe dava problemas, apenas porque não queria tomar consciência disso
porque, na minha modesta opinião, aquela era das três a mais problemática. É
que não era só o ir à igreja, era toda uma série de comportamentos que estavam
a pôr em causa a sua saúde mental. O pastor tinha-lhe feito uma verdadeira lavagem
cerebral e era um completo fanatismo por tudo o que o “pastor” lhe dizia,
levando à risca o que não fazia o menor sentido. Ela já não tinha vontade
própria, estava completamente sujeita à vontade do pastor. Complicado!
A
mais nova tinha quinze anos e só pensava no alisamento do cabelo, nas unhas de
gel, nas suas formas redondinhas e por aí fora. De vez em quando eu levava-as
ao Centro Comercial e deixava-as escolherem alguma coisa para elas. Era uma
festa, porque a mãe tinha dificuldades financeiras e o padrasto não ajudava
muito porque também não podia. Coisas da vida.
O
certo é que as três viviam correndo para minha casa no intuito de fugirem ao
rebuliço, para terem acesso a coisas diferentes, uma conversa fora do âmbito
familiar a que estavam submetidas e não raras vezes me perguntavam como
deveriam actuar em determinadas circunstâncias. Além disso, gostavam de
bisbilhotar o meu roupeiro, pedindo-me roupas emprestadas e ainda
solicitavam a minha ajuda com os cabelos ou com a maquilhagem. E tanto a mãe
como o padrasto estavam gratos pela atenção que eu dava às miúdas. De vez em
quando eu também ia a casa deles para cavaquear com eles. Algumas vezes assisti
a discussões, o que fazia com que estivesse por dentro da vida de todos. Outras
vezes, estar com eles e até com os amigos, era muito divertido e cada um dizia
um disparate maior que o outro, tornando o convívio muito descontraído e
engraçado.
Eliane
era a que mais tempo passava comigo e eu sabia de todas as suas histórias.
Conhecia todos os seus amigos e amigas só de a ouvir falar. Punha-me questões,
pedia opinião, enfim, eu era uma segunda mãe, embora mais avó que mãe, para
ela. E um dia ela disse-me que a amiga X queria vir a minha casa para falar
comigo. Fiquei um pouco intrigada e quis saber o porquê. Ela respondeu que a
amiga estava com um grande dilema e precisava de ajuda. Mas a amiga vivia com a
mãe e o padrasto, portanto, porque razão haveria de querer falar comigo? Ela
tem um problema sério para resolver e só você pode ajudar, dizia ela. Eu?
Porquê eu? Como é que vou ajudá-la sem nem saber qual é o problema assim tão
complicado que ela não pode resolver em casa com a família?! Ela respondeu que
só eu podia resolver porque, por palavras dela “você é muito sábia, né!...”(?)
Nesta
altura, não me contive e dei uma gargalhada que saiu a todo o vapor. Eu,
coitada de mim. Muito sábia?! Já me tinham chamado muitos nomes mas “sábia”,
realmente, era a primeira vez. Nunca podia imaginar que alguém pudesse achar
que eu era muito sábia, mas de Eliane tudo se podia esperar. Está bem, a amiga
que venha, disse-lhe eu. Que mais poderia dizer? Logo se veria.
E um
dia lá veio Eliane com a amiga, uma garota da mesma idade, uma miúda bonita,
alta, magra, loura, com um tipo fino, educada, enfim, gostei dela. Começámos a
falar disto e daquilo, comecei fazendo perguntas sobre a sua vida, se gostava
de estar em Portugal ou se gostava mais do Brasil, perguntei sobre a família,
etc. E a páginas tantas pedi-lhe para me deixar ver as mãos. Ao olhar as suas
mãos, numa primeira impressão reparei imediatamente numa viragem ou seja, numa
mudança de rumo. Tomei mais atenção e percebi que o destino dela seria no
Brasil, não aqui. E disse-lhe que tudo indicava que ela regressaria e por lá
ficaria.
Elas
olharam uma para a outra e eu perguntei qual era afinal o problema dela, a
questão exacta da vinda dela à minha casa. Eliane logo se adiantou dizendo “ah,
você já respondeu, era isso mesmo que ela queria saber, se ficava ou não”.
Receosa da minha possível influência, fui logo explicando que, em todo o caso,
a decisão era dela. E a resposta continuou “não se preocupe, ela até já comprou
a passagem”. E perguntei, então se ela até já comprou a passagem porque veio?
Resposta “Era só p’ra tê a certeza, má você já disse tudo”(!)…