António estava viúvo há um ano. Viúvo e sozinho, porque os filhos há muito
eram independentes. Tinha sessenta e cinco anos e um casamento de toda uma vida
que terminara numa tragédia fatal para a mulher, por conta de um acidente de
viação em que teve morte imediata.
Passado um ano conheceu alguém por quem dizia estar apaixonado e
completamente arrebatado. Paixão é assim mesmo. Cega de todo. E as coisas
encaminhavam-se lindamente, segundo ele, que estava sempre a elogiar o seu novo
amor, que no momento presente era tudo para ele e não queria perder o que a
vida lhe estava a oferecer porque ela era muito compreensiva e lhe dava todo o
apoio que precisava.
E as coisas estavam a caminhar lindamente, com ele feliz de toda a maneira,
fazendo planos para ficarem juntos, planeando viagens e outras coisas mais, até
ao dia em que aconteceu um imprevisto. Perdeu a aliança de casamento. Foi
apenas isto que ele me disse. Não faço ideia se foi a dele, a da falecida, só
sei que foi apenas uma. E sinceramente não fiz perguntas porque não tinha
interesse para mim. Só percebi que tinha perdido a aliança e estava muito
chateado por isso. Mas não tinha perdido a aliança do dedo. Tinha perdido
porque a tinha guardado num sítio e tendo ido à procura dela por qualquer
razão, não a encontrou no sítio onde a tinha guardado. Continuei sem ligar
importância ao assunto porque para mim não tinha o menor interesse. Ele quis
desabafar, tudo bem. Mas eu não tinha nada a ver com o problema dele ter
perdido a aliança. E se calhar guardou noutro sítio, ou então ela estava lá e
ele não a viu. De facto o assunto não me interessava.
Mas nos dias que se seguiram, o seu ânimo fora-se. E se já de si ele era
uma pessoa stressada, agora estava pior do que nunca, todo baralhado, todo
desconcertado, ao mesmo tempo que fazia os possíveis para não dar muito nas
vistas. Em vão. É que o problema não se resumia à perda ou desaparecimento da
aliança. Como ele era uma pessoa excepcionalmente supersticiosa, tinha deduzido
que o facto de ter perdido a aliança significava que a falecida mulher não
queria que o romance fosse para a frente. Pois é. Por isso estava duplamente
abatido. Mas se a cabeça dele lhe dizia isso, quem era eu para o contradizer?
Para mim era absolutamente irrelevante. Era uma decisão dele, unicamente dele e
de mais ninguém. O facto é que deixou de se comunicar com a sua nova paixão,
dizendo-lhe que andava sem tempo e a tratar de assuntos. Pronto, cada um é como
é.
Uma semana depois as coisas levaram uma reviravolta. É que,
inesperadamente, António encontra a aliança. Nem estava mais à procura dela,
mas ao abrir uma gaveta para tirar de lá qualquer coisa que precisava,
surpreendentemente, a aliança foi parar às suas mãos. Como estamos a falar de
uma pessoa extremamente supersticiosa, logo a cabeça dele deu uma volta de
cento e oitenta graus ao assunto. Primeiro porque tinha sido um “milagre” ter
encontrado a aliança, uma vez que já tinha procurado ali e não a tinha
encontrado. Segundo porque isso significava que afinal a falecida não estava
contra a sua intenção de começar uma nova vida com outra pessoa. Estava
finalmente aprovado.
Só que desta vez, contrariamente ao que vinha acontecendo até aqui, eu
interiorizei o assunto e pela primeira vez parei para lhe dar atenção. Não é
que estivesse interessada na vida dele nem nas decisões que tomava. Mas sim
porque, de acordo com o que ele me contava, eu via o filme completamente ao
contrário. Se havia alguma ilação a tirar daquela história de perder e achar a
aliança, a minha intuição dizia-me que a história era precisamente o inverso.
Mas nem me dei ao trabalho de comentar nada. Era a vida dele e a verdade dele é
que contava, da mesma maneira que se fosse comigo o que contava era o que eu
pensava com a minha própria cabeça. Se há coisa que preservo e respeito é a
liberdade. A minha e a dos outros. Portanto, não comentei nada, mas realmente,
se aquilo tinha um significado não era o que ele atribuia. Não era mesmo.
E António não se fez esperar. Com este episódio que ele achava resolvido,
correu para os braços da sua amada e os dois se aninharam como puderam,
começando assim uma vida juntos.
E porque é que a minha visão das coisas era diferente? Ele perdeu a aliança
assim que começou a andar com a outra. Naturalmente por pura distracção ao
guardá-la nunca mais se lembrou do sítio exacto onde a guardou. E porquê?
Porque já estava muito focado na sua nova vida, pondo em segundo lugar a
falecida, o que nada tem de estranho. A vida anda. O que é que isto significa?
Esta perda, voluntária ou involuntariamente, ajusta-se na perfeição ao começo
de vida nova, pondo em segundo plano a anterior. Mas esse pormenor a ele
escapa-lhe por completo, porque a constatação da perda da aliança fá-lo
tomar consciência de que a sua vida anterior já pertence ao passado e
não tem mais volta. Mas são muitos anos. E um ano é talvez muito pouco tempo
para digerir esta separação definitiva, porque ainda por cima parece que tinham
uma óptima relação conjugal. Em todo o caso “a carne é fraca”, isto é apenas
uma forma de dizer, e na primeira oportunidade ele já se envolve a todo o vapor
com outra. Perder a aliança não é senão uma tomada de consciência de que está a
ser muito apressado em pôr outra já no lugar da companheira de tantos anos. É a
consciência a falar. A insegurança que surge. O medo de estar a “trair”
inconscientemente a memória da falecida. É por isso que ele deduz que ela não
quer e portanto, por muito que lhe custe, afasta-se.
A minha visão das coisas, uma vez que não estou envolvida emocionalmente, é
precisamente o contrário. Perder a aliança é sinal de que o que ela representa
já está no passado, anunciando assim uma nova etapa da vida. Só isso.
Não há culpas para ninguém. É a vida a seguir o seu rumo.
Encontrar a aliança é para ele um sinal positivo, ou seja, afinal não há o
que temer, não há culpas, a falecida aprova. Mentira. Mais uma vez, na minha
óptica, ele está errado. Se encontra a aliança é porque vai voltar para o
antigo registo. Porquê? Isso eu já não sei. Não sou bruxa! E para ele é o
contrário, mas para mim não faz o menor sentido. Se é para irmos por um caminho
de superstição, de intuição, ou seja lá do que for, então, se a aliança
apareceu, todo o novo processo vai retroceder e voltar à memória da falecida.
Mas esta é a minha visão e quem sou eu para estar a dar pareceres à vida dos
outros!?
O facto é que ao fim de sessenta dias tudo se desmorona e António estava de
novo sozinho, o que comprovou apenas que a tese dele estava errada, ao
contrário da minha que, felizmente ou infelizmente, estava certíssima.