quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O rapaz do avião - 27


Levantei-me para ir à casa de banho e quando voltei fiquei presa no corredor, porque as hospedeiras de bordo andavam nas vendas e, com o carrinho, impediam a passagem. Apoiei-me na cadeira que estava à minha esquerda, enquanto esperava para passar e reparei que estava sentado um rapaz novo que, pela conversa, pertencia a um grupo de estudantes em viagem de finalistas aos EAU. Já os tinha ouvido falar uns com os outros, porque se levantavam constantemente e trocavam de lugares entre si e percebi que também iam de férias para o Dubai.

De repente, enquanto aguardava para poder passar, reparo que o rapaz da cadeira onde eu estava apoiada, tinha as mãos sobre as pernas, uma ao lado da outra, com as palmas abertas e viradas para cima. Mesmo sem querer, olhei e, rapidamente, fiz uma leitura das mãos dele, que me deixou completamente em alerta. O rapaz era novo e eu não lhe via a cara, porque estava atrás da cadeira, mas teria a mesma idade dos outros que rondavam, em média, os vinte, vinte e um anos, e as mãos dele tinham um traçado completamente anormal. Era muito mau. 

Então, concentrei-me para ver melhor, mas aquilo era o que se poderia chamar "falta de sorte". Algo muito terrível o perseguia pela vida fora. Algo contra o qual ele não podia fazer nada. Não sei se seria um acidente, uma doença, mas o percurso de vida dele estava completamente distorcido. Àquela distância não era possível entrar em pormenores, mas o traçado mostrava claramente que seria vítima de algo que lhe marcava a vida negativamente e sem volta.

Olhei para os outros e achei-os todos normais, cheios de vida, rapazes e raparigas saudáveis e eu não sabia como encarar aquilo. Só pensava comigo mesma "coitado, coitado!" Porque é que eu tinha que passar ali naquele momento? Podia ter passado e não ter visto e estaria muito mais feliz, então. Mas vi e não podia fazer nada. Ou podia? Seria correcto falar com ele para dizer o quê? Por exemplo: "olhe, tenha atenção a um acidente ou a qualquer coisa que põe a sua a saúde em risco e muda a sua vida para sempre"... iam rir-se de mim(!). Tão certo como certo. O que é que eu podia fazer!? Ainda iria a tempo? Mudaria alguma coisa? Qual seria a reacção dele, depois de saber aquilo? Como é que ficaria se acreditasse que seria vítima de uma fatalidade? Era terrível! E ia de férias todo tranquilo e satisfeito!... E pensar que eu era portadora de um segredo tão horrendo!? Nada daquilo era agradável e eu não queria estar naquele lugar. Como é que eu poderia saber se se confirmariam as minhas suspeitas? Nunca mais o veria. Mas também podia estar enganada e isso seria óptimo. Podia ser, claro.

Entretanto, tentava olhar as mãos dos outros, não sabendo bem porquê, mas talvez para confirmar que estava tudo bem e que com aquele seria uma excepção, o que não aconteceu, porque eles não paravam de falar, gesticular e as mãos não estavam com as palmas visíveis. E foi então que me ocorreu uma coisa. Porque é que eu via as palmas dele sempre viradas para cima? Não era muito confortável aquela posição! Ao mesmo tempo, a hospedeira de bordo passou e eu tive o caminho aberto. Ao passar, olho de frente para o rapaz. Tal foi o meu espanto. Ele era todo estropiado, coitado. Por isso, as palmas das mãos estavam viradas para cima de forma anormal. O que era, já era. Não me tinha enganado nem havia nada que se pudesse fazer. Estava escrito. Todo o sistema nervoso estava afectado só que, por detrás do banco, não se percebia. Lamentavelmente, não me tinha enganado e não precisava nem de um minuto mais para o confirmar. 

O destino tinha sido implacável e estava rigorosamente cumprido, sem se fazer esperar.

 

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A cigana - 26


À porta do Centro Comercial havia sempre ciganos a vender roupa. Um dia, à hora do almoço, passando por eles, veio atrás de mim uma rapariga cigana, muito jovem, que me queria ler a sina. Não lhe liguei importância, mas ela veio atrás de mim, e com a insistência que lhes é característica, tanto me chateou que cedi, na expectativa de aproveitar a oportunidade para a confrontar com outra realidade. Então ela pegou na minha mão e na lenga-lenga habitual, começou a contar a história que contam a toda a gente, achando que me impressionava.

Olhei para ela e pedi-lhe que parasse com aquele discurso mal "parido", fazendo-a perceber que eu sabia que aquele discurso era muito bem estudado e era sempre o mesmo, passando de geração em geração, sem ter nada de consistente. Primeiro, ela reagiu, tentando amedrontar-me e querendo o lucro dela. Quando percebeu que isso não ia acontecer e que eu não estava nem aí para o que ela estava a contar, peguei na mão dela e disse-lhe que era eu que lhe ia ler a mão. 

Ela olhou para mim, desconfiada, e disse-me que não podia ser, porque eu não era cigana. Comecei a rir e disse-lhe que ler a mão não era um privilégio da etnia dela, mas um conhecimento que qualquer pessoa poderia adquirir. Ela era uma garota de dezoito anos e debaixo daquele disfarce todo, havia uma evidente inocência, própria da sua idade. E até senti uma certa empatia com aquela jovem cigana, pelo que decidi ter um pouco de paciência.

Voltando ao assunto, veio outra, mais velha, juntar-se a ela, com um ar todo empertigado, a meter o nariz onde não era chamada. Ignorei-a e pedi à jovem que me desse as mãos dela, mas ela não queria. Então disse-lhe que se ela queria tanto ler as minhas mãos, porque não poderia eu ler as dela!? Ficou em silêncio, a pensar e sem perder mais tempo peguei-lhe nas mãos e num primeiro olhar saltou à vista uma coisa e perguntei: És casada? Sim, respondeu ela. O teu marido é muito mais velho do que tu. Sim, voltou a responder. Mas como é que sabe? Ignorei e continuei. Porque te casaste com ele? Não respondeu. Impuseram-te este casamento, disse eu.

A outra, a mais velha, olhou de lado para ela e deu-lhe um toque com o cotovelo. Entretanto, ela olhava para mim, atónita, sem querer acreditar no que ouvia e perguntou como era possível eu saber aquilo. Ignorei e continuei. Temos aqui um problema. As duas ouviam-me, consternadas, sem abrirem a boca e com os olhos esbugalhados. Vocês são obrigadas a casar com gente da vossa etnia, não é? Ela fez que sim com a cabeça. Eu sei, respondi, mas o teu rumo vai mudar. Vais-te apaixonar por alguém da tua idade e que não é cigano. Alguém que vai mudar completamente o teu caminho. Vai tirar-te da tua gente e vais seguir o caminho dele, de tua livre e inteira vontade. Está escrito e nada vai mudar isso. Vais crescer interiormente e vais tornar-te numa outra pessoa e abandonar o teu clã.

Ai(!)... murmurava ela. A outra fazia-lhe uns sinais com a cabeça e com o olhar e eu percebi que a coisa já estava no ar. Vendo que ela estava um pouco assustada, disse-lhe, não tenhas medo, essa pessoa vai ajudar-te e vai tudo correr bem. Além disso, és livre e tens direito a escolher a tua vida.

Ela fechou as mãos e guardou-as, dando a sensação de que, conforme eu li, outra pessoa podia ler e aquilo era um segredo fechado a sete chaves, que ninguém poderia suspeitar, sob pena de ser sacrificada a maus tratos e sabe-se lá que mais.

A outra imediatamente estendeu as mãos, pedindo para eu ver também as dela. Disse-lhe que não, que não era cigana. Vocês não dizem que só vocês o podem fazer? Então, tenho cara de cigana? Não, dizia ela, mas a senhora sabe ver, pode-me dizer a mim também? Não, respondi e fui-me embora, só que elas vinham insistentemente atrás de mim e como eu as ignorava, a mais velha perguntou, onde é que a senhora trabalha? Entendi. Ela pensou que a leitura das mãos era a minha vida, o meu ganha-pão e portanto queria saber onde era, para fazer uma consulta. Fiz-lhe sinal que não e continuei. Tive que ser firme para elas me deixarem, mas não foi fácil.

No outro dia, à hora do almoço, quando saí da RTP, ao passar pelo mesmo sítio, que era inevitável, já nem me lembrava daquela história, vejo duas raparigas correrem na minha direcção e percebo que são as mesmas. Senhora, senhora, gritavam e corriam para mim, com toda a gente que passava a olhar e a pensar o que é que elas poderiam querer comigo. Senti-me confrangida e tive que fugir. Nos dias seguintes, quando saía, já ia prevenida e apalpava muito bem o terreno para ver se não havia o perigo de ser apanhada por elas.

É verdade que por aquela elas não esperavam. Mas eu também não. Aconteceu naturalmente.

 

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Avó e neto - 25


Eu senti muito a falta da minha mãe, desde que ela faleceu, quando eu tinha apenas dez anos. Só quem passa por isso é que pode avaliar e lidei muito mal com essa situação. Fiquei perdida, despedaçada de todas as maneiras e feitos. Pela vida fora fui tentando apanhar os cacos que ficaram de mim e aprendendo a juntar cada pedaço para me refazer. Foi muito difícil. Em tudo eu sentia a falta, o apoio, o carinho dessa mãe que com trinta e dois anos tinha partido. Mas sobrevivi. 

Quando o meu filho nasceu, mais uma vez e como, senti a falta, a necessidade duma mãe que me orientasse e me transmitisse confiança com a sua experiência e que estivesse por perto de mim, como naturalmente estaria se estivesse viva, para me ajudar a cuidar do meu filho, o que teria sido uma grande alegria para ela. Mas enfim, a vida é como é e é preciso aceitar. Mas sempre que eu estava em apuros e em situações complicadas pensava nela e isso reconfortava-me, acreditando que ela faria o impossível para protegê-lo e de alguma maneira me ajudar na missão mais importante da minha vida. 

Desde que o Henrique nasceu, uma das coisas que sempre achei fundamental na educação dele, foi a "disciplina". Assim, ele foi crescendo com horas para tudo. É claro que a disciplina que eu introduzia nos hábitos dele começava por mim, caso contrário nem saberia como aplicá-la. Portanto, a hora de dormir tinha a sua hora que ele, aliás, muito bem sabia e quando estava na hora, ele mesmo dava o sinal. 

Contudo, um dia aconteceu que chegou a hora de ir para a cama mas não foi, entretido que estava com uma construção de lego pelo que, a certa altura, tive que intervir. Ele dizia que já ia, já ia, mas o já, não se concretizava e aos poucos comecei a enervar-me, a ralhar com ele, que acabou por ir para a cama contrariado e a chorar. Deve ter sido a única vez em que tal aconteceu ou talvez tenham havido outras que não tiveram tanta importância. Esta ficou marcada porque foi um acontecimento muito, muito especial. Daquelas coisas que, em verdade, nem se deviam contar, porque não podemos esperar que os outros entendam e muito menos que acreditem. E mesmo que acreditem, é impossível relatar de modo a passar exactamente o que aconteceu. Não há palavras que possam descrever aquilo que não se vê e não se ouve. A alma de cada um é única e, como um cartão de crédito, pessoal e intransmissível. 

Dadas as circunstâncias, consenti que ele ficasse um pouco mais tempo acordado já na cama, para que se acalmasse e fui para a sala, embora irritada por me ter aborrecido com ele e o ter feito chorar. Precisava de ter mais paciência e às vezes não tinha. Também me queria deitar porque estava cansada e só depois dele é que eu conseguia dormir. De modo que o melhor era dar-lhe mais um tempinho para sossegar.

Passados alguns minutos achei que devia ver se já estava a dormir. Levantei-me e estranhamente comecei a ouvir a voz dele. Dava para perceber que toda a agitação tinha desaparecido. Estava muito calmo, como se nada tivesse acontecido e falava quase em monossílabos, frases curtinhas, como se estivesse a falar com alguém, a responder a alguém. Há crianças que falam sozinhas e algumas têm uma espécie de amigo imaginário, mas o Henrique nunca foi disso. Mas que estava a falar, estava, e que estava sozinho, era certo, com a luz ainda acesa e o lego que continuava entre mãos. A minha irritação persistia, ainda que eu não tivesse muita consciência disso e senti uma fúria por ele continuar acordado. 

Quando cheguei à porta senti um impulso que me repelia e não me deixava transpor a entrada. Uma estranha força entrepunha-se e barrava-me a entrada. Ao mesmo tempo, a luz que inundava o quarto não era a luz do candeeiro que eu bem conhecia e o Henrique estava sentado na cama, muito calminho, muito tranquilo e continuava a falar como se alguém estivesse ao lado dele. Percebi imediatamente que algo "estranho" se estava a passar.  

Senti a calma que reinava ali e percebi que era incompatível com o meu estado de espírito, cuja vibração que me impediu  de entrar. Inclinada sobre ele, a figura etérea da minha mãe, emanava uma aura absolutamente deslumbrante, que envolvia o Henrique, o quarto e decididamente não tinha nada a ver com a luz do candeeiro. O rosto dela estava impresso no éter, assim como o vulto, que se esbatia em finíssimas camadas de luz. Todos os contornos estavam lá, definidos na indefinição que se perdia num fundo de luz infinita. Era o retrato da pureza. E a sua mão branca, fina e delicada, passava quase rente ao cabelo curtinho e louro do Henrique, contornando a cabeça desde a testa até à nuca, sem lhe tocar, num gesto de uma ternura indescritível, de paz e tranquilidade, aconchego de avó que não podendo estar em presença física, desceu à terra, em espírito, para apaziguar um neto muito, muito querido, que amava e protegia acima de todas as coisas. 

A sua expressão de enlevo mostrava uma felicidade que não era deste mundo e o Henrique, inocente e inconscientemente, absorvia e desfrutava daquela bênção sagrada. Era um quadro de um fascínio delirante, onde o amor estava patente, desenhado e materializado. Uma coisa deslumbrante! Uma coisa do céu, do céu azul, onde vive a luz da eternidade. Era um encontro maravilhoso de uma avó que já cá não estando, continuava perto, deixando a marca e a mensagem do amor incondicional. Com efeito, era bom que todos soubéssemos que, em qualquer plano ou dimensão, a vida supera a morte. 

Aquele não era o meu lugar naquele momento e eu não queria "conspurcar" a beleza daquela energia que nos presenteava. Mas o meu coração chorou lágrimas de alegria.  

Voltei para onde estava e aguardei. Agradeci a Deus aquela coisa maravilhosa e fiquei sentada no meu sofá da sala, deixando o pensando fluir, fluir, pleno daquele bem estar. Mais tarde voltei ao quarto, devagarinho, pé ante pé. A luz continuava acesa e o ambiente tinha voltado ao normal. Ela viera em nosso auxílio. Cumprida a sua tarefa de tranquilizar o neto e fazê-lo adormecer - fazer aquilo que eu não conseguira fazer - partira, pois há muito que não pertencia a este mundo. Apaguei a luz e o Henrique respirava calmamente, num sono tranquilo e inocente, como o de uma criança feliz e abençoada. 

A partir daí, eu sabia que ela estaria sempre por perto, não só do Henrique como dos outros netos, o que me deixou muito, mas muito mais feliz e imensamente grata à vida por se estar sempre a revelar e sempre a manifestar da maneira mais surpreendentemente possível.


terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Energia - 24


Um dia, fim de semana, sábado à tarde, aproveitei para descansar. Estendi-me no sofá e adormeci. Devo ter dormido cerca de uma hora ou um pouco mais. Quando acordei tive uma estranha sensação. 

Tinha acordado, porque os meus olhos abriram e a minha consciência fez-se presente. Vi o meu corpo, mas não tive consciência dele. Do sofá onde estava via-se a porta da cozinha, que estava aberta, pelo que o meu olhar foi atraído para o seu interior, onde uma espécie de duplo do meu corpo físico estava lá, junto do lava louça, a fazer qualquer coisa. 

Como eu estava consciente, imediatamente me reconheci fisicamente ali, naquele lugar, pensando com os meus botões: "aquela sou eu, como é possível estar em dois sítios ao mesmo tempo?... Não estou inteira... e como posso estar ali, a fazer não sei o quê, se estou aqui deitada?"...

Percorri o meu corpo de cima abaixo, com o olhar, e estava lá tudo, mas de facto sentia um vazio, uma leveza, como se algo de mim estivesse ainda ausente. Ao tomar consciência desse vazio, percebi que o duplo etéreo que eu estava a ver era o vazio que eu sentia. 

Houve um delay, ou seja, um desfasamento de tempo, entre a chegada de duas energias diferentes para um acordar completo e normal. A consciência despertou, mas o espírito continuou a vaguear, não obedecendo ao físico. 

Face à minha tomada de consciência, o meu corpo energético começou a rodopiar de cima para baixo, como um vento destruindo aquela aparente forma física que era a minha. Rodopiou, rodopiou em torno do seu próprio eixo, formando uma espiral de energia que veio direita ao meu corpo físico e colou. Nesse preciso momento em que se diluiu por completo no meu corpo físico tive a sensação de que se tinha ligado a ficha à corrente eléctrica e eu estava novamente inteira. 

Tudo isto se passou em fracções de segundo. Nunca me tinha acontecido nada igual e nunca mais voltou a acontecer. Foi apenas curioso.

Em teoria eu sabia que, quando dormimos, o nosso espírito sai do corpo para ir aos os lugares que lhe apetece, uma vez que, livre da matéria, não está condicionado ao tempo nem à distância, regressando quando acordamos. 

E não é que eu duvidasse disso, mas nesse momento tive a prova de que realmente temos muito mais do que um corpo físico e por causa disso, muitas coisas acontecem que desconhecemos completamente.


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

O cão branco - 23


Era o final de uma tarde de Verão. Fui dar um passei com o Riaz nos arredores da minha casa, numa zona que, nessa altura, ainda não era urbanizada. Era campo e mato. Ao cabo de apenas alguns metros em que passeávamos descontraidamente para apanhar um pouco de sol e de ar, avistámos ao longe, entre quatrocentos a quinhentos metros, saído da mata dos eucaliptos, aquilo que me pareceu ser um pastor alemão, porque não conheço especialmente bem as raças dos cães. 

Quando olho e vejo aquele cão todo branco, imponente, saindo por entre as árvores, aparentemente na nossa direcção, fiquei imediatamente à procura do rasto de um possível dono, o que me daria bastante mais tranquilidade. E bem observado, um cão daqueles, com tão bom aspecto, bem tratado, bem alimentado, tinha que ter dono, mas onde andaria ele? Como é que salta da mata um cão daqueles sozinho? 

Eu tenho um certo receio que consigo controlar e não demonstrar, e a coisa vai. Mas o Riaz... eu sabia que para ele era o diabo. Os muçulmanos têm uma estranha superstição com certos animais que não podem tocar porque, dizem eles, tira a potência sexual aos homens. E a verdade é que por causa dessa superstição ele e os amigos sempre se desviavam de cães e outros animais como cabras, por exemplo, e outros.  

De modo que, quando vi o cão lançado a toda a velocidade, galopando como se fosse um cavalo sem parar, sempre em direcção a nós, fiquei perplexa, não tanto por mim, mas por ele que, tal como eu já esperava, logo deu sinal. Ficou numa grande aflição, lembrando que não podia encarar o cão. Depois ele vinha perto de nós e ele nem queria pensar em tocar ou ser tocado por ele. Era a sua ruína(?!). 

Fiquei encurralada. Não adiantava fazê-lo raciocinar. Já tínhamos falado nisso várias vezes e aquilo estava enraizado demais para ser alterado assim. Tinha que ser muito mais fundo e aquele não era o momento, de certeza absoluta e nem havia tempo de pensar nisso. Portanto, a única coisa a fazer era tentar controlá-lo para eu também não ir atrás da onda dele, não no aspecto da superstição, mas na questão de ficarmos os dois tolhidos de medo e descontrolarmos o animal com o nosso próprio medo. 

O facto é que tinha que pensar rapidamente, porquanto tudo isto se estava a passar em segundos e o Riaz já estava todo baralhado e aflito, a esconder-se por trás de mim e a agarrar-me como se fosse uma criança. Era um absurdo um homem daquele tamanho agarrado a mim por todos os lados por causa de um cão. Ao mesmo tempo eu olhava em volta com medo do ridículo. Não havia ninguém o que, por um lado era mau, podia chamar a atenção do cão e desistir de nós, mas por outro lado, não havia testemunhas oculares para nos sentirmos envergonhados pelo caricato da situação. 

E o cão não parava de correr para nós e nem sombra de dono. A situação começou a ficar caótica e era absolutamente necessário interferir, fazer alguma coisa, pôr um ponto final naquilo, tomar o comando da situação, no que tinha que contar exclusivamente comigo. Não havia alternativa. 

E quando não nos resta mais nada, ainda há um último recurso, provavelmente o mais poderoso de todos: a telepatia. 

Afastei o Riaz e virei-me na direcção do cão. Dei dois passos em frente e rapidamente ordenei-lhe que parasse imediatamente: "Pára". E não é que ele parou!? Com o mesmo vigor com que vinha, apontei a minha arma secreta, a telepatia, e formulei a ordem de "stop". A mais ou menos 100 metros de nós o animal meteu travões a fundo que até derrapou na terra, abanou o rabo e depois manteve-se quieto, parado, completamente imóvel, que parecia uma estátua. Foi impressionante!

O Riaz respirou fundo e ficou a olhar para mim, como que apercebendo-se de uma pressuposta comunicação entre mim e o cão, mas sem compreender racionalmente o que tinha acontecido. Ele sentiu que o cão parou quando eu me virei para ele e fiquei em silêncio, de olhar fixo nele, depois de o ter afastado de mim. Ele percebeu que houve uma estranha interferência entre mim e o cão, que lhe escapou por completo. Contudo, o que quer que fosse, não era relevante, porque tudo o que ele queria era ver o animal afastado dele, o resto não lhe interessava. E de uma forma "mágica" - porque ele não tinha entendido - eu tinha conseguido isso. 

Como já disse, tudo isto se passou em segundos. E logo depois de o cão ter parado e ficado imóvel, apareceu também por entre a mata dos eucaliptos um homem de aspecto possante, tal qual o cão, que caminhava a passos largos com um chicote na mão, pelo que pensei e estava certa, finalmente o dono do cão que aparece.  

Mas o homem não gostou muito de ver o cão parado, sem se mexer. Todavia, à distância a que nós estávamos dele, era impossível termos-lhe tocado. Percebi que o homem ficou intrigado com a reacção do seu cão, do qual ele devia ter muito orgulho pela raça em si e pelo porte que, naturalmente, intimidaria qualquer um, ainda que, acredito, fosse inofensivo ou agressivo sem motivo. Mas percebi que, na qualidade de dono, estranhou a atitude do seu cão, que chamou de imediato, fazendo voltar a si.  

O Riaz estava branco do susto e do desfecho inesperado, que lhe foi muito favorável, querendo ir embora dali depressa. 

Eu acredito que a telepatia funciona e sirvo-me dela sempre que se faz necessário. Para mim é uma coisa extraordinária que a nossa condição humana nos oferece e que aceito como uma bênção enorme. E só serei privilegiada se os outros a não usarem também porque, conforme já disse outras vezes, ela é acessível a todos. 

Os nossos limites como humanos ainda não estão definidos nem nunca estarão. Não somos um produto acabado, de forma alguma. Estamos sempre a caminho do progresso e da evolução/transformação. Temos fronteiras bem marcadas que sabemos bem demais que não podemos ultrapassar, pois elas contribuem para a destruição: as drogas que viciam e nos roubam a liberdade. Mas as fronteiras que temos que ultrapassar para crescermos em todos os sentidos e em todas as direcções, essas não podemos permitir que continuem a limitar as nossas vidas porque são a nossa derradeira oportunidade de salvarmos a humanidade, de nos salvarmos a nós próprios. Essas esperam por nós a toda a hora, a qualquer momento, em qualquer circunstância, porque essas são infinitas.

 

domingo, 16 de janeiro de 2011

O regresso do Riaz - 22


Pouco depois das minhas férias na Grécia o Riaz decidiu regressar a Portugal, o que não era fácil, uma vez que não tinha visto de saída. Portanto, tinha que viajar clandestino e estas viagens clandestinas são extremamente caras, além de que envolvem inúmeros riscos. Ele sairia de barco, num camião tire. Quando? Ninguém podia responder a isso. Ia telefonando e sempre que telefonava eu tinha a esperança de que já estivesse em viagem, mas continuava na Grécia. Eu estava em convalescença de uma cirurgia um tanto delicada, de modo que a vinda dele era muito bom. Ele cuidaria de mim e o Henrique poderia regressar a casa. 

Uma noite tive um sonho e no meu sonho estava a dormir quando fui acordada pelo telemóvel que tocava, apesar de estar desligado. É que, de facto, desligava-o sempre na hora de dormir, para garantir um sono mais tranquilo, a bem da minha recuperação física. Ao toque do telemóvel acordei, sentando-me na cama, completamente atordoada e estupefacta pelo facto do telemóvel estar a tocar, ainda que desligado. No meu sonho, pensava que aquilo não era possível, mas ele tocava. Olhei para o relógio e vi que eram quatro horas da manhã. Só podia ser o Riaz, provavelmente avisando da sua partida. Ele mesmo. E o sonho acabava ali, seguido do meu acordar.

Ao acordar, atordoada porque ainda era noite, a minha primeira atenção foi para o telemóvel e conscientemente, certifiquei-me de que estava realmente desligado, tal qual o sonho. E de facto estava. Como o telemóvel estava junto ao relógio, mesmo sem intenção, vi as horas e logo aí me apercebi da "coincidência" de serem quatro horas da manhã. O sono era muito, pelo que voltei a adormecer.
 

De manhã quando despertei, imediatamente me lembrei do sonho e mais uma vez olhei para o telemóvel que, evidentemente, estava desligado. Liguei-o e percebi o que o sonho me dizia. Durante todo o dia fiquei de sobreaviso, olhando para o telemóvel e estranhando a ausência de notícias, porque eu tinha a certeza de que ele iniciara a viagem. O facto de não ter dito nada poderia significar que talvez me quisesse fazer uma surpresa!? 

Finalmente, a meio da tarde, o telemóvel tocou. Atendi, mas não era a voz dele. Contudo, pela pronúncia e tom de voz, percebi que era relacionado com ele. Um indivíduo que disse ser seu amigo e a quem ele pediu para me avisar da sua partida, porque saíra às quatro da manhã e não lhe tinha sido possível contactar-me. Entendi e agradeci. O meu sonho estava certíssimo. Claro que isto foi muito mais do que um sonho. Como já referi antes, a minha empatia com ele era fortíssima. Havia uma corrente invisível que nos unia de uma maneira extraordinária. 

Entretanto, havia já dois dias que eu não tinha notícias do Riaz e não podia fazer nada a não ser esperar. Mas era uma grande inquietação. Podia acontecer tanta coisa... 

Ao terceiro dia finalmente deu notícias, ligando de uma cabine pública. Estava em Itália. Rapidamente, contou-me que tinha vindo por mar, dentro de um camião tire, durante dois dias e duas noites, um tempo interminável, em que não tinha nada para comer nem beber, nem como fazer as necessidades fisiológicas, pois não podia sair dali para não ser apanhado. Apenas o cigarro o mantinha vivo e mesmo isso, tinha que ser muito discretamente, com todo o cuidado. Fiquei horrorizada, mas agora que estava fora do camião, já se sentia aliviado e pronto para continuar a jornada. 

Estava exausto, mas muito animado, como era seu costume. Passei para ele toda a minha angústia e preocupação, mas ele garantiu que, em menos de vinte e quatro horas, estaríamos juntos e provavelmente não seria necessário nem oportuno telefonar mais. No meio daquela emoção toda, eu só pensava que eram apenas mais umas horas de espera. Mas não foi bem assim. Quando parecia que tudo, enfim, corria sobre rodas, o inesperado aconteceu. Eu sabia que mil e uma coisas podiam atrapalhar o sucesso de um "corta-mato" daquela natureza, mas o que aconteceu, jamais passara pela minha cabeça. Jamais.
 

Algumas horas depois do telefonema dele, o telemóvel tocou novamente. Era ele. Fiquei surpresa e ansiosa por saber o que se passava, onde estava agora, etc. A voz estava muito aflita e embaraçada. Percebi que havia problema. Quando ele estava em apuros, falava alto e um pouco apressado, tornando-se difícil entendê-lo, como se já não bastasse o facto de falarmos três línguas ao mesmo tempo: Português, Inglês e Urdo. Então pedi-lhe que se acalmasse e falasse mais devagar para o entender. 

Ainda estava em Itália. A viagem até àquela altura tinha sido compartilhada com dois jovens Indianos, rapaz e rapariga, que viajaram com ele nas mesmas condições. E, apesar do Riaz ser Paquistanês, o facto é que, as condições em que os três se encontravam, fez com que se tornassem unidos e de certo modo, amigos. Terão partilhado conversas, desabafos, enfim, alguma intimidade os teria fatalmente ligado, durante aquele penoso percurso. Era inevitável. Por outro lado, é sabido que o Paquistão e a Índia vivem em guerra permanente. Mas, como já disse, numa circunstância daquelas, esquece-se tudo isso e tornam-se irmãos do infortúnio... ou não!? 

Esse é que foi o problema. A história dos jovens Indianos era que, ao chegarem a Itália, iriam ter com um tio rico, que lhes daria tudo o que necessitavam. Abrigo, comida e dinheiro suficiente. Mas para irem ter com esse tio, precisavam de um dinheiro de que não dispunham. Eles sabiam que o Riaz tinha dinheiro bastante para não ter que passar necessidades de espécie alguma. Os jovens Indianos aproveitaram-se das circunstâncias e fizeram a cabeça do Riaz, que se comoveu o bastante, para pôr nas mãos deles o dinheiro que diziam precisar. Com toda a sua esperteza e experiência de vida, caiu direitinho na armadilha. O objectivo era encontrarem o tio e voltarem a encontrar-se. Devolveriam o dinheiro ao Riaz e então o tio, com os seus conhecimentos, arranjaria uma maneira de pô-lo em Portugal são e salvo e sem custos, por conta da boa acção que fizera com eles(!?)... 

Agora, estava desesperado, sem dinheiro e sem saber o que fazer. Precisava que eu lhe mandasse dinheiro. Fiquei furiosa, exasperada e tudo o mais que não tenho como descrever. Era-me difícil acreditar que ele tinha caído na conversa dos outros mas, conhecendo o Riaz como o conhecia, também sabia que era possível. Era esperto mas porque, no fundo, tinha um coração grande, o que naquele momento não facilitava as coisas, às vezes era ingénuo e descuidado e eu não conseguia aceitar. 

Ralhei tanto com ele, tanto, que fiquei cansada, muito cansada e muito doente, o que não convinha nada. Desliguei-lhe o telefone e ficámos num impasse. Não queria chatear-me com ele mas o que ele tinha feito era absolutamente inaceitável. Não me apetecia falar mais com ele e não queria pensar naquilo. A minha cabeça estava a milhas e sentia-me encurralada. Por um lado, não conseguia perdoá-lo pela estupidez que tinha feito; por outro lado, partia-se-me o coração pensar que ele estava num país estrangeiro, sem dinheiro para nada, apenas com alguns trocados no bolso.
 

E não parava de pensar, nem conseguia ter sossego. Era invadida por pensamentos, perguntas sem respostas plausíveis, tudo numa enorme contradição. Tudo aquilo não ajudava em nada a minha convalescença. Mas não conseguia chegar a um consenso. Os caminhos dividiam-se. Mais uma vez ele estava em apuros e a quem é que recorria? A mim. A situação era cada vez mais catastrófica, inaceitável e intolerante. Voltou a ligar, mesmo depois de eu o ter deixado a falar sozinho e novamente lhe demonstrei todo o meu desagrado. 

Naquele momento a minha tolerância era zero. Desde que nos conhecemos, o sentido de responsabilidade dele ia diminuindo e em vez de trabalhar no sentido de amadurecer, tornava-se cada vez mais desleixado, deixando tudo por minha conta e risco. Depositava em mim todas as responsabilidades e fazia com que fosse eu a conduzir tudo e a tomar todas as decisões dele. Achava que eu educava muito bem o meu filho e queria mandar vir o filho dele para eu o educar. O Amar tinha dez anos e vivia com a mãe no Paquistão. Eu disse-lhe que nem pensasse nisso, porque a mãe tinha o direito de ter o filho com ela. Mas até com a mulher dele as coisas tomaram esse rumo. Quando havia problemas entre eles, ligava-me à revelia dele e falava de sua justiça. Eu mandava-lhe coisas de cá, que ele não queria que ela tivesse. Debati-me junto com ela e as irmãs, quando um dos irmãos resolveu ter uma segunda esposa e fiquei do lado delas, mulheres. Ela dizia que na família dela os homens já não tinham mais do que uma mulher na mesma casa e o irmão estava a romper aquilo que já haviam conseguido banir - a bigamia. Ele dizia que não era problema dele e que não podia mandar no irmão porque o irmão era mais velho do que ele, sendo que a liderança cabe ao irmão mais velho e ponto final.
 

Enfim, aquela família, arrasava-me. Mas depois, eles eram todos tão educados comigo, tão cheios de "salamalecos" como diria a minha falecida avó, que eu acabava não resistindo e sempre embrenhada nos seus problemas. 

E mais uma vez estávamos perante uma situação delicada e difícil, com grandes hipóteses de ser a derradeira. O ponto final de tudo. Eu não queria ouvi-lo mais, nem vê-lo. Havia de me aguentar sozinha e ele que fosse à vida dele e fizesse o que entendesse. Que crescesse e tomasse juízo, que já tinha idade para isso. 

Telefonou-me três vezes, num curto espaço de tempo em que fui drástica e lhe disse que não me telefonasse mais, porque não queria saber mais dele. No último telefonema disse-lhe, inclusivamente, que me sentia muito mal, física e emocionalmente e que, se ele continuasse a telefonar-me e a pressionar-me, não ia aguentar e ia morrer, de tão mal que me sentia. Ele respondeu que se eu não o ajudasse, sem mim e sem dinheiro, quem ia morrer era ele. Pior. Não quis ouvir mais nada e desliguei o telefone aos gritos, dizendo-lhe que não atenderia mais telefonemas. Precisava de me libertar de toda aquela confusão e não queria mais nada com ele. 

E assim ficámos. Mal, um e outro. Pronto, agora eu tinha a certeza de que ele não voltaria a telefonar, até porque o seu lado orgulhoso não iria permitir. Estava encerrado mais um capítulo da minha vida. 

Estaria mesmo?... 

Apesar da minha decisão eu continuava mal. Continuava a culpá-lo e achava que merecia assumir as consequências dos seus actos. Era assim que eu pensava, mas no fundo também me sentia culpada pela situação que ele agora enfrentava. Que se virasse sozinho, sim, mas não sem que isso me afectasse, porque me doía e muito. 

As horas foram passando, os acontecimentos ganhando distância, mas as dúvidas persistiam com toda a força, ganhando terreno e quanto mais eu tentava distanciar-me, mais a minha consciência trabalhava. 

Passou um dia e uma noite. Dormi mal, num enorme desassossego. Tudo em mim estava desequilibrado e não tinha paz. Que fazer? Mas agora também não havia nada a fazer. Não tinha como falar com ele, porque estava sem telemóvel. Só se ele me telefonasse, o que não ia acontecer, pois eu tinha sido bem clara e ele não o faria, de certeza. Devia estar tão chateado comigo como eu com ele. Não havia volta a dar ao assunto. E eu cada vez pior. Até febre tive. 

Decidi então falar com a família. Não queria expor-me a um ridículo daqueles, mas tinha que ser. Era preciso. Primeiro, porque precisava de desabafar; segundo, porque precisava de ouvir a opinião dos outros. Arriscava-me a ser crucificada por qualquer das situações, mas precisava desabafar. Toda a gente na minha família gostava muito dele, por isso ele falava aos amigos e à família no Paquistão, da família dele na Europa e os amigos tinham uma certa inveja. Mas, perante esta situação, não fazia ideia nenhuma da reacção da minha família.
 

Decidi falar. Reuni conselho de família e deixei sair tudo o que me ia na alma. E com grande espanto meu, todos ficaram condoídos pela situação desfavorável do Riaz e todos mostraram o seu desagrado pela minha acção negligente. Fiquei perplexa. Achei que ia levar bronca, sermão e missa cantada, enfim, mas as coisas tomaram um rumo muito diferente, talvez por eu estar como estava. Coitado do rapaz, que pouca sorte, ele não faz mal a ninguém, é uma boa pessoa, não pode ficar assim. Onde estará agora, que necessidades estará a passar, é preciso dinheiro(?), mandamos-lhe o que for preciso, também não é nenhuma fortuna, isso é o menos, o que importa é trazê-lo são e salvo. Deus!... 

Mandar-lhe dinheiro não era problema. Eu sabia como fazê-lo e também sabia que rapidamente ele o reembolsaria. Quantas vezes o acompanhei, aquando das remessas que despachava para os quatro cantos do mundo! E como eu não podia sair de casa, uma das minhas irmãs prontificou-se a tratar do assunto, segundo as minhas indicações e rapidamente o dinheiro estava disponível para ele o levantar em Itália, na cidade onde estava. 

A minha alma estava leve. O primeiro passo tinha sido dado. Desabafei, partilhei o meu problema e a minha angústia com a família - as pessoas certas - e Deus (Alá) estava presente. Por dentro, as lágrimas lavavam a minha agonia. A tensão começava a baixar. Os caminhos abriam-se. Com isto, a minha tolerância de zero, carregou baterias e ficou novamente a cem por cento. A palavra "perdão" soava, soava e como sabia bem! "Volta, estás perdoado". Volta... mas como?... 

Um problema tinha sido ultrapassado, logo outro se contrapunha. As coisas nunca mais tinham concerto. Tudo não passava duma fantasia. O que começava em forma de sonho, acabava em pesadelo. Como é que eu ia agora comunicar com ele? Era impossível! Não tinha como. Ele não me ia telefonar mais, pois tinha boas razões para isso. Eu mesma lhe tinha dito que não atenderia mais chamadas e não queria mais nada com ele. Era possível que ele me voltasse a ligar, sim, mas não naqueles tempos mais próximos. Se o voltasse a fazer, levaria umas quantas semanas ou meses, com certeza. Talvez três, seis meses, quem sabe. De repente, nunca mais. Tudo era possível. 

Ah, mas eu precisava! Deus/Alá, tinha que me ajudar. Não tinha contactos dele. Todos os amigos a quem poderia recorrer não me serviam para nada nesta altura do campeonato. Ele estava incontactável, vagueando sabe Deus por onde e não ia dar notícias, pois era certo que estava muito chateado comigo e tão desiludido que não me ia querer ver mais. Era para esquecer. 

E agora... Fazer o quê? Só um milagre... mas o impossível tinha que acontecer. 

O dia avançava e eu pensava, pensava, sem sucesso. Dava voltas à minha cabeça para encontrar uma solução. Depois disto tudo, as coisas não podiam ficar assim. Tinha que haver uma saída. E mais uma noite o Riaz ia dormir sabia-se lá onde e comer sabia-se lá o quê. Era duro pensar nisso. Castiguei-o demasiado e agora sofria as consequências. 

E ainda havia o Henrique que, por minha causa, estava em casa do pai e muito bem. Mas eu sabia que era importante ele ir para a minha casa, porque sempre que tinha que ficar sem mim e fora da sua base, ficava desconfortável e ansioso.
 

A noite caiu. Estava a aproximar-se a hora de me deitar. Fui à varanda ver o tempo. Estava uma excelente noite, com uma temperatura muito agradável. O céu limpo e estrelado. Foi então que me lembrei da minha arma secreta: a telepatia. Era a única coisa que restava. Não havia mesmo nada em concreto que pudesse ser feito. E já me tinha sido útil em tantas situações, já tinha tido tantas provas de que aquilo resultava, como não me tinha lembrado antes? 

E afinal era tão fácil, era só vê-lo dirigir-se a um telefone público e discar o meu número, apenas e só e isso. E comecei a enviar essa mensagem em ondas pensamento, visualizando-o a dirigir-se para uma cabine telefónica, envolto em luz. Pedi às estrelas que levassem a minha mensagem e ele a aceitasse incondicionalmente, sem se questionar. Que o fizesse sem motivo, sem razão. Pedi ao universo que nos envolvesse no mesmo plano divino e através do espaço conduzisse a minha missiva à sua mente ou ao seu coração. Ele tinha que me telefonar, tinha que vir ao meu encontro. E via-o dirigir-se ao telefone. Firmei esse pensamento com todas as forças do meu ser, até não ter mais dúvidas de que o recado seria entregue e segurei essa energia o quanto me era humanamente possível.  

A minha mente ganhou a dimensão do espaço e a força do tempo. Eu sabia que estava a chegar e a atingir o pensamento dele. Eu sabia e via. Identificando-me com o universo, fiz da minha energia luz, que brilhou e ficou poderosa, podendo naquele momento tudo, tudo, porque a minha alma estava ali por inteiro, na sua totalidade e naquele momento que era eterno, estava com o infinito e o meu espírito, em plena liberdade, num transe de delírio absoluto. 

Foi lindo. Foi divinamente belo, transcendente e único. 

Agora eu sabia que ele ia telefonar. Estava tranquila, emocionada e feliz. No outro dia acordei bem e consciente do que tinha acontecido na noite anterior. Estava a mensagem dada. 

Depois da minha higiene diária tomei o pequeno almoço, como habitualmente e comecei a arrumar o quarto. Por volta das dez horas da manhã o telemóvel tocou. Nem olhei. Sabia que era ele e corri. Sem perder tempo, pois talvez fosse a sua última moeda, gritei "Riaz, escreve". Ele percebeu imediatamente o que aquilo queria dizer e respondeu "espera". Percebi que estava à procura de papel e algo para anotar. Voltou ao telefone e disse "fala". Ditei o número do código e disse "vai rápido". Não era necessário ir rápido, porque agora estava tudo resolvido. Mas ele entendia. 

Agora sim, em algumas horas ele estaria de volta são e salvo. A serenidade voltava. Outras batalhas surgiriam, mas aquela estava ganha. 

Mais tarde, contou como aquilo tinha acontecido. Depois da segunda noite dormindo num banco da estação de comboio, vendo os comboios chegar e partir e as pessoas para lá e para cá e entre um café e um cigarro que já tinha pedido a alguém, o dia amanheceu e o sol despontou. Mais um dia em que não sabia o que fazer com a vida. Com a moeda que tinha no bolso poderia beber um último café. Mas se bebesse o café, não teria mais cigarros. Não sabendo por qual das coisas se decidir, pois ambas lhe eram necessárias, dadas as circunstâncias, bem mais do que comida, olhou à sua volta e prestou atenção num rapaz que caminhava em direcção a um telefone público. Depois viu-o começar a falar e pelo jeito, devia ser com a mulher ou namorada. Completamente perdido, levantou-se e sem pensar, dirigiu-se ao outro telefone. Pegou na moeda que não sabia se seria para café ou cigarros e decidiu metê-la na ranhura da máquina. Sem convicção de nada, limitou-se a marcar o número para apenas ouvir uma vez mais e uma última vez, talvez, a minha voz, pois não havia mais nada para dizer. E de repente, a solução estava na sua última moeda que lhe rendeu, mais do que o café e os cigarros, refeição e transporte de regresso. 

A vida estava de volta.