sexta-feira, 20 de novembro de 2020

A aliança perdida - 88

António estava viúvo há um ano. Viúvo e sozinho, porque os filhos há muito eram independentes. Tinha sessenta e cinco anos e um casamento de toda uma vida que terminara numa tragédia fatal para a mulher, por conta de um acidente de viação em que teve morte imediata.

Passado um ano conheceu alguém por quem dizia estar apaixonado e completamente arrebatado. Paixão é assim mesmo. Cega de todo. E as coisas encaminhavam-se lindamente, segundo ele, que estava sempre a elogiar o seu novo amor, que no momento presente era tudo para ele e não queria perder o que a vida lhe estava a oferecer porque ela era muito compreensiva e lhe dava todo o apoio que precisava.

E as coisas estavam a caminhar lindamente, com ele feliz de toda a maneira, fazendo planos para ficarem juntos, planeando viagens e outras coisas mais, até ao dia em que aconteceu um imprevisto. Perdeu a aliança de casamento. Foi apenas isto que ele me disse. Não faço ideia se foi a dele, a da falecida, só sei que foi apenas uma. E sinceramente não fiz perguntas porque não tinha interesse para mim. Só percebi que tinha perdido a aliança e estava muito chateado por isso. Mas não tinha perdido a aliança do dedo. Tinha perdido porque a tinha guardado num sítio e tendo ido à procura dela por qualquer razão, não a encontrou no sítio onde a tinha guardado. Continuei sem ligar importância ao assunto porque para mim não tinha o menor interesse. Ele quis desabafar, tudo bem. Mas eu não tinha nada a ver com o problema dele ter perdido a aliança. E se calhar guardou noutro sítio, ou então ela estava lá e ele não a viu. De facto o assunto não me interessava.

Mas nos dias que se seguiram, o seu ânimo fora-se. E se já de si ele era uma pessoa stressada, agora estava pior do que nunca, todo baralhado, todo desconcertado, ao mesmo tempo que fazia os possíveis para não dar muito nas vistas. Em vão. É que o problema não se resumia à perda ou desaparecimento da aliança. Como ele era uma pessoa excepcionalmente supersticiosa, tinha deduzido que o facto de ter perdido a aliança significava que a falecida mulher não queria que o romance fosse para a frente. Pois é. Por isso estava duplamente abatido. Mas se a cabeça dele lhe dizia isso, quem era eu para o contradizer? Para mim era absolutamente irrelevante. Era uma decisão dele, unicamente dele e de mais ninguém. O facto é que deixou de se comunicar com a sua nova paixão, dizendo-lhe que andava sem tempo e a tratar de assuntos. Pronto, cada um é como é.

Uma semana depois as coisas levaram uma reviravolta. É que, inesperadamente, António encontra a aliança. Nem estava mais à procura dela, mas ao abrir uma gaveta para tirar de lá qualquer coisa que precisava, surpreendentemente, a aliança foi parar às suas mãos. Como estamos a falar de uma pessoa extremamente supersticiosa, logo a cabeça dele deu uma volta de cento e oitenta graus ao assunto. Primeiro porque tinha sido um “milagre” ter encontrado a aliança, uma vez que já tinha procurado ali e não a tinha encontrado. Segundo porque isso significava que afinal a falecida não estava contra a sua intenção de começar uma nova vida com outra pessoa. Estava finalmente aprovado.

Só que desta vez, contrariamente ao que vinha acontecendo até aqui, eu interiorizei o assunto e pela primeira vez parei para lhe dar atenção. Não é que estivesse interessada na vida dele nem nas decisões que tomava. Mas sim porque, de acordo com o que ele me contava, eu via o filme completamente ao contrário. Se havia alguma ilação a tirar daquela história de perder e achar a aliança, a minha intuição dizia-me que a história era precisamente o inverso. Mas nem me dei ao trabalho de comentar nada. Era a vida dele e a verdade dele é que contava, da mesma maneira que se fosse comigo o que contava era o que eu pensava com a minha própria cabeça. Se há coisa que preservo e respeito é a liberdade. A minha e a dos outros. Portanto, não comentei nada, mas realmente, se aquilo tinha um significado não era o que ele atribuia. Não era mesmo.

E António não se fez esperar. Com este episódio que ele achava resolvido, correu para os braços da sua amada e os dois se aninharam como puderam, começando assim uma vida juntos.

E porque é que a minha visão das coisas era diferente? Ele perdeu a aliança assim que começou a andar com a outra. Naturalmente por pura distracção ao guardá-la nunca mais se lembrou do sítio exacto onde a guardou. E porquê? Porque já estava muito focado na sua nova vida, pondo em segundo lugar a falecida, o que nada tem de estranho. A vida anda. O que é que isto significa? Esta perda, voluntária ou involuntariamente, ajusta-se na perfeição ao começo de vida nova, pondo em segundo plano a anterior. Mas esse pormenor a ele escapa-lhe por completo, porque a constatação da perda da aliança fá-lo tomar consciência de que a sua vida anterior já pertence ao passado e não tem mais volta. Mas são muitos anos. E um ano é talvez muito pouco tempo para digerir esta separação definitiva, porque ainda por cima parece que tinham uma óptima relação conjugal. Em todo o caso “a carne é fraca”, isto é apenas uma forma de dizer, e na primeira oportunidade ele já se envolve a todo o vapor com outra. Perder a aliança não é senão uma tomada de consciência de que está a ser muito apressado em pôr outra já no lugar da companheira de tantos anos. É a consciência a falar. A insegurança que surge. O medo de estar a “trair” inconscientemente a memória da falecida. É por isso que ele deduz que ela não quer e portanto, por muito que lhe custe, afasta-se.

A minha visão das coisas, uma vez que não estou envolvida emocionalmente, é precisamente o contrário. Perder a aliança é sinal de que o que ela representa já está no passado, anunciando assim uma nova etapa da vida. Só isso. Não há culpas para ninguém. É a vida a seguir o seu rumo.

Encontrar a aliança é para ele um sinal positivo, ou seja, afinal não há o que temer, não há culpas, a falecida aprova. Mentira. Mais uma vez, na minha óptica, ele está errado. Se encontra a aliança é porque vai voltar para o antigo registo. Porquê? Isso eu já não sei. Não sou bruxa! E para ele é o contrário, mas para mim não faz o menor sentido. Se é para irmos por um caminho de superstição, de intuição, ou seja lá do que for, então, se a aliança apareceu, todo o novo processo vai retroceder e voltar à memória da falecida. Mas esta é a minha visão e quem sou eu para estar a dar pareceres à vida dos outros!?

O facto é que ao fim de sessenta dias tudo se desmorona e António estava de novo sozinho, o que comprovou apenas que a tese dele estava errada, ao contrário da minha que, felizmente ou infelizmente, estava certíssima.


quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A Isilda - 87


Era uma terça-feira, dia da minha aula de Meditação. Entrei nas instalações seguida de algumas pessoas que aguardavam, aproveitando o tempo para um curto convívio antes de começar a aula. Entrei no espaço que dá acesso ao jardim de Inverno e estavam três colegas sentadas num banco, aguardando a minha chegada. Mas uma delas não fazia parte da aula. Cumprimentei todos e foi então que a Isilda, que por qualquer razão não tinha nada naquela hora, de repente, me perguntou se podia assistir à aula ao que logo lhe respondi que sim, claro, sem problema algum. Ela agradeceu e demos entrada no anfiteatro, enquanto todos procuravam o seu lugar.

No início, quando comecei com este projecto, ou seja, quando me aventurei a iniciar as aulas de meditação na Universidade Sénior, todas as semanas me dava ao trabalho de preparar minuciosamente cada aula. Pensava em cada passo que daria. E nem por isso as coisas corriam de modo desejável. Quando acabava, sentia um peso enorme, e era uma luta de todo o tamanho com a minha preocupação de cumprir o que tinha planeado. Com o tempo fui relaxando e preparando-me cada vez menos nesse sentido, até que cheguei ao ponto de não preparar absolutamente nada e então percebi que as coisas fluiam de uma maneira espantosa.

Aprendi que quanto menos coisas levar na cabeça, quanto menos preparação e ideias prévias, mais aberta e receptiva estou ao momento. A partir daí, é quando chego, olho e vejo o número de pessoas e as pessoas presentes, o ambiente e outras informações subjectivas e precisas desse exacto momento que chegam até mim nessa hora, que me conduzem e me dizem que caminho percorrer. Se me perguntar a mim mesma ou alguém me perguntar, o que é que vamos fazer hoje? Não tenho a menor ideia. Apenas espero, tal qual como os outros, para começar a perceber qual é o caminho.

A Isilda entrou e sentou-se mesmo na fila da frente, do meu lado direito. Como de costume deixei que todos entrassem calmamente e tenho que dar bastante tempo para que a folha das presenças corra e todos assinem e também para que se acalmem e façam cessar as conversas que às vezes já vêm de fora e nunca mais acabam. E até que tudo esteja dentro do espírito necessário leva uns minutos. É aí que começam a chegar até mim as primeiras impressões. É como se uma voz vinda não sei de onde me começasse a dizer o que devo fazer. É como se uma porta ou uma janela se abrisse e eu começasse a ver as coisas. É um momento decisivo, quase mágico.

E estava eu nesse ponto, quando esbarro o meu olhar na Isilda que vinha pela primeira vez assistir a uma aula comigo. A Isilda é uma pessoa “especial”. Todos temos problemas de toda a ordem, mas a Isilda é das pessoas que consegue ultrapassar os outros nesse aspecto. Em face disso, tem problemas de saúde que não são poucos. Toma imensos comprimidos e tem excesso de peso. Uma vida muito complicada. Desde o primeiro momento em que pisou os pés na nossa universidade percebi que era uma pessoa que precisava de um acompanhamento e um cuidado especial e mais atento.

E estando naquele preciso momento em que as vias se abrem e começo a receber indicações vindas do universo, digamos, para dar início aos trabalhos, olho para a Isilda e não havia o que hesitar. Se ela estava ali é porque ela era o motivo daquele dia. E comecei a falar, dando início a mais uma aula, dizendo que naquele dia teríamos uma pessoal especial que iria partilhar a sua experiência de vida e nós estaríamos abertos a ouvir e a estar atentos. Expliquei que era alguém com problemas delicados que necessitava de ser ouvida e o facto de estar ali hoje connosco era uma oportunidade tanto para ela como para nós. É claro que ela nem sonhava que essa pessoa era ela porque, muito provavelmente, se soubesse, nem lá teria ido. Mas as coisas são como são. Ela conscientemente não teria ido, mas o seu inconsciente fê-lo por ela. Estava numa fase de um culminar de problemas e a vida dirigiu os seus passos. O facto de ter ido ali, com ou sem propósito não importa nada. É para isso que existe o inconsciente, para se sobrepor quando já perdemos o controlo do consciente.

E quando acabei de explicar tudo acerca dessa pessoa e o motivo por que a íamos ouvir, percebi que havia uma grande expectativa no ar. Quem seria essa pessoa?!

Estico a mão na direcção da Isilda ao mesmo tempo que pronuncio o seu nome. “Isilda, vem aqui, aqui ao pé de mim”… e a Isilda sem poder imaginar que se tratava dela, completamente apanhada de surpresa, reagiu de modo assustado. Ai, eu… disse ela. Levou as mãos à cabeça, baixando-a, num misto de timidez e de grande embaraço. Isilda, continuei, vem cá, continuei eu, sem lhe dar tempo a desistir, ao que ela manifestamente atormentada se levantou vindo para o pé de mim.

E com todos olhando para a Isilda, comecei a falar um pouco por ela, basicamente o que já tinha dito, que ela tinha uma vida realmente com imensas dificuldades, um trajecto complicado e que ela própria nos daria o seu testemunho. Perante isto, a Isilda respirou fundo e começou a falar com todos os olhares e toda a atenção concentrada na sua pessoa.

E assim que começou a falar logo começou a ficar emocionada, dizendo que não sabia que eu a ia chamar, que não tínhamos combinado nada, ao contrário do que alguns poderiam estar a pensar. Começou a falar dos seus problemas, que alguns sabiam mas a maioria não fazia ideia. E à medida que ela ia falando, algumas pessoas se emocionaram tanto quanto ela, e sempre fazendo notar que não fazia a menor ideia que iria estar ali a falar dela, a expor-se perante todos, que realmente não tínhamos falado nada, etc… e os seus problemas continuavam a ser revelados para grande espanto de alguns, para outros nem tanto.

Como já referi, nesta altura já tinha descartado a preparação prévia das aulas. Nesta altura já tinha aprendido a deixar fluir e a ficar apenas atenta às primeiras impressões, aquando da minha chegada, recebendo a informação proveniente da energia do grupo das pessoas presentes, daquilo que elas inconscientemente me transmitem na altura. Apenas indo ao encontro daquilo que é pedido, nada mais. Não há nenhum mistério, nenhum segredo. É assim que as aulas correm. É só estar atenta às percepções que nos chegam.

Assim foi. Quando a Isilda me pediu para assistir à aula, como qualquer outro professor teria feito, limitei-me a dizer que sim. Mas aí ainda não tinha consciência de que ela seria o instrumento daquela aula. À medida que fui entrando e caminhando por entre as pessoas que estavam presentes, a energia da Isilda começou a ser mais forte, começou a ganhar força e quando chegou o momento certo de dar início e começar a falar, vi que ela estava ali mesmo na frente e percebi que ela, sem ter essa consciência, tinha ido ali para preencher aquela aula. Tinha captado a mensagem e a direcção da aula estava traçada. Perceber isso é uma sensação muito boa. É a confirmação de que estamos a fazer exactamente o nosso trabalho como tem que ser feito.

E a Isilda deixou sair tudo o que lhe estava na alma contido, aprisionado. Tudo o que precisava de sair. Precisava apenas que lhe dessem um pouco de atenção para se sentir apoiada, acarinha amada. Para se sentir gente. As lágrimas caiam-lhe à medida que falava em coisas mais dolorosas, mas também ia ficando mais aliviada. Aquilo estava a fazer-lhe um bem tão grande que ela tinha necessidade de a pouco e pouco fazer lembrar que não sabia e nós não tínhamos combinado nada, o que era verdade absoluta. E que ela só tinha ido ali à última hora porque não tinha a aula dela por falta do professor. E esse pormenor para ela era uma coisa espantosa. Ela percebia que aquilo parecia que tinha sido tudo combinado. Ela percebia isso. Só que na verdade não tinha. E esse pequeno pormenor, da coincidência, aos olhos dela, da alma dela, era uma coisa um pouco para além do “normal”. Ela percebia com efeito que a mão do destino estava presente e que o universo, através da minha pessoa, se tinha encarregado de lhe trazer a ajuda que tanto precisava. 

E o relato dela continuava dizendo que nesse último fim-de-semana esteve tão mal que pensou em suicídio. Estava na cozinha com uma grande faca na mão quando pensou que a podia espetar nela para acabar com a vida. Só que o marido, percebendo a gravidade da situação, pegou nela e a levou para irem passar a noite fora de casa. E então ela se acalmou e a coisa passou. Por isso precisava de falar e desabafar.

Perante este episódio a sala toda ficou consternada. O silêncio imperava o anfiteatro. Ninguém sabia o que dizer.

Não existem acasos. Existe um plano em prol do qual o universo trabalha.


terça-feira, 23 de junho de 2020

Adriana - 86



“O mundo quadrimensional convoca a humanidade para ser livre, convida-a para herdar a Terra e os céus, para possuir todas as coisas e para compreendê-las por meio do amor e da unidade” A Quarta Dimensão.
(Vera Alder)


Eu estava de passagem em casa da minha irmã, quando soube que Rita e Nuno iam lá almoçar. Era a oportunidade de a conhecer, porque nunca nos tínhamos encontrado. Além disso estava grávida, o que era uma alegria para ambas as famílias. E assim o jovem casal apareceu.

Feitas as devidas as apresentações achei que era uma garota simples e educada, simpática e assessível. E a única coisa que eu sabia dela é que por ter sido secretária do sogro, teve assim a oportunidade de conhecer o Nuno. A vida faz o trabalho que tem que fazer. O universo abre-nos o caminho, dá-nos até escolhas, mas a responsabilidade é nossa. Os acordos e as missões são para serem cumpridas.

Muitas vezes penso no meu casamento e no facto de ao fim de doze aos me ter divorciado, porquê(?), porque é que não deu certo, porque é que não continuámos, ect…, etc…, etc… e chego sempre à mesma conclusão. O que tinha que ser feito, foi feito. O resto, à luz dos registos akáshicos, não é relevante. A missão era: une-te àquele indivíduo e tem um filho com ele. Só com ele. Despois faz o que entenderes. E foi o que aconteceu. Quando penso no que éramos, tão diferentes um do outro nalgumas coisas, noutras nem tanto, mas diferentes. Era um verdadeiro choque, um enorme desafio. No entanto, esse choque foi superado para que uma criança nascesse e também tivesse a sua missão. Cada um tem o seu selo especial porque é único. E às vezes não conseguimos perceber de imediato qual é o nosso papel nisto ou naquilo, mas se deixarmos o tempo passar, mais tarde é só olhar para trás para ver o desenho que ficou impresso na estrada da nossa vida e está lá tudo. Foi assim porque tinha que ser assim.

Voltando atrás, o almoço começou a decorrer num ambiente descontraído e agradável, onde se dizem piadas e se ri muito. E já quase no fim do almoço, Nuno chega-se bem juntinho à namorada e segreda-lhe qualquer coisa que termina assim “… mãe dos meus filhos” a que ela correspondeu com um sorriso de conivência, de concordância e que ao mesmo tempo confirmava a sua felicidade.

Achei curioso ele tê-la definido como “a mãe dos filhos dele” em vez de tratá-la por “meu amor”, “minha querida” ou de outra forma qualquer carinhosa dentro deste género. Mas não foi assim. E ela não se importou nada, bem pelo contrário, ficou até vaidosa, digamos, por ele a ter tratado daquele jeito. Pois, é que Rita tinha uma missão. Ela não sabia, nem ela nem ninguém e muito menos eu, mas isso não interessa. Rita estava apenas cumprindo a missão a que estava destinada.

E esta cena que para todos passou completamente despercebida, para mim não passou. Foi um alerta, daqueles alertas inexplicáveis, mas aos quais já me habituei e que mais tarde se esclarecem, porque tudo tem a sua razão de ser.

E um pouco mais tarde, conversa para lá, conversa para cá, fiquei a saber que já sabiam o sexo da criança, uma menina e até o nome já tinham. Perguntei e responderam “Adriana”. Adriana(!)… um nome não muito vulgar, mas que achei bonito e que soava bem. Pareceu-me uma escolha interessante e apeteceu-me saber porque tinham escolhido aquele nome, mas achei que não faria muito sentido e decidi não falar. Em todo o caso, o meu sensor ou a minha intuição novamente deu sinal sem que, no entanto, tivesse a mais pequena ideia do porquê e portanto descartava e passava à frente, ou seja, ignorava por completo.

Acabado o almoço, e eles tiveram que se retirar logo de seguida, ficamos nós, os “adultos” ou os “velhos” por ali, no relaxe, a curtir a existência, sem nenhuma preocupação em especial, enquanto as conversas rolavam também descontraidamente até que, de repente, minha irmã salientou o facto do companheiro estar preocupado ou apreensivo pelo facto de ter uma neta e não um neto. Ingenuamente, como é meu hábito, porque estou sempre alheia a tudo - sendo que é nesse alheamento que encontro os pontos que mais ninguém encontra -, ingenuamente, perguntei porquê. Ah, porque como ele teve dois rapazes, acha que não vai saber lidar com uma menina. Sorri e pensei, ele há-de habituar-se. Será uma excelente aprendizagem.

O tempo passou, Adriana nasceu, correu tudo às mil maravilhas e como é natural, Adriana virou o centro do universo familiar.

Há pouco tempo, estando num outro grupo familiar, alguém falou que no Domingo ia almoçar com o Fernando e a Guida, minha irmã, que vivem juntos há uns bons anos. Fernando ficou viúvo duas vezes, da mãe dos filhos e da segunda mulher. Da terceira separou-se e veio uma quarta que é precisamente a actual, minha irmã. E o casamento funciona muito bem. Os rapazes ficaram sem a mãe muito pequenos e depois foram criados com a madrasta e foi outro choque quando ficaram sem ela. Isto tudo já eu sabia, mas o que eu não sabia é que a primeira mulher, a mãe dos filhos, se chamava Adriana. E a conversa continuou: é por isso que a bebé se chama Adriana. Adriana? Isso eu não sabia.

A missão da Rita estava cumprida com todo o rigor. Adriana voltava para continuar o amor que uma vida curta lhe tinha roubado cedo demais, o amor incondicional pelos filhos. A lei da reencarnação manifestava-se assim, agora, através de Rita, a “mãe dos filhos” de Nuno, conforme ele mesmo a tinha denominado.

Era essa a razão pela qual o meu sensor tinha dado o alerta. O puzzle acabava de fechar.


domingo, 26 de abril de 2020

O poder do pensamento - 85



Há mais de vinte anos atrás fui a um oftalmologista para retirar um pequeníssimo sinal que me apareceu na pálpebra inferior do olho esquerdo, mais exactamente entre as pestanas, o que parecia o encravamento de uma delas ou mais, e comecei a embirrar com aquilo. Fui ao médico que me confirmou que não era nada maligno mas se queria tirar, tirava-se e resolvia-se o problema. Assim fiz. O sinal foi retirado, contudo, após a cicatrização a coisa não melhorou porque apenas tomou outra forma, ou seja, no mesmo sítio, ficou uma marca equivalente a um sinal, diferente, mas um sinal.

Dei tempo para que aquilo desaparecesse, o que não aconteceu, pelo contrário, desenvolveu-se ainda mais. É certo que estou a falar de uma coisa minúscula, mas por ser no sítio em que era, incomodava-me do ponto de vista estético. Incomodava-me a mim, que sabia que o tinha e o via com espelho de aumentar, porque aos outros passava completamente despercebido. A questão é que não tinha mesmo valido a pena ter mexido naquilo. O resultado estava à vista. E agora não me arriscava a voltar a tirar. Portanto, a solução era esquecer. Mas isso era fácil de dizer. A questão é que eu estava sempre a ver e a fazer as minhas próprias críticas e havia alturas em que me chateava mais do que outras.

O tempo foi passando e andei anos com isto. A maquilhagem era sempre muito cautelosa para disfarçar, porque ainda que os outros não reparassem eu sabia que o tinha e incomoda-me. Em todo o caso, durante muito tempo aprendi a viver assim e a maior parte do tempo até me esquecia.

Até que chegou um dia em que reparei que o sinal tinha tomado uma forma um pouco diferente, porque estava ligeiramente maior. E novamente comecei a dar-lhe mais atenção e a embirrar ainda mais com aquilo. E andava constantemente a olhar no espelho o aspecto da coisa, que não gostava nada de ver. Estava na hora de voltar a pensar em tirar. A questão é que tinha que ser alguém confiável e que me resolvesse o problema de vez e bem, para não acontecer o mesmo. E andei uma série de tempo com o assunto em mente para resolver da melhor maneira possível. Pensei em vários médicos, mas estava sempre com um certo receio. E acabei por deixar andar, à espera que a solução caísse do céu. Mas, entretanto, chegou um dia em que havia um evento para o qual tinha que me arranjar um pouco melhor do que o habitual, o  que também exigia uma maquilhagem perfeita. Como aquilo estava maior e um pouco mais em evidência, foi mais difícil, ainda assim, consegui disfarçar muito bem o indesejado sinal.

Porém, acabada a festa e de regresso a casa, chegou a noite e a hora de retirar a maquilhagem e limpar o rosto. Findo este processo, frente ao espelho, reparo que o sinal estava horrível, muito feio, alterando completamente a minha fisionomia, porque tinha ganho uma cor que agora não queria sair de maneira nenhuma e eu já não podia mexer mais para não irritar a pele. Olhando bem para mim, no espelho, decidi que no dia seguinte iria tomar as providências necessárias para encontrar o sítio certo para uma vez mais o tirar. Agora seria definitivo. A minha paciência com aquilo tinha acabado de vez.

No dia seguinte quando me levantei e fui tomar duche, logo me deparei com o chato do sinal e nem me apetecia olhar para o espelho. Precisava de sair para fazer umas compras de supermercado e tratar de mais outras coisas e depois concentrar-me-ía naquele assunto. Pus os óculos de sol para não ter que olhar para aquela coisa e fui à minha vida. Na estrada nacional, passando em frente do meu oculista, decidi parar e perguntar se por acaso não tinham um oftalmologista que me resolvesse o problema.  Responderam que não, mas que ali um pouco mais adiante, havia uma clínica de dermatologia onde tiravam sinais e que fariam aquilo na perfeição. Senti convicção por parte deles na informação que me estavam a sugerir e decidi que o faria. Porém, àquela hora não estava lá ninguém, pelo teria que esperar para o dia seguinte. No dia seguinte livrar-me-ía daquilo de uma vez por todas, estava decidido.

Cheguei a casa sentindo-me aliviada pela tomada de decisão, sendo que a recomendação me parecia bastante segura e ainda por cima à porta de casa, pelo que no dia seguinte, logo de manhã, iria lá direitinha. Agora estava decidido, porque eu não queria mais o meu olho assim. Aquilo tinha que desaparecer. Queria maquilhar-me à vontade ou não me maquilhar, mas não ter que me preocupar constantemente e diariamente com aquela coisa. Há anos que me vinha aborrecendo demais por uma coisa tão insignificante! Estava na hora. Olhei fixamente no espelho e visualizei o meu rosto livre do sinal. Sem dúvida, no dia seguinte ele desapareceria como que por magia. Já era!

E o dia seguinte chegou. Acordei e logo me lembrei do que me tinha proposto fazer. Levantei-me e tranquilamente fui para a casa de banho para a minha higiene diária. E mais uma vez olho-me no espelho para ver o aspecto do sinal. Surpresa das surpresas, o sinal não estava lá. Fui para o espelho de aumentar e nem sinal dele. Olhei, olhei demoradamente, mas o sinal tinha desaparecido como que por magia. Não, não havia mais sinal. A pele estava lisa e sem marca. Era impressionante! O inusitado é que não desapareceu num dia qualquer. Desapareceu exactamente quando me propus, quando me determinei a tirá-lo. E uma vez mais constactei a força e o poder do pensamento, porque foi isso mesmo que aconteceu. O poder do pensamento é uma coisa maravilhosa que, infelizmente, continuamos a ignorar.

E já não precisava mais de ir à clínica. Estava livre daquilo. Mas sobretudo, estava maravilhada por uma vez mais poder admirar o quanto pode a nossa mente. A força que está em nós contida é como um diamante em bruto. Temos tantas capacidades que estão fechadas, bloqueadas, à espera apenas de uma oportunidade para virem à tona e se fazerem ouvir. É fascinante, poder pensar que não somos só isto que vemos ao espelho, mas somos muito, muito mais. Não somos deuses, mas sem dúvida temos o poder que conseguirmos e quisermos alcançar. Ele só está à espera de uma oportunidade nossa. E essa oportunidade que um dia tem que chegar é, nem mais nem menos, o poder do pensamento.


sexta-feira, 13 de março de 2020

Aqui não há nada de errado que você possa fazer. Aqui você é amado infinitamente… - 84



Esta maravilhosa frase é de um livro que li há um tempo, de alguém do sexo masculino que viveu uma experiência de quase morte (EQM), tendo sobrevivido, e com a qual aprendeu a ver e a valorizar a vida de modo diferente. É o que sempre acontece nestes casos. E por isso decidiu escrever um livro para partilhar esta bonita e enriquecedora experiência.

Resumindo, ele entra em estado de coma e segundo os médicos, o seu estado é grave, não dando assim muita esperança à família da sua recuperação.

Muitas pessoas entram em estado de coma sem que isso implique a morte. Às vezes o estado de come até precisa de ser induzido. Neste caso particular ele entra em estado de coma e contra todas as previsões, as mais pessimistas, não morre. Consegue recuperar-se. O inusitado é que não perde a totalidade da consciência, o que lhe permite lembrar-se da “viagem” que fez enquanto aparentemente ausente, em estado de coma. E quando volta à vida, isto é, quando se recupera, tem uma bonita história para contar.

Não vou contar a história com todos os detalhes. Vou limitar-me a abreviar e concentrar-me apenas naquilo que no momento me interessa.

Então, a dada altura da sua viagem pelo inconsciente ele chega a um lugar muito bonito. Um jardim cheio de flores maravilhosas e uma atmosfera surreal, onde se sente muita paz. Um lugar belíssimo, sem igual, onde apetece entrar para não mais sair. E mesmo à entrada desse lugar tão especial aparece uma linda menina, muito jovem e de uma beleza extraordinária, que o recebe com um sorriso e um olhar de uma incrível doçura.

Ele não imagina onde está, mas está deliciado com o que lhe está a acontecer. Contudo, há um receio da parte dele, o receio de “manchar” aquele lugar paradisíaco. E então, lendo o pensamento dele, ela lhe transmite mentalmente a seguinte mensagem: “aqui não há nada de errado que você possa fazer… aqui você é amado infinitamente”…

Lembro-me perfeitamente que quando li isto fiquei impressionadíssima com o conteúdo desta mensagem. Com a força do amor que ela encerra. E se eu tinha alguma dúvida enquanto lia o livro, sobre a veracidade deste depoimento, aqui, foram-se todas. Dei-me por vencida.

Transportando isto para a vida real, pensei que jamais existiria este estado de alma, esta vibração, na terra, enquanto seres encarnados. Durante alguns dias andei em êxtase com esta mensagem sempre presente, porque a achei uma coisa do “outro mundo”, por assim dizer. Mas ao mesmo tempo sentia uma certa tristeza por não podermos vivenciar a autenticidade de uma amor assim. De um sentimento de tal modo nobre, puro, genuíno, elevado ao mais alto grau. Era bonito de mais para poder ser sentido e vivido aqui na terra. Mas aí, à força de tanto meditar sobre o assunto, vieram-me à lembrança passagens da vida entre mim e o meu pai, nas quais encontrei uma certa analogia. E então percebi que afinal aquele amor não era tão impossível. Tal vibração amorosa paira por entre seres encarnados, no nosso mundo, planeta terra, mas passa facilmente despercebida, porque o nosso tecido material fecha a passagem e impede tal percepção por ser uma vibração muito elevada.

“Aqui não há nada de errado que você possa fazer”. Lembro-me de que na altura pus esta frase à consideração, na minha aula de meditação na universidade sénior e a resposta consensual que tive foi que por ser o “céu” não havia nada para fazer e não havendo nada para fazer não há como errar. Fiquei devastada com a pobreza da interpretação dada. E prossegui com a segunda frase “Aqui você é amado infinitamente”, mas não houve observações. Pode ser que tenham entendido ou não. Talvez até nem tenham achado nada de tão espectacular como eu achei. Mas isto não é fácil no nosso mundo.

Numa tarde quente de verão, estávamos na casa de campo do meu pai, que tinha ido apanhar um balde inteiro cheio de figos para mim. Para mim, porque eu adoro figos e, por saber disso, ele deu-se ao trabalho de ir apanhá-los só para mim. Às tantas chegou de visita ao tio, uma prima minha, com a família toda. Ela gostava muito do meu pai. Chegaram, cumprimentámo-nos todos, abancaram e a conversa começou. E de repente ela reparou no balde cheio de figos. Tanto comentou e desejou os figos que fez com que o meu pai imediatamente lhos oferecesse sem mais delongas. E enquanto ela se desfazia em agradecimentos e toda desvairada por causa do meu pai lhe ter dado os “meus” figos, a minha irmã mais nova que estava presente, veio ter comigo indignadíssima porque o pai tinha ido apanhar os figos de propósito para mim e não para ela(!). E não se conformava, achando que eu devia exigir os meus “direitos”.

Eu compreendia o ponto de vista dela. Mas ela só via as coisas de um lado, o lado da irmã. Não conseguia ver o lado do pai. E o que eu via não era o facto de eu ter ficado sem os figos, porque os figos, a bem dizer, não eram de ninguém e nas figueiras havia muito mais para apanhar. O que eu não conseguia deixar de ver, era a felicidade do meu pai, por fazer a sobrinha feliz por tão pouco. E se isso o fazia feliz, então eu estava feliz e portanto, não havia nada de errado. Era uma questão de amor. E quando me lembrei deste episódio, percebi que aquela mensagem bonita se encaixava ali perfeitamente bem. O meu querido e amado pai só não tinha feito nada de errado para comigo porque por mim ele era amado infinitamente. E como o meu amor por ele era genuíno, a mensagem encaixava sem o menor favor. Portanto, aqui na terra é possível, sim. E quando testemunhamos uma experiência a este nível, então, somos abençoados, porque o cosmos nos permitiu tal abertura de espírito, o que infelizmente ainda não é para todos.

Outro caso é o facto de muito perto de partir desta vida, o meu pai, quase em jeito de pedido de desculpa, me confidenciou que das três casas que tinha, todas tinham ficado em nome da minha irmã mais nova e não uma para cada uma das três filhas que tinha, o que seria normal. É que ele achava que essa, a mais nova, não tinha as capacidades que nós tínhamos para enfrentar a vida. Por isso ele assim tinha decidido.

Em primeiro lugar ele não tinha que pedir desculpa. Para mim a decisão dele era soberana e eu só tinha que aceitar. Em segundo lugar eu percebia muito bem o que ele queria dizer com aquilo de ela não ter as capacidades de vingar que nós tínhamos. E por último, eu o amava demais, para questionar uma decisão dele. É mesmo tudo uma questão de amor. Mais uma vez a mensagem encaixava perfeitamente e eu tinha a particularidade de me sentir feliz, numa situação em que qualquer outra pessoa se sentiria injustiçada. Não havia julgamentos a fazer. A única coisa que para mim importava era vê-lo feliz com as decisões que tomava. Há quem não entenda isto. Há quem não deixe entrar no seu coração a energia do amor. São escolhas a fazer. Renunciar à matéria para sentir algo muito mais importante e valoroso – o amor incondicional – vale a pena.

Entretanto, a minha irmã está com problemas monetários graves, não obstante as heranças que lhe foram deixadas, não só por parte do pai. Mas esse é o karma dela. Com efeito, mesmo que o meu pai não me tivesse dado a explicação que deu, é como se eu sempre soubesse que as casas lhe pertenciam a ela, porque eram o instrumento da sua aprendizagem, ou seja, a lição que tiraria desta vida.

Outra coisa que acho extraordinário é também o facto de o meu pai não ter ficado nada incomodado com a sua decisão. Acredito que estávamos os dois na mesma sintonia e portanto não eram necessárias explicações adicionais, perante um facto bem reconhecido e assumido a nível das nossas almas.

E aqui fica a mensagem para aqueles que amo verdadeiramente:


“Aqui não há nada de errado que você possa fazer.

Aqui você é amado infinitamente”…



segunda-feira, 9 de março de 2020

Um salto "quântico" - 83



Muita gente sofre de crises de pânico. Mas quem não tem esse problema não valoriza o sofrimento que isso é, o que eu compreendo. E quem nunca teve deve pensar que não tem importância, que é uma coisa estúpida, que pode ser evitado, que se tem porque se quer, etc…, etc…, etc…

As crises de pânico são uma coisa muito séria. Deixam as pessoas completamente arrasadas e muito mais. Tem gente que não sai à rua com medo. Tem gente que se inibe de tudo o que se possa imaginar por causa do medo do pânico, que pode ser generalizado ou por uma razão específica.

Falando assim, até parece que sou especialista no assunto. E de certa forma sou, mas não pelas melhores razões, ou seja, não por ser médica, mas porque bem cedo comecei a padecer desse mal horroroso. E sei o que é ficar “inválida” por causa do pânico. E sei o que é não querer ou não conseguir sair à rua, falar com as pessoas, fazer o que se tem que fazer por causa das crises de pânico.

E não foi à falta de lutar contra isso. Quanto mais crises eu tinha mais dominada por elas eu ficava. Andei em médicos e mais médicos, medicamentos, mas o pânico persistia. Foram muitos anos a lutar contra o pânico. Foram sessões com psicólogos e de tudo eu tentei, mas o pânico dava cabo de mim.

E tinha muitos colegas, mulheres na sua maioria, mas também homens, que tinham o mesmo problema. E o que isso interferia na vida profissional, para não falar do desgaste na vida pessoal!? Era muito complicado. Era terrível. E depois eram as consequências irreversíveis que se projectavam em todas as áreas das nossas vidas. Até hoje eu penso, felizes daqueles que não compreendem. É porque nunca passaram por isso.

Uma crise de pânico derruba-nos. Deita-nos completamente por terra, às vezes no sentido literal da palavra. Depois, seguem-se uma série de sentimentos nada dignificantes como a humilhação, por exemplo, porque se fica sempre com a consciência de que se deveria ter sido capaz de ultrapassar. Mas como? O sentimento de inferioridade e de impotência, como “não valho nada, sou um zero à esquerda, não mereço o respeito nem a admiração de ninguém, só atraio a pena, pena de mim própria e do desprezo dos outros” e por aí fora. É um nunca mais acabar de intolerância e desaprovação do próprio e dos outros. E depois voltar a encarar tudo, voltar à “normalidade”… até à próxima crise, que nunca se sabe quando vem. De repente, no momento menos oportuno, na situação mais indesejável, na altura menos própria, para uma vez mais nos derrubar.

Mas eu não queria. Eu não queria aquilo. Estava farta, cansada. Eu não precisava daquilo para nada. Era isso que eu pensava e achava que era impossível livrar-me daquele problema. Mas aí é que eu estava enganada porque um dia, com efeito, livrei-me do pânico de uma vez por todas. Sem mais nem menos, porque assim o quis.

E um dia, estando eu a trabalhar, levantei-me para ir à fotocopiadora que ficava numa pequena sala dentro do espaço em que trabalhávamos. E como só havia uma, às vezes estava ocupada e tínhamos que esperar. E foi isso que aconteceu. Cheguei lá e estava uma colega a utilizar a máquina, pelo que me aproximei com os papéis que tinha na mão, aguardando que ela terminasse o que estava a fazer. De repente, sem mais nem menos, começo a sentir o corpo todo a estremecer. Mas ainda não era exactamente o meu corpo, ainda era fora do meu corpo. Porém, já estava a começar a afectar a minha cabeça, que deu imediatamente o alarme. Daí, a instalar-se a crise, eram fracções de segundo. Portanto, ao primeiro sinal de tomada de consciência, resolvi agir. E pensei, mais uma crise de pânico que está pronta para tomar conta de mim. Voltei a pensar para comigo mesma o quanto eu estava fartíssima daquilo e porquê aquilo? Era preciso pôr um fim, se é que era possível. Era urgente. E tive plena consciência de que era chegado o momento de fazê-lo. Mas como? Se as outras pessoas não conseguiam como é que eu iria conseguir?

Mas eu não era os outros. Eu era eu. Em fracções de segundo percebi que estava pronta para mudar essa situação. Era chegada a hora. Ou era naquele momento ou nunca mais seria. Senti a energia negativa subir, preencher todo o meu ser, mas ao contrário das outras vezes em que me deixava contaminar por ela e assumia que estava mal, muito mal, prestes a morrer, desta vez fiquei quieta, parada, como se nada estivesse a acontecer. Ninguém se apercebeu de nada e eu própria fiquei como que de fora, como simples espectadora do medo avassalador que inundava todo o meu ser. A única coisa que tinha em mente era “não faz mal, deixa estar, vai passar, não é nada” e coisas assim do género, enquanto permanecia imóvel e aparentemente serena e calma.

E a onda de energia fez o seu trabalho habitual, rondando a minha paciência, testando as minhas capacidades e os meus limites, enquanto eu resistia heroicamente. Eu sabia que era tudo ou nada. Eu tinha plena consciência de que tinha feito uma auto análise e tinha tomado  consciência de que seria mais forte do que o pânico. Mas não foi por magia! A chave para este confronto foi o facto de acreditar que seria capaz de não me deixar vencer pelo medo e o medo era morrer. Por isso trabalhei secretamente para não ter mais medo de morrer e aceitar o que quer que fosse.

Finalmente, não encontrando o terreno fértil como sempre encontrava, a onde de energia negativa deu-se por vencida e desistiu, partindo subitamente. Assim, tive consciência de que estava liberta. Tive consciência de que tinha controlado o meu emocional. E imediatamente a seguir à saída dessa energia negativa, uma onde de energia muito positiva dava entrada no meu ser, invadindo-me sem permissão, de um bem estar inaudito. Era uma sensação maravilhosa e de uma leveza incrível. Era o melhor presente que eu acabava de receber da vida e bem que o merecia. Agora tinha consciência de que algo muito importante e muito especial tinha acontecido e eu tinha conseguido, ou melhor, tinha conquistado.

De facto, não era pouca coisa. Aquele momento tinha sido decisivo para alterar o padrão de registo do medo. Eu estava a salvo mas não era só em relação àquele momento específico, não. Eu tinha acabado de vencer de uma vez por todas as minhas crises de pânico. Claro que o medo voltaria. Voltaria sempre, muitas vezes, porque o medo faz parte de nós. Quem não sente "medo"? Mas daí até se transformar em pânico, isso não. Isso não voltaria mais porque eu já não estava em situação de lhe dar entrada. Algo muito importante tinha mudado. Algo fundamental e decisivo.

E o que antes me parecia impossível foi resolvido num breve instante em que me permiti apenas fazer um simples salto "quântico”.


domingo, 26 de janeiro de 2020

Ananda - 82



Há uns anos atrás, numa determinada altura da minha vida em que me sentia muito sozinha, comecei a frequentar o centro Hare Krishna em Lisboa, mais precisamente junto ao Saldanha. Andava à procura de um restaurante onde se comesse comida indiana e por mero acaso ou não, encontrei aquela referência.

 

Como o sítio era bem acessível, decidi ir lá para almoçar e acabei por descobrir um lugar em plena cidade de Lisboa, diferente de tudo o que eu podia imaginar, com gente um pouco “estranha”, com rituais interessantes, com toda uma série de comportamentos e filosofias de vida intrigantes.

 

Aquilo era bom para desanuviar o meu fim de semana, já que quase sempre ficava sem o meu filho que nessa altura saía com o pai. Assim, aos domingos lá ia eu para o Hare Krishna onde passava a tarde inteira e vinha para casa já de noite, um pouco antes dele chegar. Além disso, comecei a ir lá almoçar com amigos/amigas e colegas e toda a gente que levava achava aquilo uma coisa espectacular em todos os aspectos. Adoravam a comida e adoravam o lugar. Se o tempo estivesse bom podíamos comer ao ar livre, se preferíssemos comíamos lá dentro.

 

Com isto tornei-me assídua e íntima de todo o pessoal interno, os devotos e iniciados de Krisnha. O cozinheiro era um jovem indiano que cozinhava maravilhosamente bem. Aquilo era mesmo um manjar dos “deuses”. Absolutamente delicioso. E as minhas amigas que iam lá comigo só me perguntavam onde é que eu tinha descoberto aquilo, mesmo ali à mão de semear, no centro da cidade, um lugar sensacional.

 

Aos domingos havia festa, que é mais ou menos o equivalente à missa dos católicos, mas não tem nada a ver. São uns rituais diferentes. Claro que também tem um altar todo enfeitado de flores por todo o lado, incenso, panos bonitos cheios de cor e figuras consideradas da mitologia hindu, a quem os devotos prestam a sua homenagem através de danças e cânticos e aos quais se vão juntando todos os que estão a assistir e o grupo vai crescendo, crescendo, aumentando o volume dos cânticos, acentuando o estado vibratório até ao máximo possível de uma energia muito contagiante, de muita alegria e felicidade, uma espécie de transe que acaba por envolver todos os presentes. É interessante, mas eu ficava sempre de fora, apenas como espectadora, para tentar compreender tudo e todos.

 

Depois há o arroz que é atirado e espalhado, como símbolo de fertilidade e muitas outras coisas que já nem me lembro. Fora disto, os devotos juntavam-se discutindo sobre coisas existenciais, sobre coisas inerentes aos seus princípios, lembrando passagens dos Vedas, os livros sagrados do hinduísmo e por aí fora. Às vezes faziam-se verdadeiros colóquios. Para uns fazia todo o sentido, para outros nem tanto. E nessas alturas eu estava lá, porque era esse o aspecto que mais me interessava, tirando as refeições, claro. Ouvir, aprofundar, entrar no espírito do hinduísmo, porque há coisas que não são de nada nem de ninguém em especial, ou seja, não são unicamente de uma religião. O princípio em que todas ou quase todas se baseiam são simplesmente um valor universal e portanto, por outras palavras, por outras vias, a base de todos os princípios, o início em que tudo se baseia. Posso dizer com toda a verdade que todos em geral gostavam de mim, porque eles diziam que quem não era devoto tinha dificuldade em entender, por mais explicações que lhes dessem, e não entendiam porque não conheciam nada da doutrina dos Deva, mas segundo eles eu chegava lá, e isso era intrigante para eles porque sabiam que eu nunca tinha lido os livros sagrados, nem nunca antes tinha estado ou convivido no ambiente deles. Mas como eles próprios diziam, não sabiam como, mas eu chegava lá. Tanto assim, que queriam que eu me tornasse devota de Krisnha, o que para mim estava absolutamente fora de questão. Religião, para mim, não. Eu tinha a minha própria religião. Bastava-me a ligação pessoal e intransmissível com o Divino. Era a minha única religião.

 

Ananda, de seu nome Ana, estava sentada numa mesa com outros devotos e conversavam entre si. Eu estava relativamente perto e não estava a prestar atenção. Mas, a páginas tantas apercebi-me de que ela estava a falar do seu estado de gravidez e contava às outras que tinha sonhado com o parto e no sonho, logo após dar à luz o menino que estava à espera quase no fim do tempo, simplesmente desencarnava. E isto incomodava-a, falando com uma certa inquietude e tristeza. Eu não a conhecia especialmente. Todos eles me eram relativamente pouco familiares, apenas isso. Mas ela era jovem e tinha um ar delicado, doce. Sem querer ouvi a conversa e fiquei tocada. Qual é a mãe que não fica incomodada com a hipótese de morrer depois de dar à luz?!

 

E num impulso levantei-me e fui até ela. Baixei-me e falei-lhe quase ao ouvido dizendo-lhe que ficasse calma, tranquila que tudo ia dar certo, pelo que não havia motivo algum para recear fosse o que fosse.

 

Ananda olhou-me nos olhos e sem se fazer esperar, segurou as minhas mãos, e num gesto carinhoso de profundo agradecimento, com um sorriso delicioso em todo o rosto, deixando-me verdadeiramente tocada e um pouco espantada, mas que tornou a nossa relação a partir daí uma coisa realmente muito especial, respondeu: “Krishna falou por si. Obrigada”.

 

Ananda acreditara piamente nas minhas palavras, tinha um ar tranquilo e feliz e nunca mais me largou. Sempre que me via o seu rosto iluminava-se de forma espantosa e agarrava-se a mim com todo o carinho.

 

O menino nasceu e tudo correu muito bem.

 

“Hare Krishna”!...