A Isabel era
minha colega e minha amiga, mas uma amiga muito querida. Trabalhávamos as duas
na mesma sala, para pessoas distintas, embora o nosso trabalho fosse idêntico,
por isso, sempre que necessário, revezávamo-nos uma à outra. Era uma óptima
pessoa e uma excelente profissional. Melhor, era impossível. Exímia em tudo o
que fazia, super disciplinada, sempre a horas, rigorosa com ela própria,
impecável. Aprendíamos uma com a outra, facilitávamos a vida uma da outra.
Jamais houve entre nós tensão alguma e jamais rivalizámos uma com a outra.
Pelo
contrário, durante esse período, houve um tempo em que tive problemas de ordem
pessoal, que por vezes se reflectiam no trabalho e eu não estava a responder
devidamente, como sempre foi meu hábito e costume e a Isabel foi o meu suporte,
a minha bengala, mais do que isso, foi a minha defesa. Não fosse a coragem e a
verticalidade que sempre a caracterizavam e eu teria tido problemas sérios. Mas
o que mais me sensibilizou é que tudo o que ela fez por mim, não só foi feito
por pura amizade, como no maior sigilo, sem dar nas vistas, sem que eu me
apercebesse de nada. A Isabel é um anjo disfarçado de mulher.
Além disso,
ela tinha duas filhas, uma com mais um ano e outra com menos um ano que o meu
filho, o que fazia com que andássemos as duas sempre alerta e em ebulição com
tudo o que era inerente à adolescência. Com frequência nos aconselhávamos uma
com a outra, por todo o tipo de situações perfeitamente normais, mas às vezes
delicadas e até no que respeita à saúde, vivíamos os problemas uma da outra,
funcionando como verdadeiras irmãs.
A Isabel
usava uns anéis de ouro, como quase todas as mulheres usam. Aliança de casada,
anel de noivado, etc… um conjunto de anéis que ela prezava muito, quer pelo
valor material, quer pelo valor sentimental. Um dia foi à casa de banho, como
de costume tirou os anéis para lavar melhor as mãos, mas não voltou a
colocá-los. Um esquecimento acontece a toda a gente, só que aquele esquecimento
foi fatal. Quando deu pela falta deles ficou em pânico, correu a buscá-los, mas
já lá não estavam.
Provavelmente
todos nós já passámos por uma situação semelhante e é fácil compreender quão
desagradável é esta sensação. É como perder uma parte de nós mesmos. A Isabel
sentia-se derrotada, decepcionada, abatida, triste, infeliz, enfim, tudo isso e
muito mais. Os anéis não voltariam aos seus dedos, era o que todos pensavam.
Para outra pessoa eles teriam apenas o valor comercial e jamais o valor
sentimental que só a ela pertencia. Não era o fim do mundo, mas quase. É como
se tudo o que vivemos relacionado com aqueles objectos fosse atrás, fosse parar
ao lixo. Era assim que a Isabel se sentia. E estava triste. Eu nunca a tinha
visto assim. Sempre segura das situações, tranquila, serena, compreensiva com
tudo e com todos, mas aquela situação deixou-a muito abalada e sem chão.
Não que ela
falasse muito, que lamentar-se ou armar-se em vítima não fazia o género dela.
Mas eu conhecia-a muito bem e podia ler os seus pensamentos, sentir a sua
angústia, o seu desapontamento. Eu estava triste com a tristeza dela, muito
triste e a única coisa que tinha feito até então era ficar parada a observá-la.
Mas ela não podia ficar assim e eu não queria a minha amiguinha naquela
tristeza e sem os seus anéis. Eram dela, só dela. No seu olhar havia um sinal
de pobreza e desamparo. Ela sentia que tinha ficado mais pobre e mais
desamparada, no que aqueles anéis representavam para ela. Eu entendia-a muito
bem e não a queria ver assim. Era preciso fazer alguma coisa, por tudo o que
ela era e por tudo o que ela merecia. Eu tinha que fazer fosse o que fosse. Era
preciso restituir-lhe os anéis. Tinha que haver uma forma de lá chegar.
Mas como é
que isso aconteceria? Era praticamente impossível. Que mágica iríamos fazer?
Não podíamos imaginar quem os teria levado e mesmo que lá chegássemos, como a
pessoa em questão iria devolvê-los? Essas coisas não têm volta. Mas eu não
aceitava. Não podia ficar por isso mesmo. Eu não aceitava o facto consumado e
pronto. Se o mundo inteiro fosse honesto, ela teria encontrado os anéis no
sítio onde os tinha deixado. Eles tinham que aparecer, eles tinham que voltar
para a Isabel, não sabia como, mas tinha que dar um jeito.
A minha
cabeça girava, girava, percorria caminhos e tentava encontrar um meio para
solucionar o problema, mas como? Olhava para ela e sentia uma força vinda não
sei de onde que me impelia a fazer alguma coisa e urgentemente. Apetecia-me
gritar "quem levou os anéis da Isabel é favor devolvê-los!" Que coisa
mais frustrante, mas com base nisso, pensei, é por aí, mas de uma maneira
civilizada, de uma maneira polida. Vão achar-me uma idiota, mas não quero
saber. Peguei numa folha de papel A4 em branco, disse à Isabel para se sentar e
escrever, com letras bem grandes: “a quem encontrou uns anéis de ouro, pede-se
o favor de os devolver” (assinado) I.M. Fomos à casa de banho e com fita-cola
colocámos o papel no espelho, exactamente no sítio onde ela os tinha deixado.
Estava feito, agora era esperar e acreditar com todas as forças.
Eu sabia que
parecia uma coisa muito louca, absurda, mas era a única coisa a fazer. E não há
missões impossíveis. Há coisas que ficam por fazer. A impossibilidade somos
nós, enquanto filhos da matéria, que é limitativa e nos impede de acreditar nas
nossas capacidades. Era preciso tentar. Aquele papel era uma atitude de
coragem, uma chamada de atenção para toda a gente. Era preciso que percebessem
que errar é humano, mas reparar o mal, às vezes é possível. E era preciso dar
essa oportunidade a alguém que tinha errado, levando o que não lhe pertencia.
Abríamos assim um diálogo virtual com o inimigo, afrontando-o de uma forma
pacífica, de um jeito mais humano, estendendo-lhe a mão e convidando-o a
redimir-se de sua livre e espontânea vontade, sem outras interferências e sem
drama. Noutra perspectiva, aquela mensagem também poderia ter a capacidade de o
confrontar com a sua própria consciência, atingindo a sua vulnerabilidade e
perceber a humilhação a que se tinha submetido.
A Isabel
sempre chegava primeiro que eu. Por isso, no outro dia de manhã quando cheguei,
ela já lá estava. E como chegava muito cedo, era das primeiras pessoas a ir à
casa de banho para se arranjar. E de repente, os anéis estavam lá à sua espera,
sobre a bancada, exactamente no sítio onde os tinha deixado. Parecia um
milagre. Custava a acreditar. Toda a gente estava espantada com o acontecido. O
pesadelo caía por terra e tudo voltava ao normal, como se nada tivesse
acontecido. Os anéis voltavam ao seu lugar de sempre e a Isabel estava bem com
ela. A alegria tinha voltado e com ela a sua postura habitual, calma,
tranquila, serena, como sempre. Aquele pequeno gesto, dado como a hipótese
menos provável, tinha-se tornado inacreditavelmente imbatível e
vitorioso.
Entre nós,
não deixámos de nos interrogar, como teria sido, quem teria sido? Porque,
afinal, quem quer que fosse, também tinha tido uma atitude corajosa. Não é
fácil, quando se dá um passo em falso, voltar atrás. Assim, por exclusão de
partes, fomo-nos aproximando. Depois, jogámos com as horas, o que facilitou a
tarefa. Outro pormenor que tivemos em conta, é que só podia ter sido uma pessoa
que gostasse e estimasse muito a Isabel, caso contrário, não teria devolvido os
anéis e muito menos com o cuidado que o fez.
Quem foi,
sabia a que horas a Isabel chegava e conhecia os hábitos dela, para não correr
o risco de serem levados por outra pessoa. Finalmente, foi isolada a célula e
dentro da célula, não havia dúvidas de quem teria sido. Uma pessoa que, no
momento, estava atravessando um mau bocado na vida. Problemas monetários,
misturados com problemas graves de saúde, fazia um certo sentido. Só que a
pessoa em questão não esperava que os anéis fossem da Isabel, justamente uma
pessoa por quem tinha uma alta estima, o que a Isabel confirmava, porque já
tinha tido provas disso. Aí, quando viu a mensagem, rendeu-se e ao fazê-lo,
praticamente se entregou. Mesmo assim, fê-lo. Foi um gesto nobre e corajoso.
A Isabel
obteve, assim, de volta os seus anéis muito preciosos e ficámos felizes com o
sucedido e pela forma como tudo decorreu. Tomaram-se as providências certas,
sem dúvida. Tivéssemos dado as voltas erradas e os anéis jamais teriam
aparecido. Cada um tem exactamente aquilo que merece e a Isabel, mais do que
ninguém.
Desaparecerem
objectos que ficaram esquecidos, é vulgar, é normal. Pôr um papel com um pedido
de retorno, já não me parece muito normal, pelo menos, muito comum. Terem
aparecido sem a menor resistência, muito menos.
Mas há uma
coisa que é muito importante salientar. Quando me veio à ideia
pôr lá um papel, o que parecia absurdo, eu disse à Isabel para
escrever aquela mensagem na forma de um pedido. Ambas estávamos sintonizadas.
Ela mais vulnerável e portanto mais passiva do que eu, porque era um assunto
dela. Eu, por outro lado, mais activa porque, apesar de me tocar, não deixava
de ser expectadora. Por isso, quando lhe disse para escrever, ela não pôs
objecções e quando lhe disse para escrever "pede-se o favor" aquilo
era apenas o que se podia ler. Mas o que estava realmente escrito nas
"entrelinhas" e não se podia ler com os olhos físicos, mas ler com a
alma, era uma ordem. Nas entrelinhas ordenava-se a reposição dos anéis, sem a
menor sombra de dúvida. Era na verdade uma ordem, tanto é, que eles apareceram
e isso é verdadeiramente relevante, porque esse, sim, é o ponto da questão.
Eu nunca
tinha assistido a uma coisa daquelas e não teria feito o mesmo se fosse para
mim, estou certa e também não aconteceria com outra pessoa. Aconteceu com a
Isabel, por ela ser a pessoa especial que era.
Estou grata
à vida por um dia ter posto no meu caminho esse anjo disfarçado de mulher, que
caminhou comigo diariamente, lado a lado, pelos caminhos da luz, do amor e da
alegria.