sábado, 17 de outubro de 2009

Os anéis da Isabel - 10


A Isabel era minha colega e minha amiga, mas uma amiga muito querida. Trabalhávamos as duas na mesma sala, para pessoas distintas, embora o nosso trabalho fosse idêntico, por isso, sempre que necessário, revezávamo-nos uma à outra. Era uma óptima pessoa e uma excelente profissional. Melhor, era impossível. Exímia em tudo o que fazia, super disciplinada, sempre a horas, rigorosa com ela própria, impecável. Aprendíamos uma com a outra, facilitávamos a vida uma da outra. Jamais houve entre nós tensão alguma e jamais rivalizámos uma com a outra.

 

Pelo contrário, durante esse período, houve um tempo em que tive problemas de ordem pessoal, que por vezes se reflectiam no trabalho e eu não estava a responder devidamente, como sempre foi meu hábito e costume e a Isabel foi o meu suporte, a minha bengala, mais do que isso, foi a minha defesa. Não fosse a coragem e a verticalidade que sempre a caracterizavam e eu teria tido problemas sérios. Mas o que mais me sensibilizou é que tudo o que ela fez por mim, não só foi feito por pura amizade, como no maior sigilo, sem dar nas vistas, sem que eu me apercebesse de nada. A Isabel é um anjo disfarçado de mulher.

 

Além disso, ela tinha duas filhas, uma com mais um ano e outra com menos um ano que o meu filho, o que fazia com que andássemos as duas sempre alerta e em ebulição com tudo o que era inerente à adolescência. Com frequência nos aconselhávamos uma com a outra, por todo o tipo de situações perfeitamente normais, mas às vezes delicadas e até no que respeita à saúde, vivíamos os problemas uma da outra, funcionando como verdadeiras irmãs.

 

A Isabel usava uns anéis de ouro, como quase todas as mulheres usam. Aliança de casada, anel de noivado, etc… um conjunto de anéis que ela prezava muito, quer pelo valor material, quer pelo valor sentimental. Um dia foi à casa de banho, como de costume tirou os anéis para lavar melhor as mãos, mas não voltou a colocá-los. Um esquecimento acontece a toda a gente, só que aquele esquecimento foi fatal. Quando deu pela falta deles ficou em pânico, correu a buscá-los, mas já lá não estavam.

 

Provavelmente todos nós já passámos por uma situação semelhante e é fácil compreender quão desagradável é esta sensação. É como perder uma parte de nós mesmos. A Isabel sentia-se derrotada, decepcionada, abatida, triste, infeliz, enfim, tudo isso e muito mais. Os anéis não voltariam aos seus dedos, era o que todos pensavam. Para outra pessoa eles teriam apenas o valor comercial e jamais o valor sentimental que só a ela pertencia. Não era o fim do mundo, mas quase. É como se tudo o que vivemos relacionado com aqueles objectos fosse atrás, fosse parar ao lixo. Era assim que a Isabel se sentia. E estava triste. Eu nunca a tinha visto assim. Sempre segura das situações, tranquila, serena, compreensiva com tudo e com todos, mas aquela situação deixou-a muito abalada e sem chão.

 

Não que ela falasse muito, que lamentar-se ou armar-se em vítima não fazia o género dela. Mas eu conhecia-a muito bem e podia ler os seus pensamentos, sentir a sua angústia, o seu desapontamento. Eu estava triste com a tristeza dela, muito triste e a única coisa que tinha feito até então era ficar parada a observá-la. Mas ela não podia ficar assim e eu não queria a minha amiguinha naquela tristeza e sem os seus anéis. Eram dela, só dela. No seu olhar havia um sinal de pobreza e desamparo. Ela sentia que tinha ficado mais pobre e mais desamparada, no que aqueles anéis representavam para ela. Eu entendia-a muito bem e não a queria ver assim. Era preciso fazer alguma coisa, por tudo o que ela era e por tudo o que ela merecia. Eu tinha que fazer fosse o que fosse. Era preciso restituir-lhe os anéis. Tinha que haver uma forma de lá chegar.

 

Mas como é que isso aconteceria? Era praticamente impossível. Que mágica iríamos fazer? Não podíamos imaginar quem os teria levado e mesmo que lá chegássemos, como a pessoa em questão iria devolvê-los? Essas coisas não têm volta. Mas eu não aceitava. Não podia ficar por isso mesmo. Eu não aceitava o facto consumado e pronto. Se o mundo inteiro fosse honesto, ela teria encontrado os anéis no sítio onde os tinha deixado. Eles tinham que aparecer, eles tinham que voltar para a Isabel, não sabia como, mas tinha que dar um jeito.

 

A minha cabeça girava, girava, percorria caminhos e tentava encontrar um meio para solucionar o problema, mas como? Olhava para ela e sentia uma força vinda não sei de onde que me impelia a fazer alguma coisa e urgentemente. Apetecia-me gritar "quem levou os anéis da Isabel é favor devolvê-los!" Que coisa mais frustrante, mas com base nisso, pensei, é por aí, mas de uma maneira civilizada, de uma maneira polida. Vão achar-me uma idiota, mas não quero saber. Peguei numa folha de papel A4 em branco, disse à Isabel para se sentar e escrever, com letras bem grandes: “a quem encontrou uns anéis de ouro, pede-se o favor de os devolver” (assinado) I.M. Fomos à casa de banho e com fita-cola colocámos o papel no espelho, exactamente no sítio onde ela os tinha deixado. Estava feito, agora era esperar e acreditar com todas as forças.

 

Eu sabia que parecia uma coisa muito louca, absurda, mas era a única coisa a fazer. E não há missões impossíveis. Há coisas que ficam por fazer. A impossibilidade somos nós, enquanto filhos da matéria, que é limitativa e nos impede de acreditar nas nossas capacidades. Era preciso tentar. Aquele papel era uma atitude de coragem, uma chamada de atenção para toda a gente. Era preciso que percebessem que errar é humano, mas reparar o mal, às vezes é possível. E era preciso dar essa oportunidade a alguém que tinha errado, levando o que não lhe pertencia. Abríamos assim um diálogo virtual com o inimigo, afrontando-o de uma forma pacífica, de um jeito mais humano, estendendo-lhe a mão e convidando-o a redimir-se de sua livre e espontânea vontade, sem outras interferências e sem drama. Noutra perspectiva, aquela mensagem também poderia ter a capacidade de o confrontar com a sua própria consciência, atingindo a sua vulnerabilidade e perceber a humilhação a que se tinha submetido.

 

A Isabel sempre chegava primeiro que eu. Por isso, no outro dia de manhã quando cheguei, ela já lá estava. E como chegava muito cedo, era das primeiras pessoas a ir à casa de banho para se arranjar. E de repente, os anéis estavam lá à sua espera, sobre a bancada, exactamente no sítio onde os tinha deixado. Parecia um milagre. Custava a acreditar. Toda a gente estava espantada com o acontecido. O pesadelo caía por terra e tudo voltava ao normal, como se nada tivesse acontecido. Os anéis voltavam ao seu lugar de sempre e a Isabel estava bem com ela. A alegria tinha voltado e com ela a sua postura habitual, calma, tranquila, serena, como sempre. Aquele pequeno gesto, dado como a hipótese menos provável, tinha-se tornado inacreditavelmente imbatível e vitorioso. 

 

Entre nós, não deixámos de nos interrogar, como teria sido, quem teria sido? Porque, afinal, quem quer que fosse, também tinha tido uma atitude corajosa. Não é fácil, quando se dá um passo em falso, voltar atrás. Assim, por exclusão de partes, fomo-nos aproximando. Depois, jogámos com as horas, o que facilitou a tarefa. Outro pormenor que tivemos em conta, é que só podia ter sido uma pessoa que gostasse e estimasse muito a Isabel, caso contrário, não teria devolvido os anéis e muito menos com o cuidado que o fez. 

 

Quem foi, sabia a que horas a Isabel chegava e conhecia os hábitos dela, para não correr o risco de serem levados por outra pessoa. Finalmente, foi isolada a célula e dentro da célula, não havia dúvidas de quem teria sido. Uma pessoa que, no momento, estava atravessando um mau bocado na vida. Problemas monetários, misturados com problemas graves de saúde, fazia um certo sentido. Só que a pessoa em questão não esperava que os anéis fossem da Isabel, justamente uma pessoa por quem tinha uma alta estima, o que a Isabel confirmava, porque já tinha tido provas disso. Aí, quando viu a mensagem, rendeu-se e ao fazê-lo, praticamente se entregou. Mesmo assim, fê-lo. Foi um gesto nobre e corajoso.

 

A Isabel obteve, assim, de volta os seus anéis muito preciosos e ficámos felizes com o sucedido e pela forma como tudo decorreu. Tomaram-se as providências certas, sem dúvida. Tivéssemos dado as voltas erradas e os anéis jamais teriam aparecido. Cada um tem exactamente aquilo que merece e a Isabel, mais do que ninguém.

 

Desaparecerem objectos que ficaram esquecidos, é vulgar, é normal. Pôr um papel com um pedido de retorno, já não me parece muito normal, pelo menos, muito comum. Terem aparecido sem a menor resistência, muito menos.

 

Mas há uma coisa que é muito importante salientar. Quando me veio à ideia pôr lá um papel, o que parecia absurdo, eu disse à Isabel para escrever aquela mensagem na forma de um pedido. Ambas estávamos sintonizadas. Ela mais vulnerável e portanto mais passiva do que eu, porque era um assunto dela. Eu, por outro lado, mais activa porque, apesar de me tocar, não deixava de ser expectadora. Por isso, quando lhe disse para escrever, ela não pôs objecções e quando lhe disse para escrever "pede-se o favor" aquilo era apenas o que se podia ler. Mas o que estava realmente escrito nas "entrelinhas" e não se podia ler com os olhos físicos, mas ler com a alma, era uma ordem. Nas entrelinhas ordenava-se a reposição dos anéis, sem a menor sombra de dúvida. Era na verdade uma ordem, tanto é, que eles apareceram e isso é verdadeiramente relevante, porque esse, sim, é o ponto da questão.

 

Eu nunca tinha assistido a uma coisa daquelas e não teria feito o mesmo se fosse para mim, estou certa e também não aconteceria com outra pessoa. Aconteceu com a Isabel, por ela ser a pessoa especial que era.

 

Estou grata à vida por um dia ter posto no meu caminho esse anjo disfarçado de mulher, que caminhou comigo diariamente, lado a lado, pelos caminhos da luz, do amor e da alegria.


quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Falei com as estrelas - 9


Todos nós temos desejos ou sonhos, como lhe quiserem chamar. Muitos são legítimos, outros, nem por isso. E se alguns não se podem realizar, outros há que são possíveis.

 

Alguns realizam-se sem esforço da nossa parte - são presentes da vida - outros, porém, obrigam a um grande empenhamento pessoal e a uma força de vontade muito forte e nem por isso deixam de ser presentes da vida.

 

Quando um sonho se torna realidade não tem que ser um milagre, embora por vezes possa parecer. Não sendo uma coisa do outro mundo, algo pode acontecer que nos deixe maravilhados. Mesmo dentro da normalidade pode ter algo incomum, de tão extraordinário, que valha a pena recordar. Foi isso que aconteceu.

 

A Lurdes era uma colega de trabalho e uma amiga muito especial. Daquelas pessoas raras neste mundo, constantemente capazes de pequenas grandes coisas. Assim era a Lurdes, sempre igual, sempre fiel a si mesma. De natureza humilde, jamais se deixou corromper pelo materialismo. Uma vida sempre na "corda bamba", com problemas de toda a ordem, como só ela tinha e como só ela conseguia superar. Mas ela não era só o suporte de uma família, era também o suporte de todos à sua volta. A capacidade psicológica e física que tinha de aguentar, lidar e superar as coisas dela e ainda ajudar os outros, era absolutamente inesgotável.

 

Um humor à prova de fogo, como ninguém. Das tragédias fazia uma comédia. Da vida fazia o palco onde ela própria se fosse preciso, morria, aplaudia e ressuscitava. Ela reinventava a vida. Era uma criatura única. Onde ela estava, tudo estava bem. Ajudava, sem olhar a quem, mesmo que não gostasse desta ou daquela pessoa. Na hora da aflição, do problema, isso não tinha a menor importância. Automaticamente os laços se estabeleciam e o mal era transmutado. Ela dava a cara, se necessário, e mais facilmente salvava a pele dos outros do que a dela própria. Onde houvesse alguém num momento mau, aí estava ela a consolar, a levantar o astral. Essa criatura ensinou-nos a viver e proporcionou-nos horas de ouro. Só quem a conheceu é que pode compreender isto, porque ela era a prova viva de que o amor incondicional existe.

 

Um dia a Lurdes teve um sonho que se tornou um desejo que foi crescendo, crescendo, até se tornar realidade. Quis ter outro filho e desta vez queria que fosse uma menina. O Sérgio já estava bem grandinho, já era maior de idade e nunca lhe tinha passado pela cabeça ter outra criança. Ela e o marido não tinham muitos recursos e a coisa passava por aí. Mas agora ela queria. Depois de reunida a família decidiram que, apesar das circunstâncias, todos queriam essa criança. Estava decidido, portanto, o sonho realizado pela metade, o que já não era pouco. E todas começámos a sonhar e a torcer para que a coisa se concretizasse e já agora, que fosse uma menina como ela tanto queria.

 

Havia uma outra colega nessas condições, que tinha tido um rapaz com uma diferença de 18 anos da primeira filha, mas essa outra, era uma pessoa problemática. O oposto da Lurdes. Gostava de pregar rasteiras e as intenções dela nem sempre eram as mais desejáveis. Um carácter um pouco duvidoso. E enquanto que todas nós torcíamos pela Lurdes, ela distorcia. Dizia que ela não ia ser capaz daquela proeza(!?). Uma data de disparates, como se só ela no mundo tivesse dado à luz duas crianças de sexos diferentes. Só ela tinha sido capaz de fazer as coisas bem feitas(!) e não queria de maneira nenhuma que a outra tivesse outro filho, muito menos uma menina. A mim incomodava-me e como aquela atitude. Era demasiado provocatória e mesquinha. E tivemos todas que levar com aquela coisa ruim, que não cedia de maneira nenhuma.

 

O tempo foi passando e um dia a Lurdes veio da médica com a confirmação da gravidez. Foi uma festa, uma alegria só. A emoção foi tão grande que as lágrimas bailavam nos olhos dela e nos nossos também. Ficámos todas excitadas com a notícia. Começámos a fazer as contas para quando seria e a planear tudo em conjunto com ela. Ela queria uma menina, porque já tinha um rapaz, mas no momento em que soube que estava grávida, a felicidade era tão grande, que isso deixou de ser relevante. Tudo o que importava agora era que essa criança fosse saudável. Se era menino ou menina já não tinha a menor importância. Estava demasiado agradecida à vida para exigir fosse o que fosse.

 

Sinceramente, eu ficava pasmada com a capacidade de aceitação que ela tinha. Era uma fonte de ensinamento para mim. A outra, em nada receptiva, continuava dizendo que nunca seria uma menina. Ia sair outro rapaz. Mas ela já não se incomodava nada com isso. E fez a primeira ecografia e todo o mundo a postos para saber o que seria. Quando ela chegou, foi com alguma decepção que ouvimos a notícia de que a médica dissera que não dava para confirmar, mas achava que era um rapaz e ponto final.

 

Toda a gente de volta dela felicitando-a e dizendo-lhe que não fazia mal, era igualmente bom e ela também, feliz por estar tudo bem e voltava a salientar que estava muito feliz por ser um menino. E estava mesmo, era visível. A outra toda emproada dizia, viram, eu tinha razão, se a médica disse que devia ser um rapaz é porque é de certeza, porque não ia arriscar a dizer sem ter a certeza. Nunca faria isso e chateava a cabeça dela e a cabeça das outras. A mim, mais do que isso, apunhaláva-me. Apetecia-me jogá-la pela janela fora.

 

A barriga foi crescendo, foram-se tomando as providências, colaborando em tudo o que era possível, só a outra desdenhava, com grande tristeza minha. Tristeza que se foi transformando numa espécie de raiva, porque era de um mau gosto que chegava a doer. Chegava a ser injusto, já que a Lurdes toda a vida tinha sido amiga dela. Como era possível tamanha ingratidão?!

 

Os dias decorriam assim numa harmonia interceptada por um mau agoiro, um só, que estragava tudo. A barriga crescendo e o dia do nascimento a aproximar-se. E aquela raiva a apoderar-se de mim, dia após dia, que me sufocava. Se fosse comigo não me incomodava tanto, mas com a Lurdes não, não podia ser. Ela queria tanto uma menina! Ela tinha conseguido conquistar tudo o que queria, dentro do possível, só faltava aquela criança ser uma menina e eu não me conformava. Primeiro, porque a outra tinha ganho aquilo que não tinha que ser uma disputa, mas assim parecia. Segundo, porque a Lurdes tinha começado aquele projecto com o objectivo de ter uma menina. Eu sabia que não era tão importante assim. Nós sabíamos. Mas não custava nada. Que pena! E que raiva!

 

A poucos dias da criança nascer... fui para casa, fiz o que tinha a fazer e quando me sentei no sofá para descansar um pouco antes de me deitar, comecei a pensar no assunto. Pensei naquela situação caricata da outra ter conseguido levar a teimosia venenosa dela avante que eu não aceitava, não conseguia engolir. Imaginava a Lurdes a ter uma menina e a outra sem palavras, morta de inveja. Pensei tanto naquilo que não conseguia parar.

 

Fui para a minha varanda. Estava calor. Sentei-me a olhar o céu limpo, duma noite de Verão. Valia sempre a pena observar as estrelas. Elas repunham um pouco a tranquilidade. Mas não conseguia deixar de pensar na Lurdes. Era tão bom se ela tivesse uma menina! Ela ia ficar tão feliz! Ela, o Sérgio, o "Jaquim" e nós. Ah, era tão bom se fosse possível! Mas àquela altura, o que estava feito, feito estava. Não era possível alterar. A menos que… a menos que… a médica estivesse enganada. Afinal ela não tinha dado a certeza. Está certo que eles não adiantam nada de ânimo leve. Mas, naquele caso, também não era grave(?). E podia ser, não podia? Ela podia ter-se enganado!?

 

Senti uma corrente de energia tão forte, mas tão forte, que dentro de mim uma força estranha gritava: pede, fala com as estrelas, elas podem tudo. Pede para que a situação seja revertida. Ainda é tempo. Não quero saber do que a médica disse. Céu... estrelas..., porque é que a felicidade nunca há-de ser por inteiro, tem que ser sempre pela metade? Não estou a pedir nada para mim, mas é mais importante do que se fosse para mim. Ela só queria uma menina, mais nada. Ela não quer o céu e a terra, este mundo e o outro. É só uma menina e as estrelas podem, podem tudo. Porque é que a outra há-de ganhar e há-de rir-se à nossa custa, não é justo!? Eu sei que o mundo não é justo, mas a Lurdes não merece. Ou melhor, a Lurdes merece tudo de bom. Tudo. Estrelas, façam o milagre. Eu imploro! Eu quero! Era tão bom, tão bom mesmo. Se for um menino não faz mal, mas tragam uma menina. Estrelas, por favor, tragam uma menina para a Lurdes!

 

Eu estava de rastos de eufórica, com a energia que corria dentro de mim. O facto é que, a partir dali deixei de sentir raiva. Sentia-me mais leve e pronta para aceitar o que viesse. As vozes da outra já não tinham eco em mim, já não me atingiam.

 

Às 23,45 do dia dez de Setembro de 1991 eu completava 39 anos de idade. Poucas horas depois, na manhã do dia seguinte, mais propriamente a 11 de Setembro de 1991, as estrelas respondiam ao meu chamado, traziam o meu "presente" e a Lurdes realizava o seu sonho por inteiro - a Beatriz nascia.

 

A Beatriz é hoje uma jovem linda, inteligente e saudável. A Beatriz é a prova viva de que as energias negativas se diluem quando confrontadas com as energias positivas. A Beatriz nunca me fará esquecer que um dia, em nome da amizade incondicional, da luz, do amor e da alegria eu consegui falar com as estrelas.

 

A Beatriz esteve lá desde o início. Todo o tempo ela foi testemunha de que quando queremos alguma coisa com muito amor, mais do que tudo, é preciso acreditar.

(A história que acabei de descrever, verídica como tudo o que estará contido neste blogue, além da importância que teve no plano físico, teve um reflexo extremamente relevante no plano espiritual. Da mesma maneira que a Beatriz esteve lá todo o tempo, porque a médica se enganou, fazendo da questão uma verdade intemporal, uma verdade absoluta, completamente alheia à vontade e aos desejos humanos, também as estrelas estavam lá todo o tempo. Depois disto, pode dizer-se que aprendi a falar com as estrelas. Aprendi a reparar na sua existência plena, com todo o poder que elas encerram. Aprendi que elas são a luz que nos ilumina, que nos fornece a energia que nos alimenta física e espiritualmente e que nos guia pela eternidade. Elas não estão lá apenas em noites especiais quando, casualmente olhamos para o céu, numa daquelas noites que as achamos únicas. Elas estão e são o nosso tecto, a nossa casa e o nosso encontro com elas pertence ao passado, presente e futuro. Elas passaram a abrilhantar a minha vida e o meu caminho, porque eu me tornei perfeitamente consciente, não só da sua existência como da sua presença. A partir daí fiquei mais rica espiritualmente. O meu elo com o Divino estava selado e a minha gratidão e respeito pela vida são eternos.)


segunda-feira, 5 de outubro de 2009

O Thiago nasceu - 8


Era véspera de S. João e estávamos a festejar os santos populares como era habitual. Além disso e enquanto vivi nos Açores, tudo era motivo para festejar. Éramos novos, os caminhos estavam em aberto em todos os sentidos. Tanto no campo pessoal como no profissional. Tudo estava no início.

Naquele dia, excepcionalmente, a festa era numa quinta do Zé Eduardo Moniz. Costumávamos fazer as festas na quinta da Ribeira Grande, mas o Zé Eduardo quis ser o anfitrião daquela noite, talvez porque o filho mais velho era recém-nascido e não lhe desse jeito deslocar a mulher e o bebé. Em consideração a isso e para variar, acedi ao seu desejo.

A sardinhada ao ar livre, como convinha, era acompanhada de vinho de cheiro, pão de mistura, bolo lêvedo e outras coisas mais. Reinava sempre a boa disposição. Alegria era coisa que não faltava. 

Naquele tempo ainda não havia rivalidades profissionais e dávamo-nos todos muito bem. Quem tinha família, estava sempre convidada e todos se conheciam e se respeitavam. O pessoal da Rádio muitas vezes partilhava das nossas festas, de modo que, nos Açores, já nessa altura, Rádio e Televisão estavam juntas. Era muito divertido, muito animado.

Também havia sempre um voluntário para assar as sardinhas, por se achar especialista no assunto e tudo era cuidadosamente encomendado para a RTP, o vinho especial, as sardinhas maravilhosas, enfim, era tudo óptimo, nunca ninguém teve do que reclamar e as nossas festas até se tornaram famosas no melhor dos sentidos.

Neste clima de festividade e descontracção, dum fim de dia espectacular que prometia entrar pela noite dentro, aconteceu então uma coisa fantástica.

De repente, comecei a sentir uma sensação estranha. O ambiente à minha volta pareceu ficar irreal, com uma luz diferente. As vozes soavam como um eco e uma impressão de que os meus pés não tocavam o chão. Parecia que flutuava no espaço. Era estranho mas era uma sensação muito agradável e uma alegria, mais do que isso, uma felicidade imensa inundava o meu coração. 

Deixei-me levar porque era bom demais e não podia perder aquela energia que eu não sabia de onde vinha mas que era muito bem vinda. Perguntei ao meu marido se ele se apercebia de alguma coisa estranha. Ele não percebeu o que eu queria dizer e eu não tinha como explicar. Mas insisti e disse-lhe que estava a acontecer alguma coisa que não sabia o que era. Uma coisa que vinha de longe e chamava por mim... mas ele continuou a não perceber e disse que aquilo não era nada. Uma reacção normal. 

Retirei-me um pouco da confusão, isolei-me por uns instantes para melhor saborear aquela sensação e ter a percepção do que estaria a acontecer. E de repente percebi o que era. O meu sobrinho tinha nascido. É verdade. Recebi essa notícia assim, vinda do nada, ou melhor, vinda de desejo da minha irmã, de tanto querer comunicar-se comigo para dar-me a boa nova, lá, do outro lado das águas. 

No dia 30 de Setembro de 1974 eu ia levar a minha irmã ao aeroporto com destino a S. Paulo, Brasil, onde a esperava o António, com quem ia casar. No dia 30 de Setembro de 1974, estava traçado o destino dela. 

No dia seguinte, 1 de Outubro do mesmo ano, eu apanhava um táxi para o aeroporto com rumo aos Açores. Estava traçado o meu destino. Conheci o A.L. com quem me casei. 

O Thiago era o segundo filho da minha irmã. Isto aconteceu por volta das 22 horas dos Açores. Foi assim que recebi a notícia de que ele tinha nascido. Ele parecia querer nascer prematuro. Então, desde os seis meses ela precisou de fazer muito repouso. O meu cunhado, que tinha sido aluno de medicina em Portugal, onde se conheceram, teve que tomar todas as providências para ela conseguir levar a bom termo aquela gravidez. Talvez por isso, não sei, fiquei sempre muito ligada nela. Estava sempre à espera de notícias. 

Não havia telemóveis naquela época. Mas a notícia chegou na hora certa, bem em cima do acontecimento. Só não sabia o nome dele, mas sabia que era um menino. Fiquei doida de felicidade e mais ainda, por se ter estabelecido aquela conexão tão forte.  

Lembro-me que corri novamente para o meio do pessoal, chamei o António e disse-lhe que a minha irmã tinha tido o bebé. E ele ingenuamente perguntou como é que eu sabia. E eu, ingenuamente respondi-lhe que aquela sensação estranha que estava a sentir, me tinha trazido a notícia. Ele olhou-me de lado, sorriu e abanou a cabeça, simplesmente, porque não entendia nada. É normal. Saímos dali de madrugada e no outro dia íamos trabalhar, mas isso não tinha a menor importância. Éramos jovens!... 

No outro dia a meio da tarde veio um telefonema da minha tia a dar a notícia, que para mim era apenas uma confirmação. O Thiago nasceu.