domingo, 3 de setembro de 2017

A tia Guida - 64


Havia uma pessoa na minha família que não me era nada, porque veio no pacote do segundo casamento do meu pai e era tia da minha meia irmã. Faleceu com idade perto dos oitenta anos.

A tia Guida era uma pessoa de uma certa complexidade. Durona e fria, não era fácil nem acessível. Vivia apenas para ter. A sua razão de ser baseava-se inteiramente no objectivo de alcançar mais e mais dinheiro e bens materiais. Depois, a nada disto dava uso nem tirava partido algum. Mas tinha e queria cada vez mais.

Sozinha, nunca casou, nunca teve filhos, nunca se lhe conheceu um namorado sequer. Vestia-se de uma maneira simples demais e basicamente nunca a vi arranjada, muito menos maquillada. Tinha todo um perfil muito próximo do masculino. Gostava de dar ordens em toda a gente e achava que punha e dispunha de todos, falando sempre com a peculiar superioridade de quem pode tudo. Não era fácil.

A única coisa que eu queria era nunca ter problemas com ela, porque não ia deixar que me hostilizasse sem motivo e motivo eu jamais lhe daria. Muitas vezes a vi sendo dura e áspera com o meu pai, com a minha madrasta, para não falar de todos os que a rodeavam, porque ela era assim. E com a minha meia irmã que era a sua sobrinha predilecta, indirectamente, era ela que guiava o seu futuro, coisa que com os outros não podia fazer. Enfim, quando digo que não era uma pessoa fácil, não era mesmo.

Com a idade veio o Alzheimer e o Parkinson, obrigando-a a deixar os negócios, as lojas, tendo que ficar cada vez mais em casa, onde mantinha uma empregada a tempo inteiro para tomar conta dela. Assim, foi ficando cada vez mais sozinha e saindo cada vez menos, também.

Certo dia, em que fui a casa do meu pai que vivia muito perto dela por causa da irmã, a empregada telefonou para a minha madrasta dizendo que a patroa não estava nada bem. Posto isto fomos lá, inclusive eu, ver o que se passava com a tia Guida.

De facto, não estava nada bem. Havia algum tempo que não dizia coisa com coisa, sendo raros os momentos de lucidez, mas naquele dia a coisa tinha piorado. Estava enfiada no seu quarto de dormir, sentada numa beira da cama e transtornada de todo, mais que nunca. Fazia pena. A irmã falou com ela, a sobrinha tentou falar com ela, mas não sabiam o que dizer e ninguém a arrancava daquela situação. Tentaram falar-lhe à razão, mas como pode uma pessoa naquele estado ser chamada à razão, se a razão está totalmente perturbada? Ela não tinha noção de quem era mais. Estava completamente perdida. Até reconhecia os outros, o problema é que não sabia quem era ela própria.

E isto, a irmã não conseguia compreender nem conceber. A irmã, que toda a vida tinha sido sua cobaia e vítima dos seus desmandos, estava agora por cima da situação, porque não estava num estado de senilidade tão avançado como o dela. E então, ralhava com ela, parecendo querer vingar-se de toda a vida se ter deixado levar por ela, sem nunca ter tido voz activa. Mas, nesta vida, para tudo impera a lei do mais forte. E dizia à outra que ela tinha que saber quem era e que tinha que saber o que tinha. A tia Guida só dizia: “não sei”, “não sei”, “não sei”. E insistia: “mas como é que não sabes? Então não sabes o quê?” E a outra, entre o desespero, a raiva e as lágrimas, gritava: “não sei”, “não sei!...” Olhava-se no espelho, como que a ver se se reconhecia e voltava a gritar desesperadamente “não sei(!)”, pondo a outra cada vez mais furiosa, sem ter a mais pequena noção do real estado da irmã.

Era uma coisa aflitiva. A minha meia irmã estava aterrada, sem palavra, porque não sabia lidar com coisas que saíssem fora do seu controle e fora da sua zona de conforto. O meu pai, um pouco afastado, deixando tudo por conta das duas, porque também não tinha como intervir. A empregada, calada, sem um pio, porque a função dela era receber ordens e nada mais. E eu presenciava aquela cena triste, onde o tempo tinha deixado as suas marcas grosseiras, bem como as suas garras devastadoras, sem dó nem piedade. Aquela mulher que toda a vida tinha sido um expoente máximo de comando e autoridade, estava agora reduzida a zero. Ela que sempre sabia de tudo, ela e só ela é que sabia disto, daquilo, de todas as coisas e mais algumas, estava agora confinada àquelas palavras duras de ouvir de qualquer pessoa, quanto mais vindas dela: “não sei!” Era a única coisa que dizia, mas percebia-se que o “não sei” era apenas um código que se referia ao maior dilema que um ser humano pode ter. Quem sou eu mesma que nunca me encontrei, nunca soube quem eu era? Estive sempre ausente, apenas e somente a representar um papel e nunca parei para pensar em mim, para me descobrir, para saber quem eu era! Como posso, agora que tudo passou e que já quase não sou eu, saber quem fui ou quem é o que ainda resta de mim? Perdi tudo. Passei pela vida a ser aquela, uma outra qualquer, mas nunca, em momento algum, fui eu. Agora, na recta final, alguém que me diga quem sou eu, afinal?

Era isto que aquela linguagem codificada por duas palavras apenas – não sei – queria dizer. É triste. E já não eram os gritos dela, da voz dela, mas os gritos da alma. Da alma aflita, sem uma identificação genuína. De uma alma que se sente anónima, porque sempre mascarada, sem uma revelação do seu eu. Isto não é fácil de entender. Aquele “não sei” era um verdadeiro e sentido pedido de socorro. Interpretar aquilo como uma simples loucura ou um qualquer delírio era um drama e tanto. Era um sofrimento deplorável. E com a cabeça entre as mãos, continuava gritando para a irmã: “não sei!” Então não sabes quem és? Entre soluços, respondia: “não sei”. Mas não sabes o quê(?): “Não sei… não sei”. Mas o que tens, afinal? “Não sei”… não sei nada”, concluía, do que lhe restava em consciência. E eu já não sabia o que mais me estava a incomodar: se as perguntas impertinentes de uma ou a resposta fatídica da outra. A quanta loucura e perturbação o ser humano pode estar sujeito!?

Aquilo não podia continuar.

Cheguei junto da tia Guida que continuava sentada na beira da cama com a cabeça entre as mãos e pus as minhas mãos sobre as dela. Esqueci completamente quem era aquela pessoa fria que punha todos à distância e rejeitava a vida no que tem de mais belo: o amor e todos os sentimentos que o envolvem. Ela aninhou-se a mim como se fosse uma criança desprotegida, precisando de conforto e segurança. Baixei-me, trazendo as mãos dela nas minhas até ao regaço, sempre com as mãos bem apertadas, olhando-a de baixo para cima. Soltando uma das mãos, comecei a acariciar-lhe o rosto. Ela olhou para mim e ficámos, olhos nos olhos, sem nada dizer. Em silêncio, pensei naquela palavra maravilhosa: Namasté! (O eu que há em mim saúda o eu que há em ti para promover a paz e a luz). E por um momento a lucidez veio à tona, trazendo-lhe a paz que precisava. O rosto que antes estava perdido, transfigurara-se rapidamente numa súbita e profunda alegria. Havia um rasgo de luz no seu olhar. De repente, a fria e dura tia Guida revelara-se uma criatura doce, meiga e afável, carente de todo o afecto possível. E nesse exacto momento ela compreendera que tinha acabado de achar a resposta que tanto exigia; ela tinha acabado por se revelar a si mesma. Tinha acabado de encontrar o seu verdadeiro eu. No meio daquele turbilhão de emoções, dramático e avassalador, acabava de resgatar o encontro consigo mesma. Tinha-se descoberto. Tinha-se finalmente encontrado. Fora uma vida inteira escondida entre os escombros do materialismo, mas agora estava ali, inteira, por breves instantes, à luz de um breve presente, que valia muito mais do que toda uma vida. Aquela era ela. A máscara caíra. O rosto transfigurara-se por completo. A alegria pela descoberta do eu, num misto de compaixão e humildade, tinham feito um verdadeiro milagre. Estava feliz. Tinha finalmente chegado a algum lado e como tinha valido a pena! O amor incondicional tinha sido activado no seu ADN, só isso.

 

Não tinha importância nenhuma o facto de nunca termos tido empatia alguma uma com a outra. Naquele momento ela estava perfeitamente consciente. Estava de regresso e era ela, não à outra. Estava acessível e tinha rompido com todas as barreiras que a impossibilitavam de ser ela mesma. A luz divina tinha chegado até ela e por isso estava verdadeiramente extasiada, maravilhada com essa nova realidade. As defesas caíram e ela fora capaz de dizer com toda a sinceridade da sua alma, aquilo que muito provavelmente nunca tinha dito a ninguém em toda a vida, na sua voz mais doce e comovente, que deixou a todos sem palavras: “obrigada”...