terça-feira, 20 de abril de 2010

As férias na Grécia - 21


O Riaz foi trabalhar para a Grécia. Estávamos constantemente em contacto por telemóvel, mas sentíamos muito a falta um do outro, tanto mais que não havia previsão de data de regresso.


Um dia falou-me na hipótese de eu ir para lá, o que era totalmente inviável. Então, pôs-se a hipótese de ir de férias, o que muito me agradou, pois nunca tinha estado na Grécia e aí estava uma excelente oportunidade de conhecer um pouco a Grécia e ao mesmo tempo estar com ele.


Marcaram-se as passagens para Julho e comecei a planear tudo. Sonhava acordada e imaginava mil e uma coisas. Fazia-lhe imensas perguntas por telemóvel, a que ele respondia que logo via quando chegasse.


Um Sábado à tarde, como estava sonolenta, resolvi fazer uma sesta. Recostei-me e adormeci. Mas antes de adormecer, pensei que queria sonhar com a Grécia. Queria mesmo, portanto, programei-me para isso. Daí, a conseguir, era um passo gigantesco. O facto é que adormeci profundamente, tanto que, acordei bruscamente, com o Henrique a chamar por mim. Lembro-me de ter tido noção de acordar de um sono muito profundo, que me estava a saber muito bem. Por sinal, até fiquei um pouco irritada, mas resolvi o problema dele, levantei-me para ir buscar um copo de água, olhei para o relógio, porque queria continuar a dormir e de repente lembrei-me que estava a meio de um belo sonho. Sonho esse que estava numa parte muito bonita, quando foi abruptamente interrompido. Então concluí que não devia ter acordado, porque queria continuar a dormir e a sonhar, mas a sonhar aquele mesmo sonho. Voltei rapidamente para o meu aconchego, fechei os olhos com muita força e disse para mim mesma que tinha que entrar no sonho, no sítio onde estava. Também estava claro no meu consciente que isso era uma utopia, mas de um jeito quase infantil, decidi descartar essa hipótese e acreditar que seria possível. Quanta loucura!

 

O facto é que voltei a dormir e quando acordei, percebi que tinha entrado novamente no sonho, no mesmo sonho que, por sinal, tinha tido continuação. Lembro-me de acordar e ficar tão espantada com tal situação, que pensei comigo mesma "e não é que entrei no mesmo sonho, sem que tivesse havido interrupção!". Achei aquilo absolutamente fantástico. Nunca me tinha acontecido e nunca pensei que fosse possível.

 

Mas o reino do fantástico não fica por aqui. Quando acordei, de ambas as vezes, foi como se tivesse acabado de chegar daquele lugar do sonho. Era uma sensação de que tinha acabado de chegar a casa, ao meu corpo, porque era tudo muito real. De facto, eu tinha estado lá e como, mas isso só mais tarde saberia. Para todos os efeitos, naquele momento, tinha regressado de algures que eu não sabia onde era, mas que tinha sido perfeitamente real. E até aí só achava curioso o facto de ter conseguido voltar ao mesmo sonho, à mesma cena, depois de já ter acordado.

 

Revi o sonho várias vezes, como um filme. Havia uma casa, mais casas e paisagens. Mar. Mar lindo. Muitas paisagens lindas. No meio desse filme apareciam uma série de flashes instantâneos, como se uma janela se abrisse. Mas eram de uma beleza tão grande que me ficaram bem marcados. E passavam pela minha lembrança, que as retinha, em prol da beleza, pensando onde é que eu teria ido buscar tudo aquilo, ou melhor, onde é que eu tinha estado? Essa era a pergunta certa.

 

Enfim, nunca suspeitei de nada. Achei que era uma coisa fantástica ter tido um sonho maravilhoso, com tanta coisa deslumbrante, mas era só isso. Onde o sonho me tinha levado eu não fazia a menor ideia. Mas havia como que uma certeza de que aqueles lugares existiam, apenas e somente pela clareza com que os tinha visto, pela força da sensação de presença física que me tinha marcado ao acordar e mais nada.

 

Foi como se eu tivesse ido ao cinema e tivesse assistido a um filme com um intervalo.

 

As coisas que a nossa mente prodigiosa consegue!


O tempo foi passando e julho chegou, trazendo a minha tão esperada viagem. O Riaz estaria à minha espera no aeroporto de Atenas, conforme planeado e depois apanharíamos um "overcraft" ou outro daqueles barcos maravilhosos que vão para as ilhas.

 

Sete horas da tarde, 36 graus centígrados, o Riaz chama um táxi. Estamos em Hermíoni, a caminho de casa. Cansada, mais propriamente por conta do calor e da emoção, do que de outra coisa qualquer. Depois de matar as primeiras saudades, fico a ver a paisagem. Acomodo-me e tento relaxar, enquanto o táxi percorre aquelas estreitas estradas da ilha, com características muito portuguesas. Está quase, quase, a cair a noite. Mais meia hora e estará escuro. O táxi vai fazendo o percurso numa estrada cheia de curvas que me mostra o mar, tão bonito e o horizonte cheio de cor, bem como o pôr-do-sol. E de repente, entre uma curva e outra, abre-se uma clareira, na qual se insere um quadro da natureza, de uma beleza indescritível. Foi como um flash. Olhei para trás para agarrar aquela vista, mas já tinha passado. Só que, apesar disso, eu já tinha visto aquele mesmo cenário, aquele mesmo flash. Eu vi. Enquanto isso, já noutra curva, eis que aparece outro cenário maravilhoso, noutra perspetiva da ilha, tão bonita quanto a outra e eu sei que já vi antes. E repetem-se. Parecem slides a passar à minha frente. É lindo. E outro e outro.

 

Pois vi, eu sei que vi... no sonho. O sonho que tive um dia durante a sesta, em que me programei para sonhar com a Grécia. Quando acordei, percebi que tinha estado em espírito, num lugar muito belo, mas não sabia onde era. Aí estava ele. Afinal a minha programação não falhara. Se acreditássemos a cem por cento em nós, a nossa área de conhecimento seria bem diferente. Bom, mas isso é utopia. Se assim fosse não seríamos homens, mas sim deuses e por enquanto não somos deuses, somos apenas um "projecto" - o homem - o sonho dos Deuses.

 

O inconsciente é um poço de surpresas.

 

Oito e meia da noite, o táxi pára. Chegámos àquela que seria a nossa casa durante as minhas férias. Estava escuro, não se via grande coisa e eu estava cansada e agitada, com tanta novidade. O local não era especialmente iluminado. Passei o jardim e entrei em casa. Vieram os irmãos do Riaz dar-se a conhecer e fazer a sua saudação muçulmana, para logo depois se retirarem. Entrei, arrumei a bagagem. Vi a casa, orientei-me. Da janela ouvia o mar, o mar que sempre ouvia quando falava com o Riaz ao Telemóvel e com que eu tanto sonhava. Descansámos, falámos e dormimos. No dia seguinte continuei a acomodar-me e não pararam as apresentações. Não era a portuguesa, mas sim a portugália, mulher do Riaz, que toda a gente queria conhecer e eu ainda me sentia cansada, mas então veio o dia seguinte, o segundo dia.

 

Manhã cheia de sol - "Kalimera" - o Riaz dá-me os bons dias e quer que me levante para ver a ilha. Levanto-me, enfio o meu vestido comprido azul, de algodão indiano, leve e solto, meio transparente e abro as janelas de madeira pintadas de azul, tão características das ilhas gregas.

 

Huau! Já me tinha esquecido. Tenho um jardim lindíssimo, só para mim, cheio de árvores carregadas de flores e roseiras lindas, divinamente perfumadas. Isto tudo só para mim. E o mar! A praia mesmo ao fundo do meu jardim. A minha praia privativa. Saio de casa, os irmãos do Riaz já saíram para ir trabalhar, excepto o Taj, o mais novo, saúda-me - "Salamalecum" madame - retirando-se rapidamente para dentro de casa. Enquanto eu estiver ali, ele não poderá permanecer cá fora. Regras de outras culturas. 


Encaminho-me para a praia, a minha praia. Caminho um pouco sobre as pedras cuidadosamente polidas por quantos pés já ali passaram, por quantas ondas já ali bateram. São suaves, óptimas para massajar a planta do pé e a água chega até mim, devagar, de mansinho, quente... tudo isto é um sonho. Tudo na medida certa, tudo de bom tamanho, mas muito mais do que pedi a Deus. Até custava a acreditar, tudo aquilo só para mim. Tiro rapidamente o vestido e mergulho na água, sem o menor esforço. A água é quente, quente como eu gosto. O Riaz fica a ver e a tomar conta de mim, pois a mulher de um muçulmano não pode ser observada por nenhum outro homem. É uma falta grave que dá direito a morte. Só que eu estou ali para fazer tudo, tudo o que me apetece, tudo a que tenho direito. São as minhas sonhadas férias na Grécia. E todas as regras vão ser quebradas ou pelo menos, quase todas.

 

Saio da água, enfio o meu vestido azul de algodão indiano, porque não posso ficar exposta, sem roupa. A mulher de um muçulmano, nunca. Mas só estamos no primeiro dia. Devagar, devagarinho, com o passar do tempo, as coisas vão ao sítio e eu conheço o meu homem.

 

O Riaz ficou sentado a fumar e eu aproveitei para caminhar um pouco. Caminhei até ao hotel mais próximo, sempre pela beira da água. Todos sabiam já quem eu era, a mulher europeia do Riaz.

 

Continuei a caminhar, sozinha. Já não se avistava ninguém. Parei, olhei para trás e aí estava ele, o meu sonho. A casa, as outras casas, os jardins, a praia, agora sim, estava certa. Não era a primeira vez que via tudo aquilo e não era a primeira vez que estava ali. Naquela tarde em que dormi e sonhei, não foi só um sonho. Eu tinha estado ali em espírito, por isso a minha sensação de presença física era tão forte. Eu já conhecia aquele lugar. Ah, mas isso era apenas a primeira metade do meu sonho, porque chegava ali e parecia que tudo acabava. Provavelmente, a segunda metade era fantasia do meu subconsciente, de tanto querer continuar o mesmo sonho. Mas isso era o que eu pensava.

 

Passaram-se uns dias e contei ao Riaz o meu sonho. Ele achou graça e disse-me que havíamos de encontrar a segunda parte. Rimos juntos e as coisas ficaram por aí, até que um dia, os dois juntos, caminhámos até àquele mesmo sítio onde parecia que tudo terminava. Mas o Riaz fez-me sinal para o seguir, dizendo que do outro lado era muito bonito. Eu duvidei, dizendo-lhe que não podia ser, que ali já não havia por onde ir. Como ele continuou a caminhar, limitei-me a segui-lo, sem me importar para onde ia e fui atrás dele, sempre com a cara no chão, para ver bem onde punha os pés. 


Passámos umas pedras grandes e o sol apareceu de frente. Parei para proteger a cara da luz, fui-me virando e realmente o Riaz estava certo. Eu nem queria acreditar no que via. Era um sossego e uma paz do outro mundo. Praia a perder de vista, tão calminha que parecia um lago. Casas super luxuosas, como eu sempre sonhei, todas envidraçadas, as pessoas estavam lá dentro como se estivessem ao ar livre. Eram alemães, na sua maioria, explicou-me ele. Não havia uma casa em cima da outra. Cada uma era uma ilha isolada, sem interferência das outras, no entanto, ninguém precisava de se esconder, as pessoas respeitavam o espaço dos outros e a vida de cada um. 


Aquilo era outro mundo, o mundo dos milionários, talvez, mas era bonito. A mim bastava-ma a casa de quatro divisões, onde estava instalada, com um jardim à volta e a praia em frente. Sem dúvida, era o meu paraíso, mas aquele lado da ilha, de outro ponto de vista, era soberbo. Além disso, era a segunda metade do meu sonho e isso era, sem dúvida, relevante para mim. Agora estava tudo encaixado, tudo explicado e eu sabia que aquela viagem tinha sido um presente dos deuses.

 

Sem falsa modéstia, na Grécia fui tratada como uma rainha. Comi deliciosos manjares feitos especialmente para mim. Ofereceram-me as melhores frutas que já comi. Na Grécia, as crianças dançaram para mim. As pessoas vinham-me cumprimentar e elogiavam-me de todas as maneiras e feitios, bem como os meus vestidos e os meus chapéus e de tudo fizeram para que eu me sentisse em casa. Uma verdadeira conspiração holística.

 

Aquele sonho estava impresso num pergaminho bem real - a vida.

 

Escrevi às minhas colegas dizendo "Se os deuses um dia passaram pela terra, é certo que reservaram este lugar para seu deleite e prazer".

 

terça-feira, 13 de abril de 2010

No combóio - 20


Eu vinha de casa do meu pai, em Queluz, para a estação do Rossio, em Lisboa e não tinha levado o carro por qualquer motivo que não me lembro. O sol tinha-se posto e a noite estava a cair. 

Naquela altura havia assaltos em série nos comboios e eu estava sozinha. Cheguei à Estação e não havia vivalma. Enquanto o comboio dava entrada na gare fui percorrendo com o olhar todas as carruagens, a fim de encontrar uma que tivesse gente, apenas para me sentir mais segura. Mas não tive sorte, porque cada carruagem que passava estava mais vazia do que a anterior. Comecei a sentir-me desconfortável, mas não tinha alternativa possível, pois precisava de regressar a casa.

Finalmente o comboio parou. Olhei a estação de uma ponta a outra e não via gente a entrar. Pelo contrário, havia gente que saía. Passei uma e outra e nada de ver gente. Pessoas completamente isoladas, o que não me agradava nada. Não sou muito medricas mas em ocasiões de crise, as coisas mudam de figura. Tinha que me decidir e pelos vistos, tanto fazia. Ganhei coragem e entrei numa carruagem que me pareceu ter três ou quatro pessoas. Azar! Entrei por uma porta e saíram por outra.

Havia um indivíduo sozinho, sentado, de cigarro na mão. Dei uma olhadela rápida, tinha um aspecto horroroso, de mafioso. Podia até ser inofensivo, mas que tinha bastante mau aspecto, em todos os sentidos, isso tinha. E eu tinha acertado em cheio. Pior, seria difícil.

Saiu toda a gente e fiquei sozinha com ele na imensa carruagem. Senti uma vontade muito grande de sair novamente. Mas para quê? Daria muito nas vistas e precisava de chegar a casa. Rapidamente, tive que pensar o que fazer e que atitude tomar. O comboio apitou e começou a andar. Senti-me a criatura mais desamparada do mundo. O mafioso levantou-se, olhou para mim de lado, com cara de poucos amigos e sempre com a mão no cigarro ao canto da boca, torcendo os lábios todos, expelia a fumaça para o ar.

Eu estava aterrada, mas não podia deixar transparecer demasiado. Naquele momento eu estava nas mãos dele. Podia não acontecer nada, mas eu precisava de uma garantia. Pensei para comigo mesma que era preciso agir de maneira inteligente, sem dar um passo em falso e foi então que tive uma ideia, a única saída possível: meter-me na boca do lobo e fazer dele um herói. Em vez de me tornar uma potencial vítima, virar o jogo, dando-lhe a oportunidade de ser responsável por mim. Era um voto de confiança e um enorme elogio que acabava de lhe fazer, assim ele entendesse o recado.

Aproximei-me dele com o olhar no chão e o ar mais humilde deste mundo, dizendo-lhe: "Desculpe, estou sozinha e assustada por causa da onda de assaltos. Posso ficar aqui perto de si?" Após esta súplica, que para mim era um verdadeiro suplício, estava na hora de enfrentá-lo cara a cara. Levantei o rosto do chão e olhei para ele de frente, olhos nos olhos, com toda a coragem que fui capaz de inventar.

Senti um arrepio pela espinha acima. O homem deu uma última fumaça nojenta, com o ar mais sórdido deste mundo. Deitou o cigarro pela janela, fitou-me de frente e mirou-me de alto a baixo com uma enorme rudeza, expressando todo o seu desprezo numa arrogância irónica - que até podia não ser por mim, mas por ele mesmo, pela vida -, enquanto eu aguardava o veredicto. 

Não fazia ideia qual seria a reacção dele, mas era a minha única cartada e esperava que resultasse. Fiquei quietinha, olhos novamente no chão e rezei para que ele não pensasse que eu estava na reinação com ele e levasse o assunto a sério.

Finalmente voltou a sentar-se, dizendo, "sente-se aí que ninguém lhe vai fazer mal".

Respirei aliviada, sentei-me e disse que lhe ficava muito grata, como convinha.

Quando saí do comboio enfiei pelo meio da multidão e acho que nunca gostei tanto de me ver rodeada de gente por todos os lados.

Estava livre.


A Teresa - 19


A minha nova casa estava em obras. Foi logo a seguir ao divórcio e por força das circunstâncias tive que ficar acomodada com o meu filho, em casa de uma amiga que tinha um quarto disponível, onde permanecemos durante seis meses. 

A Teresa era bastante minha amiga mas era muito temperamental. Tinha dois lados. Um, muito divertido e outro muito impulsivo, que levava tudo à frente dela e não olhava a meios para atingir os fins. Quando estava nessa fase era terrível. Fora isso, era uma grande companheira, prestava-se a qualquer brincadeira e era o máximo. 

Tinha um namorado de há bastante tempo e tinha um segundo emprego que era um negócio dele com outros sócios. Portanto, todos os dias se viam. Para além disso, de vez em quando ele ia a casa dela e uma vez por outra ficava lá, mas era raro. E ainda se falavam muitas vezes por dia via telefone. 

Claro que se chateavam com frequência, até porque ele era casado e não estava com ela sempre que ela queria e outras coisas mais. Mas um dia tiveram uma zanga forte, como tantas outras a que não assisti e ela ficou muito aborrecida. Quando chegou, eu já estava em casa e percebi imediatamente que tinha havido tempestade brava. Trocámos algumas impressões sobre o assunto e tentei acalmá-la. Ela não me ouvia, estava com muita raiva, praguejava, rogáva-lhe pragas, etc. 

Na expectativa de a acalmar, comecei a contornar a coisa de modo a desdramatizar as atitudes que ela condenava nele. Mas ela não cedia, nem queria saber de nada do que eu dizia. A resposta é que eu não o conhecia, ela é que o conhecia e sabia o que ele era, etc. Nesse aspecto tinha toda a razão. Eu já o tinha visto pessoalmente mas, na realidade, não o conhecia. 

Depois de ouvir a história toda que ela contou concentrei-me, visualizei a pessoa dele e tentei ver o que se passava. A primeira coisa de que me apercebi é que ele estava à procura de um telefone público para lhe ligar, dado que ainda não havia telemóveis. Ela dizia que isso nunca poderia acontecer, porque não era do feitio dele. Garanti-lhe que isso estava a acontecer e ele ia telefonar para ver se a situação se compunha. Ficou a olhar para mim com os olhos muito abertos. Não disse, mas eu li no pensamento dela que estava desconfiada. E antes que mais alguma coisa fosse dita o telefone tocou. Intrigada, dirigiu-se para ele. Pôs a mão em cima e ficou indecisa. Insisti para ela atender, porque que era ele. Estava na estrada, a caminho do Algarve, onde ia deixar a mulher e o filho e, em princípio, ficaria lá o fim de semana.  

Enquanto ela continuava a olhar para mim, na dúvida se atendia ou não, apressei-a, repetindo-lhe que ele estava numa praça pública, com o carro parado de porta aberta e queria falar com ela antes de prosseguir a viagem. Ela dizia que não podia ser, mas num impulso levantou o auscultador. Quando ouviu a voz dele ficou paralisada, com uma cara assustada, a olhar para mim como se eu fosse conivente com ele, coisa que jamais poderia acontecer. Ele falava e ela balbuciava apenas, mas aos poucos ia cedendo, enquanto eu lhe fazia sinal para o ouvir e lhe dar atenção. Finalmente acabaram por se entender um com o outro. 

Ela desligou e ficou visivelmente mais calma, mas olhava para mim com um ar inquisidor, sendo a sua única preocupação, o facto de que não compreendia como é que eu sabia, porque ele não era de ter reacções daquela natureza. Eu não sabia. Limitei-me a concentrar-me para tentar entrar no campo da energia dele, mas ela não tinha a menor ideia do que isso era. Estava pensativa e muito intrigada. Disse-lhe que o que importava é que ela deveria estar mais calma porque, afinal, ele tinha tido a atenção de lhe ligar e desse modo as coisas estavam a compor-se. 

Mais tarde, ela começou a ficar novamente agitada e a andar meio desnorteada de um lado para o outro, até que me vi na obrigação de interferir uma vez mais perguntando-lhe novamente o que é que se estava a passar. Ela queria testar-me, pôr-me à prova. Fiquei indignada, mas era de prever e lembrei-lhe que éramos amigas, pelo que não havia razão para ela ficar desconfiada fosse do que fosse. Não havia motivo. Mas ela não tinha como sossegar de maneira nenhuma e começou a desafiar-me. Queria saber o que é que ele estava a fazer, onde é que estava, etc. Respondi-lhe que não era bruxa e que a finalidade era unicamente ajudá-la. Mas ela não estava confiante, nem um pouco. 

Em todo o caso, a fim de tranquilizá-la, voltei a concentrar-me e a procurar a sintonia com ele. Disse-lhe que ele estava novamente na estrada, sozinho e de regresso a Lisboa. Ela começou a barafustar comigo, muito chateada, dizendo que eu estava a enganá-la. Respondi-lhe que não tinha a menor intenção. O que estava a acontecer é que ele tinha mudado de rumo e se dirigia a casa dela para ficar com ela nessa noite. Ela estava completamente perdida. Ele não costumava ter reacções assim, de voltar atrás nas decisões que tomava e ela achava estranhíssimo que, além da atitude dele não se compadecer com o que era habitual, eu saber aquilo tudo, com detalhes minuciosos, como ela mesmo dizia. Eu também não sabia. Agora ela estava duplamente irritada, com ele e comigo e eu continuava insistindo que só queria ajudá-la, mais nada. 

Cansada, pedi-lhe desculpa, mas precisava de me deitar, apesar de ser sábado. Estava cansada e também agitada por conta de tudo aquilo. Ela ficou na sala a ver televisão. Eu estava quase a dormir, quando ouvi alguém meter a chave à porta. Assustei-me, mas logo percebi que só podia ser ele. Eu estava certa e isso eu sabia, mas o que se seguiria, isso veríamos. Ouvi uma troca de conversa não muito longa, em voz baixa e depois adormeci. 

No outro dia quando me levantei não ouvi barulho e a porta do quarto dela estava entreaberta e tudo escuro. Não fiz barulho e como o Henrique não estava comigo, estava com o pai, saí e fui ao supermercado. Demorei bastante e quando voltei ela estava em robe, na cozinha. Peguei nas compras e fui direita à cozinha para guardar o que tinha comprado. A minha primeira impressão foi que ela estava calmíssima. A tempestade tinha passado. Parecia que eu tinha sonhado com tudo o que acontecera na noite anterior. A porta do quarto dela estava aberta e não havia vestígios dele. Comentei com ela as coisas que tinha trazido e ofereci-lhe manga, que ambas adorávamos. Ficou parada com os olhos fixos em mim, como se eu tivesse cometido um crime e queria saber o que raio se passava entre mim e ele porque, para ela, não havia outra explicação para o facto de eu saber com toda a exactidão o que ele fazia ou pensava. A ela nunca tinha acontecido aquilo. Era impossível alguém saber da vida do namorado dela, o que nem ela mesma sabia. Eu disse-lhe que não tinha a menor intenção de querer saber e frisei uma vez mais, que a questão era apenas ajudá-la. Mas aquilo não entrava na cabeça dela de jeito nenhum. Senti-me mal e muito desconfortável, até porque eu nem simpatia tinha por ele. 

Enfim, ficou no ar uma situação muito embaraçosa. Mas seguiram-se mais. A reacção dela era controversa. Umas vezes mostrava-se interessadíssima e fazia até notar que precisava de mim, achando que eu lhe era muito útil. Outras vezes ficava furiosa, achando que eu tinha uma faculdade que ela não tinha e queria à força, como se fosse possível "comprar" aquela coisa para ser só dela. 

Aquela coisa era simplesmente a particularidade de se despojar do ego para se concentrar numa determinada energia. O que limita essa passagem é o ego e para muita gente não é fácil pôr de lado o ego. Somos sempre nós e o nosso ego. Não somos capazes de dar espaço a nada e a ninguém. O ego encobre, disfarça, ainda que aparentemente. Mas descarta qualquer possibilidade de aceder a outros planos, a outra dimensão. E as pessoas que julgam que podem passar por cima de tudo e todos para serem "premiadas", estão completamente enganadas. Cada um tem exactamente aquilo que merece. 

 

segunda-feira, 12 de abril de 2010

No Brasil - 18


Eu estava de férias no Brasil, com a Lúcia, minha colega e amiga, mais propriamente em Natal, RN, onde estava previsto passarmos quase quatro semanas de boa vida. A ideia era passarmos o Fim-de-Ano na praia, como é da tradição e ficarmos por lá, curtindo o sol, as águas e tudo o mais. 

Foi óptimo, correu tudo bem, divertimo-nos muito, enfim, foi tudo como prevíamos e queríamos que acontecesse. Talvez até tenha excedido as nossas expectativas. Contudo, uns dias antes do regresso, comecei a sentir-me muito inquieta. Sentia uma aflição e não sabia qual a razão. Aparentemente não havia motivo. O Henrique tinha ficado com o pai e já não era criança. Eu falava com eles com frequência e não havia notícias de algo de anormal. Mas que eu estava mal, estava. Tinha-se apoderado de mim uma estranha ansiedade que me fazia querer regressar o mais depressa possível.  

Depois das quase três semanas que ali tínhamos passado em beleza, era uma atitude muito estranha e incoerente da minha parte. O facto é que eu não sabia como explicar a necessidade que de repente sentia de regressar. Não tinha como me justificar mas eu queria voltar, nem que fosse a nado. Eu não estava bem e todo o tempo pensava no meu filho. Dominava-me uma grande aflição que não me dava sossego e me impelia a voltar para junto dele. 

Assim, contei à Lúcia tudo o que estava a sentir e falei do problema tal qual ele se apresentava, correndo o risco de não ser entendida, mas fui em frente. Queria confirmar as passagens e se possível anteceder as datas. Mesmo que fosse um ou dois dias já ficava mais sossegada e fomos aos balcões da TAP. 

Primeiro, as datas do regresso tinham sido automaticamente desmarcadas dado que, na ida, aconteceu uma alteração de percurso, um desvio por Cabo Verde que nos reteve e nos fez perder o vôo de conexão para Natal, sem que ninguém se tenha responsabilizado por isso. Caso não tivéssemos ido à TAP com a antecedência com que eu tanto insistira, não tínhamos vôo de regresso marcado, o que originava termos que ficar em lista de espera sem culpa nenhuma, causando um imenso transtorno nas nossas vidas profissionais e não só. 

Segundo, conseguimos com grande esforço anteceder as passagens e quando cheguei o meu filho estava em repouso, com um esgotamento nervoso. Não quis dizer nada pelo telefone para não perturbar as minhas férias, mas ele precisava de mim e como! 

Eu sabia.

 

A casa do Riaz - 17


O Riaz foi meu companheiro de vida alguns anos. A nossa empatia era muito forte. Nos primeiros dias do nosso conhecimento, num domingo, ao acordarmos, ficámos a conversar um com o outro, sentados na cama.

 

Disse-lhe que tinha sonhado com uma casa que não sabia onde era, onde ficava e nunca lá tinha estado. Ele quis que lhe contasse o sonho e lhe descrevesse a casa. Assim fiz.

 

Descrevi tudo, tal qual tinha visto no sonho, com todos os pormenores. Aliás, descrevi, como se estivesse novamente dentro do sonho, porque me deixei envolver pela mesma atmosfera e pelo mesmo ambiente. Até quase me esqueci de que já estava acordada.


Quando acabei, ele muito simplesmente e com toda a certeza e tranquilidade deste mundo disse, na linguagem dele, "é a minha casa no Paquistão"(!?)...

 

domingo, 11 de abril de 2010

O isqueiro - 16


Eu tinha um conjunto de objectos pessoais, pertencentes a familiares muito chegados, que guardava como recordação. Eles tinham um significado estimativo para mim, por isso os conservava. Entre eles havia um isqueiro que a minha tia me tinha dado. Ela fumava apenas em ocasiões especiais e quando era nova. Para isso tinha um isqueiro dourado, muito bonito, que lhe tinha sido oferecido. 

A Carol, que fazia limpeza na minha casa, coleccionava isqueiros. Segundo ela dizia, tinha um número incalculável e queria sempre mais para a sua colecção. Quando descobriu aquele, ficou encantada e quis saber donde tinha vindo, etc. Ela pegava nele com muita avidez e queria à força que lho desse. Disse-lhe sempre que não podia, porque era especial, mas ela era insistente e continuava a fazer um choradinho a que eu não dava ouvidos, porque nunca lhe daria o isqueiro, era sabido. 

Um dia, por acaso, reparei que o isqueiro não estava no sítio. Procurei por toda a parte, sem sucesso. Comecei a ficar chateada, sem saber o que fazer para achar o isqueiro. Dava voltas e mais voltas mas não conseguia entender como o isqueiro tinha desaparecido. O facto é que sumira. Não era o fim do mundo, mas aquilo não me agradava. Tinha que haver uma explicação. 

Quando a Carol veio perguntei-lhe se ela sabia onde tinha posto o isqueiro, mas ela respondeu que não o tinha visto. Achei aquilo esquisito. Ela sempre pegava nele, sempre me chateava com o isqueiro e agora simplesmente dizia que não o tinha visto?! Não estava a gostar daquilo. Tê-lo-ia ela levado? Ela não me pedia só o isqueiro, estava constantemente a pedir-me coisas: roupas, malas, bijuteria, sei lá, não havia nada meu que ela não quisesse. Quando eu podia dava-lhe, quando não podia ser, não podia mesmo. Teria ela levado o isqueiro por sua conta e risco? Atrever-se-ia a uma coisa dessas?  

Era verdade que ela estava cada vez pior em tudo, não fazia nada de jeito e chegava sempre atrasada. Às vezes nem aparecia. Ganhava um dinheirão e as coisas não estavam a resultar. Mas aquela cena do isqueiro era demais. Também era verdade que arranjava sarilhos por todo o lado e depois vinha chorar e pedir que lhe desse dinheiro adiantado, porque fazia imensas dívidas e não queria que o marido soubesse, nem os pais, e tinha-se metido com o homem da papelaria do rés-do-chão do meu prédio... enfim, realmente eu não sabia porque continuava a aturá-la, mas seria ela tão estúpida a ponto de ter ficado com o isqueiro? Tinha que tirar as coisas a limpo. Mas não podia acusá-la, isso não. Precisava de ter a certeza antes de falar com ela novamente, porque agora ia doer. Mas como? 

Nessa noite, deitei-me a pensar naquele assunto e em como resolvê-lo, sem fazer nada de que me viesse a arrepender. Não podia cometer nenhuma injustiça. As coisas podiam não ser o que pareciam. Quando tudo aponta para um lugar, ainda assim pode ser que esteja errado. A verdade é que eu nunca ia poder saber. Dei um tempo para que o isqueiro aparecesse fosse de onde fosse, posto que, findo esse tempo, falaria com ela seriamente. 

Todos os dias pedia a Deus que me iluminasse, que me mostrasse o caminho e sobretudo, não me deixasse levantar falsos testemunhos, que isso eu não ia suportar. E como estavam esgotadas as possibilidades naturais, pedi auxílio do sobrenatural, isto é, pedi ao Universo que me trouxesse uma resposta em quarenta e oito horas, que era o tempo que eu tinha para falar com ela. 

Estava esgotado o prazo. Nesse dia, ao fim da tarde, falaria com ela. Fiz a minha vida normal, mas sempre a pensar naquele assunto, que me parecia de resolução impossível e incomodava-me de sobremaneira a hipótese de ela ter levado o isqueiro e também a possibilidade de ter de confrontá-la sem volta. Não gosto nada destas situações, mas não podia permitir semelhante coisa. O facto é que ela era muito abusadora e me dava todas as razões do mundo para a culpar. Mas eu não a tinha visto levar o isqueiro, por isso era-me muito difícil acusá-la. 

Um pouco antes da hora do almoço o meu telefone tocou. Era o Victor, um amigo de longa data a convidar-me para almoçar com ele, porque estava nas redondezas e o dia estava muito bom para sair. Não me apetecia nada, mas ele praticamente não me deu tempo. Tratou de marcar o lugar e a hora antes que eu dissesse que não, de modo que lá fui ter com ele ao local combinado. Pelo caminho pensei que o melhor era esquecer o assunto, pelo menos enquanto almoçava, já que ele não tinha nada a ver com o assunto e também porque já não havia realmente nada que pudesse ser feito para alterar o quadro. 

Cheguei, fui ao encontro dele, que já estava sentado a uma mesa e pedimos os pratos. Vieram as bebidas, ele puxou do cigarro e antes que eu começasse a falar, adiantou-se e disse "antes de mais, quero pedir-te desculpa porque tenho aqui no bolso o isqueiro que me emprestaste quando estive na tua casa e sem querer levei comigo. Só depois é que dei por isso"(?). 

Estava explicado o desaparecimento do isqueiro no prazo que eu tinha determinado, quarenta e oito horas e a Carol, apesar de tudo, não tinha mesmo nada com o assunto. Eu estava longe da possibilidade de alguém o ter levado porque, sem ser o Victor, ninguém frequentava a minha casa e mesmo ele, era muito raro. Só quando ele me passou o isqueiro para a mão é que me lembrei daquele pormenor, dele ter lá estado e lho ter emprestado enquanto estávamos na varanda a conversar. Estava completamente esquecida disso, que fazia toda a diferença. 

Com isto, saiu um peso enorme de cima de mim. Respirei fundo e agradeci ao Universo, não tanto pelo aparecimento do isqueiro mas, especialmente, pela ajuda que me dera, independentemente do assunto que era. 

Quando tudo parece que escapa às nossas fracas possibilidades, ainda nos resta a conexão Divina, independentemente do que quer que seja. E isso deveria estar sempre presente em nós. 

A isso se chama "fé".


sábado, 10 de abril de 2010

O Chinês - 15


O jantar estava já no fim quando ele chegou. Vi-o ao entrar a porta e pensei "é chinês". Falou com os organizadores e sentou-se na minha frente, onde havia um lugar vazio. Fez o pedido e falava bom português, sem qualquer sotaque. Pensei "enganei-me, não tem nada de chinês, é bem português e ponto final". 

Mas eu olhava para ele e continuava a achar que parecia chinês. Havia umas coisas, mas eram tão subtis, isto é, tinham tão pouca consistência, por exemplo, era de pequena estatura como os chineses em geral, mas como um monte de portugueses também; tinha o cabelo muito curto e como era liso ficava todo espetadinho, como muitos portugueses também têm e tinha andar de chinês, achava eu, mas isso poderia ser uma "chinesice" minha.  

Por outro lado, não lhe achava nada de chinês. Não tinha olhos de chinês, não tinha nenhuma característica física que o identificasse como chinês, nem uma só para amostra. Que parvoíce a minha em achar que o homem era chinês, o sr. Carlos, como o trataram. Nem o nome era chinês, logo, eu estava com invenções. Não sabia de onde me tinha vindo aquela fantasia, mas não conseguia deixar de o ver como chinês. 

Levantei-me para ir ao WC e quando voltei ele estava sentado numa cadeira ao meu lado direito. Como o espaço era apertado, pedi licença para passar. Ele levantou-se e apressou-se a dizer que o tinham mandado sentar ali. Percebi que estava atrapalhado e disse-lhe que tinham feito muito bem, que estava muito bem ali ao meu lado e deu um sorriso desajeitado. Era óbvio que era tímido. 

A dançarina entrou e vieram os aplausos. Era uma garota muito nova e engraçada. Começou o espectáculo e algumas pessoas tiraram fotografias. Então ele perguntou-me se gostava de dança do ventre. Disse-lhe que sim e que eu mesma já tinha dançado. Fez-me várias perguntas sobre as danças e fui respondendo conforme sabia. Depois perguntou-me sobre os homens. Disse-lhe que os homens eram igualmente muito bons dançarinos, mas no ocidente, especialmente na Europa, não era comum. No Brasil já havia muitos.  

Depois perguntou-me se eu já tinha vivido noutro país. Respondi-lhe que não, a não ser em criança, que tinha estado em África. Ele disse que era funcionário público reformado, que trabalhava num Ministério e que, por motivos de trabalho, tinha vivido dois anos na China... 

Há coisas que não se explicam(?!).