terça-feira, 13 de abril de 2010

No combóio - 20


Eu vinha de casa do meu pai, em Queluz, para a estação do Rossio, em Lisboa e não tinha levado o carro por qualquer motivo que não me lembro. O sol tinha-se posto e a noite estava a cair. 

Naquela altura havia assaltos em série nos comboios e eu estava sozinha. Cheguei à Estação e não havia vivalma. Enquanto o comboio dava entrada na gare fui percorrendo com o olhar todas as carruagens, a fim de encontrar uma que tivesse gente, apenas para me sentir mais segura. Mas não tive sorte, porque cada carruagem que passava estava mais vazia do que a anterior. Comecei a sentir-me desconfortável, mas não tinha alternativa possível, pois precisava de regressar a casa.

Finalmente o comboio parou. Olhei a estação de uma ponta a outra e não via gente a entrar. Pelo contrário, havia gente que saía. Passei uma e outra e nada de ver gente. Pessoas completamente isoladas, o que não me agradava nada. Não sou muito medricas mas em ocasiões de crise, as coisas mudam de figura. Tinha que me decidir e pelos vistos, tanto fazia. Ganhei coragem e entrei numa carruagem que me pareceu ter três ou quatro pessoas. Azar! Entrei por uma porta e saíram por outra.

Havia um indivíduo sozinho, sentado, de cigarro na mão. Dei uma olhadela rápida, tinha um aspecto horroroso, de mafioso. Podia até ser inofensivo, mas que tinha bastante mau aspecto, em todos os sentidos, isso tinha. E eu tinha acertado em cheio. Pior, seria difícil.

Saiu toda a gente e fiquei sozinha com ele na imensa carruagem. Senti uma vontade muito grande de sair novamente. Mas para quê? Daria muito nas vistas e precisava de chegar a casa. Rapidamente, tive que pensar o que fazer e que atitude tomar. O comboio apitou e começou a andar. Senti-me a criatura mais desamparada do mundo. O mafioso levantou-se, olhou para mim de lado, com cara de poucos amigos e sempre com a mão no cigarro ao canto da boca, torcendo os lábios todos, expelia a fumaça para o ar.

Eu estava aterrada, mas não podia deixar transparecer demasiado. Naquele momento eu estava nas mãos dele. Podia não acontecer nada, mas eu precisava de uma garantia. Pensei para comigo mesma que era preciso agir de maneira inteligente, sem dar um passo em falso e foi então que tive uma ideia, a única saída possível: meter-me na boca do lobo e fazer dele um herói. Em vez de me tornar uma potencial vítima, virar o jogo, dando-lhe a oportunidade de ser responsável por mim. Era um voto de confiança e um enorme elogio que acabava de lhe fazer, assim ele entendesse o recado.

Aproximei-me dele com o olhar no chão e o ar mais humilde deste mundo, dizendo-lhe: "Desculpe, estou sozinha e assustada por causa da onda de assaltos. Posso ficar aqui perto de si?" Após esta súplica, que para mim era um verdadeiro suplício, estava na hora de enfrentá-lo cara a cara. Levantei o rosto do chão e olhei para ele de frente, olhos nos olhos, com toda a coragem que fui capaz de inventar.

Senti um arrepio pela espinha acima. O homem deu uma última fumaça nojenta, com o ar mais sórdido deste mundo. Deitou o cigarro pela janela, fitou-me de frente e mirou-me de alto a baixo com uma enorme rudeza, expressando todo o seu desprezo numa arrogância irónica - que até podia não ser por mim, mas por ele mesmo, pela vida -, enquanto eu aguardava o veredicto. 

Não fazia ideia qual seria a reacção dele, mas era a minha única cartada e esperava que resultasse. Fiquei quietinha, olhos novamente no chão e rezei para que ele não pensasse que eu estava na reinação com ele e levasse o assunto a sério.

Finalmente voltou a sentar-se, dizendo, "sente-se aí que ninguém lhe vai fazer mal".

Respirei aliviada, sentei-me e disse que lhe ficava muito grata, como convinha.

Quando saí do comboio enfiei pelo meio da multidão e acho que nunca gostei tanto de me ver rodeada de gente por todos os lados.

Estava livre.


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