Meu filho
Henrique, filho único por opção e não por qualquer outra razão, foi sempre uma
criança muito inteligente. É claro que todas as crianças são inteligentes e
especiais para os pais, mas eu percebia que ele era esperto, inteligente e
sensível, tudo mais da conta. Tímido, também, mas só até se sentir seguro, o
que não levava muito tempo e então virava o oposto da timidez. Mas isso não vem
ao caso. O facto é que ele era bastante esperto. Eu fazia testes de toda a
ordem, a que ele respondia da forma mais eficiente e pronta possível.
Acontece que
eu era muito preocupada com ele e sempre tentei dar o meu melhor como mãe. E
isto significa dar todo o tempo possível, toda a atenção, amor, carinho, cuidar
bem da sua alimentação, estar atenta a todas e quaisquer necessidades dele à
medida do seu crescimento. Claro que isto é o que qualquer mãe normal faz ou
tenta fazer. Com a vida do dia a dia sempre a correr, na verdade faz-se o que
se pode e é preciso muita ginástica, muita paciência, muito tudo. De facto,
muitas vezes me deparei com mães bem menos preocupadas que eu. Mas cada um é
como é. E eu não tive um filho por um acaso do destino. O meu filho é produto
de uma relação pensada, ponderada e portanto, veio na altura em que foi
planeado, como muitos outros casais fizeram e fazem.
No
seguimento da minha sempre e constante preocupação, eu queria encontrar
respostas para tudo o que se relacionava com ele e tentar ser perfeita, como se
isso pudesse ser possível. Hoje sei que isso é uma utopia, mas na altura eu
achava que tinha que ser uma mãe perfeita e pronto. E dentro desse espírito,
aconteceu um episódio interessante.
Eu tinha um
colega de trabalho, o Tó, que por sua vez tinha um amigo de infância de quem
falava muito. Segundo ele, o amigo era uma pessoa diferente. Tinha capacidades
que mais ninguém tinha. E ele, Tó, já tinha assistido a coisas incríveis,
mirabolantes, o que o fazia ter uma verdadeira admiração por ele, tanto, que
chegava a ficar impressionado e um pouco assustado quando via uma garrafa ou um
objecto de vidro partir-se, segundo ele, apenas através do poder da
concentração do amigo, cujo nome não me lembro. Ele também referia que as
coisas se moviam sozinhas, etc.
Na verdade,
nunca dei muita relevância às coisas que ele relatava porque, nestes assuntos,
na maioria das vezes, as pessoas vêm o que querem ver e ouvem o que querem
ouvir. Eu não estava lá, portanto não podia ser testemunha de nada. Tudo aquilo
era apenas a interpretação que o Tó dava. O que me tocava era muito mais a maneira
como ele via e nos contava as coisas e às vezes eu até ria um pouco com aquelas
aventuras. Eu e os outros, que nem sequer acreditavam, apesar dele estar sempre
a insistir na veracidade dos factos. Longe de mim duvidar dele,
porque não é essa a questão. Não se tratava de acreditar ou não. É preciso
compreender exactamente o que se está a passar e o Tó limitava-se a ver e ponto
final.
Mas o que
importa disto tudo é que ele dizia que o amigo sabia de tudo e dava respostas
incríveis. E que havia muita gente que, sabendo como ele era, queria ir falar
com ele para uma espécie de consulta, mas ele não queria que isso acontecesse,
ou seja, não queria que a sua vida enveredasse por esse caminho e isso eu
admirava no amigo, porque muita gente se diz “vidente” e outras coisas mais,
para viverem disso. O amigo do Tó, pelo menos, tinha a sensatez e a hombridade
de não ser exibido nem se achar dono da verdade, chamando a si pessoas de baixa
auto estima, incutindo-lhes a suas “verdades”.
Num ambiente
de trabalho, em geral, todas as pessoas falam umas às outras dos seus
problemas. Desde o que vão jantar à discussão que tiveram com alguém. É
inevitável. Conhecem-se as doenças e as maleitas de todos e as coisas boas e os
podres uns dos outros. Mesmo quando as pessoas não falam muito, há sempre
conversas telefónicas que não se podem evitar e onde sai tudo sem dó nem
piedade.
Assim sendo,
como eu era uma mãe sempre muito preocupada com o meu filhote, além de outros
problemas à margem que foram aparecendo pela vida fora, e como o Tó era muito
meu amigo, começou a tentar convencer-me de que com certeza eu ia gostar de
conhecer o amigo. A princípio não liguei e realmente não passava pela minha
cabeça uma coisa dessas. Queria lá saber do amigo “doido” do Tó. Eu já o achava
a ele um pouco doido por conta do amigo, ia lá perder o meu precioso tempo para
falar com ele?!
Mas o tempo
foi passando e “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. E assim, um
dia, lá fui eu ter uma conversa com o amigo do Tó, que me ia receber apenas
porque era um pedido dele, só por isso. Bom, tudo bem. Digamos que eu ia lá
mais por uma questão de curiosidade. Mas fui.
Cheguei lá e
era uma casa normal. O rapaz - digo rapaz porque eles eram mais novos do que eu
-, aparentemente, uma pessoa normal. Recebeu-me bem, com muita calma e um clima
de tranquilidade, sempre como colega e amiga do Tó. E sempre sem me olhar muito
de frente, nem nos olhos, cabisbaixo, dirigiu-se para uma mesa, pedindo-me que
me sentasse. Depois, sentou-se na minha frente e assim começámos a falar,
normalmente, sem nada de transcendente. A nossa conversa, como não podia deixar
de ser, começou pelo Tó e o trabalho. Depois, já não sei o rumo que tomou, mas
a páginas tantas, falámos de mim e falar de mim era equivalente a falar do meu
filho. E foi aí que surgiu uma nota curiosa. Eu apenas lhe disse que tinha um
filho. E ele apenas me perguntou o nome e a data de nascimento. Tinha uma
caneta e um bloco de papel onde escreveu os dados que lhe dei.
Atenta,
reparei que transformou todas as letras em números que acrescentou à data do
nascimento e o resultado, não sei como, era um. Escreveu o número um e
sublinhou-o riscando no papel várias vezes. Então, sim, olhou para mim e
começou a falar. Eu não tinha dito nada sobre o meu filho, apenas a data de
nascimento e o nome. E ele disse “o seu filho é um”.
Um pouco
ansiosa, fiquei à espera que ele se explicasse. E olhando para mim, explicou
que ele era uma inteligência acima da média, etc, etc, etc, e explicou porquê,
coisa que eu não estava à espera. Nunca tinha passado pela minha cabeça que as
pessoas são o que são por isto ou por aquilo, ou pelo menos, pela razão que ele
apontou. Que o meu filho tinha sido gerado por “vontade” e não por amor. É
claro que casei por amor, um grande amor e tive o meu filho por causa do amor
que nos unia. Mas o que ele queria dizer era outra coisa. Ele queria dizer que
o meu filho tinha sido concebido num momento que surgiu da vontade de ter
um filho, portanto da vontade de engravidar. E isso era correto. Eu sei
exactamente o dia, a hora, o local. Eu sabia que nesse momento o meu filho ia
ser gerado. Nós queríamos. Por isso eu tinha essa consciência, ou seja, na
altura em que estávamos a ter relações eu sabia que era chegado o
momento da sua concepção. Mas podia ser outro momento? Não, não podia. Era
aquele. Foi naquele dia, naquela hora.
E o que ele
queria dizer era exactamente isso, ou seja, independentemente da nossa relação
ter sido uma relação de amor, nem podia ser de outra maneira, o momento da
concepção tinha sido planeado, tinha sido o resultado de um acto da vontade
soberana. E isso tinha tido um peso enorme no seu ADN (!?).
Nesta
altura, eu estava a falar com alguém que conseguia captar a essência das coisas
e não com o amigo, ou um amigo do Tó. Aquela criatura já era alguém que falava
a minha linguagem. Não era o sujeito amigo do Tó que partia vidros com a
concentração do olhar, nem fazia os objectos se moverem sozinhos. Não foi nada
disso que aconteceu e eu já nem me lembrava dessas coisas. Aliás, nunca foi
minha intenção ir lá para ver alguma coisa que se relacionasse com isso. Se o
Tó via eu não vi. Se o Tó queria ver eu não precisava nem queria ver. Aquela
criatura era apenas um ser humano com uma alma sensível e que tinha a
capacidade de “ver” um pouco mais longe do que qualquer outro simples mortal. E
só por isso já valia a pena ter ido lá.
Depois, ele
perguntou também o meu nome e a minha data de nascimento. Voltou a transformar
aquela coisa toda em números e perguntou-me como é que eu costumava assinar.
Pelo menos ele era original nas questões que punha e isso também era
interessante. E assinei para ele ver. Então sugeriu-me como deveria passar a
assinar. E explicou que era uma questão kármica. Também nunca tinha pensado
nisso, mas a explicação dele não era descabida, fazia algum sentido. E explicou
que a vida me correria melhor se passasse a assinar da maneira como ele
indicou. E voltou ao assunto do meu filhote, dizendo-me para não me preocupar
com ele porque estava tudo bem. “Apenas – dizia -, leve-o, de vez em quando, a
ver um pôr-do-sol”. Um pôr-do-sol (?), repeti – era bonito as coisas que ele
dizia - sim, um pôr-de-sol, para que não corra o risco de ficar demasiado
“cerebral”. Um pôr-do-sol ajudá-lo-ia a “humanizar-se” e a não ficar demasiado
centrado nas coisas que exigem muito trabalho do cérebro. E fiquei a planar com
estas palavras, com esta ideia dele, assim, tão suigéneris, por assim dizer.
No outro dia
voltei ao trabalho e comentei por alto com o Tó e com todo o pessoal, que tinha
gostado de conhecer o amigo dele. Perguntou se tinha achado esquisito e
respondi que não, tudo normal, sem entrar em detalhes.
Um dia, num
belo final de tarde nos Açores, onde íamos sempre passar férias por causa
do meu marido ser açoriano, indo por uma rua abaixo no centro de Ponta Delgada,
S. Miguel, em direcção à marginal, portanto, de frente para o mar e de mão dada
com o meu filho, que era muito pequeno, deparei com um pôr-do-sol magnífico.
Era realmente uma coisa maravilhosa. E quanto mais o apreciava mais
deslumbrante me parecia. Não tinha explicação. Tão bonito que pensei que nesta
altura toda a gente tinha que estar a apreciar uma coisa daquelas, ou seria
sempre assim e eu só tinha dado por isso naquele dia? Aquilo era simplesmente
belo. Não havia palavras que descrevessem um cenário daqueles. Mas também podia
ser exagero meu, sei lá. E segurando na mãozinha do meu filho, vieram-me ao
pensamento as palavras do amigo do Tó. A cena do pôr-do-sol para o “humanizar”.
Como é que uma criança de cinco aninhos observa um pôr-do-sol? Com o mesmo
espanto e a mesma admiração que um adulto? E mesmo os adultos, quantas vezes
referem um pôr-do-sol ou uma outra beleza qualquer, apenas para ficarem bem
vistos, para que os outros os vejam como pessoas bonitas e sensíveis, etc….
(?!) E a mim também me podia ter passado despercebido. Mas não, não era
possível. Apetecia-me gritar para que toda a gente visse o que eu estava a ver.
O céu parecia de veludo azul. Era simplesmente belo! E uma criança tão pequena
também teria essa noção, essa percepção? Talvez esse fosse um momento, o tal
momento certo para chamar a atenção do meu pequeno sobre a magnificência
daquela beleza ímpar!? Como iria ele interpretar e reagir a isso? Seria
importante para ele? Ou seria eu a exagerar, empolgada pelo espírito?
Sempre em
direcção ao mar, com todas estas questões e dúvidas pairando pela minha cabeça,
e antes de ter tempo de falar alguma coisa, da maneira mais surpreendente
possível, com um certo e delicioso espanto, como se tivesse entrado no meu
pensamento, arrancando de mim as palavras que nunca esquecerei, ouço o meu
filhote na sua vozinha de criança: “mãe… a mãe já viu como está bonito o
pôr-do-sol?!”… … …