Eu estava em casa dos meus tios em Beja. Não sei bem porquê. Alguém
achou que era bom eu ir lá passar uns tempos. Nessa altura eles ainda não
tinham filhos, mas havia o Fausto, um rapazito que vivia com eles. Era uma
história esquisita que me incomodava um pouco. Filho de pai incógnito, a mãe
raramente o via. Os meus tios trabalhavam, pelo que só regressavam ao fim do
dia. Em casa ficava a avó Marta, o Fausto e agora eu.
Não havia nada para fazer e eu e o Fausto não tínhamos a menor intimidade.
Éramos perfeitos estranhos um para o outro. Um dia, sem saber o que fazer,
peguei num objecto qualquer que estava no parapeito duma janela e conforme
peguei, caiu no chão partido em dois. Fiquei muito atrapalhada e aflita,
achando que iam ralhar comigo. Contudo, contrariamente ao que era esperado, a
avó Marta olhou para o Fausto, que estava meio escondido atrás da porta do
quarto, e começou a ralhar com ele muito alto e a chamar-lhe nomes. Muito
zangada ela dizia, “olha o que fizeste, não tens vergonha, porque é que
partiste aquilo?”, etc… no que me deixou muito baralhada. Então eu é que tinha
partido o objeto e o coitado do Fausto é que pagava? E queria assumir a culpa,
de acordo com o que ela tinha visto, mas ela não me dava tempo e insistia em
barafustar com ele. O Fausto muito vermelho e com o olhar de espanto
recusava-se de todas as maneiras e feitos a aceitar a culpa, apontando para
mim, acusando-me com todas as evidências do que parecia ter toda a razão. Mas a
coisa não resultava. A avó Marta estava cada vez mais chateada e aborrecida com
ele, tanto, que até lhe atirou com um chinelo acima, enquanto o Fausto a todo o
custo continuava a fazer-se de vítima. Achei aquilo muito estranho!
Éramos crianças e eu não entendi logo à primeira. Levou tempo até cair a
ficha. O que aconteceu é que de facto aquilo tinha sido quebrado pelo Fausto
que, para ninguém saber, voltou a pôr tudo no lugar, muito quietinho,
convencido de que assim se tinha livrado da culpa. E não sei como, mas a avó
Marta sabia. Parece que ela tinha visto, mas na altura não esteve para se
chatear. Agora que a culpa recaía sobre mim ela tratou de chamar o rapaz à
atenção. Mais tarde o Fausto, também não sei porquê, foi para um internato, um
orfanato, e nunca mais se ouviu falar nele.
Esta era a avó Marta, que entrou para a família por conta de um tio meu,
irmão da minha mãe, casado com uma senhora que, por ter perdido os pais cedo
demais, foi criada pela avó – o que para nós seria uma bisavó -, uma figura
muito especial porque, segundo diziam, falava com os mortos, ou seja, era
médium.
Sempre a conheci velhinha, de cabelos completamente brancos, vestida de
preto e com um semblante sofrido. A vida não lhe tinha sido particularmente
fácil, era tudo o que eu sabia. E sempre me lembro dela queixosa por males
físicos, mas também por outros. O facto é que a avó Marta tinha fama de médium
e todos a viam e falavam dela como uma pessoa muito especial, diferente das
outras. E não raras vezes ouvia da boca dos meus tios que, quando
ela estava pior e a levavam ao médico, o médico simplesmente dizia que o
“problema” não era do foro dele, transcendia-o, o que confirmava a capacidade
mediúnica da senhora.
Claro que tudo isso fazia com que eu também a visse como um ser “estranho”,
misterioso, diferente das outras pessoas. Se eu acreditava ou não, isso não
estava em causa, mas que ela era diferente, isso era. E fui crescendo com este
assunto sempre em torno do nosso universo familiar. No entanto, e apesar das
histórias que estavam sempre a contar das coisas que ela transmitia, etc., passava-me
tudo um pouco ao lado porque me limitava a ser simplesmente espectadora, isto
é, aquele assunto, verdade ou mentira – mentira no sentido de fantasia –, não
era meu, era dos meus tios e daqueles que acreditavam piamente. O facto é que,
volta e meia, lá vinha mais um episódio estranho, quanto mais não fosse, pelo
modo como era apresentado. E já ninguém estranhava. Para os outros fazia
sentido, o que eu admirava, porque não conseguia aceitar aquilo como uma
verdade absoluta. Mas isso também não importava nada porque, na verdade, eu
pouco contava. Na maior parte do tempo eu achava que ninguém se preocupava com
a minha pessoa, com a minha existência.
E fui crescendo com esta coisa da mediunidade, sem saber muito bem o que
pensar acerca disso. Depois, dava para perceber que era um assunto um pouco
“tabu”, embora toda a gente falasse disso abertamente. Apenas não podíamos
fazer perguntas porque à partida, não era um assunto para todos. E sempre que
vinha mais uma história em que todos ficavam meio pasmados com o que ouviam, eu
sempre me interrogava porque razão haviam de acreditar sem quaisquer
reticências? A possibilidade de ser verdade era exactamente igual à de ser uma
grande mentira!? Mas isso não estava em causa.
A avó Marta vivia com os meus tios em Beja e de longe em longe, natal,
páscoa, verão e outras datas, vinham a Setúbal, a casa da minha avó, onde eu
vivia com a minha irmã e os meus primos. Era uma casa cheia. A minha irmã e eu,
porque a nossa mãe falecera muito nova, e os meus primos porque os meus outros
tios viviam em Lisboa e a minha avó queria os netos com ela. Era mais ou menos
assim.
Um fim de semana qualquer especial, lá vieram os meus tios de Beja mais os
meus primos ainda muito pequenos e lá veio a avó Marta. Aquela casa comportava
gente que nunca mais acabava. Havia sempre lugar para mais um. Quando assim
era, havia colchões que se punham no chão para a criançada dormir. Depois
vinham as refeições e era uma azáfama naquela cozinha que primeiro que nos
sentássemos à mesa era complicado. E quando a cozinha, enfim, ficava limpa e
toda arrumada de uma refeição, era hora de recomeçar tudo de novo.
Nesse fim de semana a avó Marta assim que chegou foi directa para a cama
porque não se sentia nada bem. A criançada toda junta era uma folia, da qual eu
era a mais velha porque, primeira filha, primeira sobrinha e primeira neta, e a
primeira também em quem tudo era descarregado, desse por onde desse, apenas
porque a minha mãe já não existia e o meu pai estava ausente, só por isso.
E assim a avó Marta estava na cama, meio recostada, descansando da longa
viagem, enquanto todos iam chegando perto dela com o cuidado de saber se estava
melhor, se queria alguma coisa, etc… até que, a páginas tantas, a avó Marta
começou a ficar mais agitada e a dizer coisas que aparentemente não faziam
muito sentido. A voz dela era grossa e embargada. Ela nem bem falava, mais
balbuciava. Parecia que as coisas lhe saíam sem o controlo dela. E começaram a
aproximar-se numa tentativa de a acalmar, mas ela continuava naquela espécie de
delírio, ao mesmo tempo que parecia querer gesticular. Era estranho. Porque não
a mandavam calar de vez e ficar quieta(?), pensava eu. Em vez disso, olhavam-na
na expectativa de que ela conseguisse dizer algo que fizesse sentido.
Entretanto, a minha irmã um pouco assustada, começou a espreitar, tentando
perceber o que se estava a passar. E por ver a minha irmã intrigada com a
situação, aproximei-me dela para a tranquilizar. A avó Marta toma consciência
da nossa presença e é então que acontece um facto extraordinário, que muda
completamente a minha maneira de ver, de lidar e de acreditar naquilo que até
então eu achava uma verdadeira fantasia. A avó Marta, com a voz agora bastante
mais clara, aponta para todos, dizendo: “eu não quero flores na campa, eu quero
que tratem bem as minhas filhas que são as minhas duas únicas flores”.
“Eu não quero flores na campa…” isto eu podia reconhecer como linguagem e
pensamento muito próprios da minha mãe. Isto era dela. Como ela o tinha dito
não sabia. Mas ela tinha captado. E …”eu quero que tratem bem as minhas
filhas…”, porque ela sabia melhor do que ninguém, o quanto estávamos a ser
ignoradas e postas de lado, o que para uma mãe amorosa era uma dor tamanha.
“Que são as minhas duas únicas flores”… isto era linguagem da minha mãe! Além
disso, a energia que avó Marta tinha imputado àquelas palavras, tudo junto, era
a minha mãe sem tirar nem pôr, disso eu não tinha a menor dúvida. Agora eu
estava rendida. Não tinha a menor dúvida dessa coisa a que chamavam
mediunidade. Estava rendida e achava aquilo uma coisa verdadeiramente
transcendente, sobrenatural.
Por um longo momento fizera-se silêncio e avó Marta muito cansada, agora
sim, descansava. As flores a que ela se referia, a minha irmã e eu, olhávamos
uma para a outra sem saber o que pensar. Todos sem excepção tinham mergulhado
no silêncio, pensando sabe-se lá o quê. Esquecido aquele momento, tudo voltou
ao normal como se nada tivesse acontecido e sem que nada tivesse sido levado em
conta, o que muito me surpreendia.
As flores a que a avó Marta se tinha referido continuaram meio ignoradas,
sobrevivendo no meio das pedras, até ao dia em que um sol as libertou e as fez
brilhar de vez.