quarta-feira, 25 de abril de 2018

A avó Marta - 71



Eu estava em casa dos meus tios em Beja. Não sei bem porquê. Alguém achou que era bom eu ir lá passar uns tempos. Nessa altura eles ainda não tinham filhos, mas havia o Fausto, um rapazito que vivia com eles. Era uma história esquisita que me incomodava um pouco. Filho de pai incógnito, a mãe raramente o via. Os meus tios trabalhavam, pelo que só regressavam ao fim do dia. Em casa ficava a avó Marta, o Fausto e agora eu.

 

Não havia nada para fazer e eu e o Fausto não tínhamos a menor intimidade. Éramos perfeitos estranhos um para o outro. Um dia, sem saber o que fazer, peguei num objecto qualquer que estava no parapeito duma janela e conforme peguei, caiu no chão partido em dois. Fiquei muito atrapalhada e aflita, achando que iam ralhar comigo. Contudo, contrariamente ao que era esperado, a avó Marta olhou para o Fausto, que estava meio escondido atrás da porta do quarto, e começou a ralhar com ele muito alto e a chamar-lhe nomes. Muito zangada ela dizia, “olha o que fizeste, não tens vergonha, porque é que partiste aquilo?”, etc… no que me deixou muito baralhada. Então eu é que tinha partido o objeto e o coitado do Fausto é que pagava? E queria assumir a culpa, de acordo com o que ela tinha visto, mas ela não me dava tempo e insistia em barafustar com ele. O Fausto muito vermelho e com o olhar de espanto recusava-se de todas as maneiras e feitos a aceitar a culpa, apontando para mim, acusando-me com todas as evidências do que parecia ter toda a razão. Mas a coisa não resultava. A avó Marta estava cada vez mais chateada e aborrecida com ele, tanto, que até lhe atirou com um chinelo acima, enquanto o Fausto a todo o custo continuava a fazer-se de vítima. Achei aquilo muito estranho!

 

Éramos crianças e eu não entendi logo à primeira. Levou tempo até cair a ficha. O que aconteceu é que de facto aquilo tinha sido quebrado pelo Fausto que, para ninguém saber, voltou a pôr tudo no lugar, muito quietinho, convencido de que assim se tinha livrado da culpa. E não sei como, mas a avó Marta sabia. Parece que ela tinha visto, mas na altura não esteve para se chatear. Agora que a culpa recaía sobre mim ela tratou de chamar o rapaz à atenção. Mais tarde o Fausto, também não sei porquê, foi para um internato, um orfanato, e nunca mais se ouviu falar nele.

 

Esta era a avó Marta, que entrou para a família por conta de um tio meu, irmão da minha mãe, casado com uma senhora que, por ter perdido os pais cedo demais, foi criada pela avó – o que para nós seria uma bisavó -, uma figura muito especial porque, segundo diziam, falava com os mortos, ou seja, era médium.

 

Sempre a conheci velhinha, de cabelos completamente brancos, vestida de preto e com um semblante sofrido. A vida não lhe tinha sido particularmente fácil, era tudo o que eu sabia. E sempre me lembro dela queixosa por males físicos, mas também por outros. O facto é que a avó Marta tinha fama de médium e todos a viam e falavam dela como uma pessoa muito especial, diferente das outras. E não raras  vezes ouvia da boca dos meus tios que, quando ela estava pior e a levavam ao médico, o médico simplesmente dizia que o “problema” não era do foro dele, transcendia-o, o que confirmava a capacidade mediúnica da senhora.

 

Claro que tudo isso fazia com que eu também a visse como um ser “estranho”, misterioso, diferente das outras pessoas. Se eu acreditava ou não, isso não estava em causa, mas que ela era diferente, isso era. E fui crescendo com este assunto sempre em torno do nosso universo familiar. No entanto, e apesar das histórias que estavam sempre a contar das coisas que ela transmitia, etc., passava-me tudo um pouco ao lado porque me limitava a ser simplesmente espectadora, isto é, aquele assunto, verdade ou mentira – mentira no sentido de fantasia –, não era meu, era dos meus tios e daqueles que acreditavam piamente. O facto é que, volta e meia, lá vinha mais um episódio estranho, quanto mais não fosse, pelo modo como era apresentado. E já ninguém estranhava. Para os outros fazia sentido, o que eu admirava, porque não conseguia aceitar aquilo como uma verdade absoluta. Mas isso também não importava nada porque, na verdade, eu pouco contava. Na maior parte do tempo eu achava que ninguém se preocupava com a minha pessoa, com a minha existência.

 

E fui crescendo com esta coisa da mediunidade, sem saber muito bem o que pensar acerca disso. Depois, dava para perceber que era um assunto um pouco “tabu”, embora toda a gente falasse disso abertamente. Apenas não podíamos fazer perguntas porque à partida, não era um assunto para todos. E sempre que vinha mais uma história em que todos ficavam meio pasmados com o que ouviam, eu sempre me interrogava porque razão haviam de acreditar sem quaisquer reticências? A possibilidade de ser verdade era exactamente igual à de ser uma grande mentira!? Mas isso não estava em causa.

 

A avó Marta vivia com os meus tios em Beja e de longe em longe, natal, páscoa, verão e outras datas, vinham a Setúbal, a casa da minha avó, onde eu vivia com a minha irmã e os meus primos. Era uma casa cheia. A minha irmã e eu, porque a nossa mãe falecera muito nova, e os meus primos porque os meus outros tios viviam em Lisboa e a minha avó queria os netos com ela. Era mais ou menos assim.

 

Um fim de semana qualquer especial, lá vieram os meus tios de Beja mais os meus primos ainda muito pequenos e lá veio a avó Marta. Aquela casa comportava gente que nunca mais acabava. Havia sempre lugar para mais um. Quando assim era, havia colchões que se punham no chão para a criançada dormir. Depois vinham as refeições e era uma azáfama naquela cozinha que primeiro que nos sentássemos à mesa era complicado. E quando a cozinha, enfim, ficava limpa e toda arrumada de uma refeição, era hora de recomeçar tudo de novo.

 

Nesse fim de semana a avó Marta assim que chegou foi directa para a cama porque não se sentia nada bem. A criançada toda junta era uma folia, da qual eu era a mais velha porque, primeira filha, primeira sobrinha e primeira neta, e a primeira também em quem tudo era descarregado, desse por onde desse, apenas porque a minha mãe já não existia e o meu pai estava ausente, só por isso.

 

E assim a avó Marta estava na cama, meio recostada, descansando da longa viagem, enquanto todos iam chegando perto dela com o cuidado de saber se estava melhor, se queria alguma coisa, etc… até que, a páginas tantas, a avó Marta começou a ficar mais agitada e a dizer coisas que aparentemente não faziam muito sentido. A voz dela era grossa e embargada. Ela nem bem falava, mais balbuciava. Parecia que as coisas lhe saíam sem o controlo dela. E começaram a aproximar-se numa tentativa de a acalmar, mas ela continuava naquela espécie de delírio, ao mesmo tempo que parecia querer gesticular. Era estranho. Porque não a mandavam calar de vez e ficar quieta(?), pensava eu. Em vez disso, olhavam-na na expectativa de que ela conseguisse dizer algo que fizesse sentido.

 

Entretanto, a minha irmã um pouco assustada, começou a espreitar, tentando perceber o que se estava a passar. E por ver a minha irmã intrigada com a situação, aproximei-me dela para a tranquilizar. A avó Marta toma consciência da nossa presença e é então que acontece um facto extraordinário, que muda completamente a minha maneira de ver, de lidar e de acreditar naquilo que até então eu achava uma verdadeira fantasia. A avó Marta, com a voz agora bastante mais clara, aponta para todos, dizendo: “eu não quero flores na campa, eu quero que tratem bem as minhas filhas que são as minhas duas únicas flores”.

 

“Eu não quero flores na campa…” isto eu podia reconhecer como linguagem e pensamento muito próprios da minha mãe. Isto era dela. Como ela o tinha dito não sabia. Mas ela tinha captado. E …”eu quero que tratem bem as minhas filhas…”, porque ela sabia melhor do que ninguém, o quanto estávamos a ser ignoradas e postas de lado, o que para uma mãe amorosa era uma dor tamanha. “Que são as minhas duas únicas flores”… isto era linguagem da minha mãe! Além disso, a energia que avó Marta tinha imputado àquelas palavras, tudo junto, era a minha mãe sem tirar nem pôr, disso eu não tinha a menor dúvida. Agora eu estava rendida. Não tinha a menor dúvida dessa coisa a que chamavam mediunidade. Estava rendida e achava aquilo uma coisa verdadeiramente transcendente, sobrenatural.

 

Por um longo momento fizera-se silêncio e avó Marta muito cansada, agora sim, descansava. As flores a que ela se referia, a minha irmã e eu, olhávamos uma para a outra sem saber o que pensar. Todos sem excepção tinham mergulhado no silêncio, pensando sabe-se lá o quê. Esquecido aquele momento, tudo voltou ao normal como se nada tivesse acontecido e sem que nada tivesse sido levado em conta, o que muito me surpreendia.

 

As flores a que a avó Marta se tinha referido continuaram meio ignoradas, sobrevivendo no meio das pedras, até ao dia em que um sol as libertou e as fez brilhar de vez.