quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A cigana - 26


À porta do Centro Comercial havia sempre ciganos a vender roupa. Um dia, à hora do almoço, passando por eles, veio atrás de mim uma rapariga cigana, muito jovem, que me queria ler a sina. Não lhe liguei importância, mas ela veio atrás de mim, e com a insistência que lhes é característica, tanto me chateou que cedi, na expectativa de aproveitar a oportunidade para a confrontar com outra realidade. Então ela pegou na minha mão e na lenga-lenga habitual, começou a contar a história que contam a toda a gente, achando que me impressionava.

Olhei para ela e pedi-lhe que parasse com aquele discurso mal "parido", fazendo-a perceber que eu sabia que aquele discurso era muito bem estudado e era sempre o mesmo, passando de geração em geração, sem ter nada de consistente. Primeiro, ela reagiu, tentando amedrontar-me e querendo o lucro dela. Quando percebeu que isso não ia acontecer e que eu não estava nem aí para o que ela estava a contar, peguei na mão dela e disse-lhe que era eu que lhe ia ler a mão. 

Ela olhou para mim, desconfiada, e disse-me que não podia ser, porque eu não era cigana. Comecei a rir e disse-lhe que ler a mão não era um privilégio da etnia dela, mas um conhecimento que qualquer pessoa poderia adquirir. Ela era uma garota de dezoito anos e debaixo daquele disfarce todo, havia uma evidente inocência, própria da sua idade. E até senti uma certa empatia com aquela jovem cigana, pelo que decidi ter um pouco de paciência.

Voltando ao assunto, veio outra, mais velha, juntar-se a ela, com um ar todo empertigado, a meter o nariz onde não era chamada. Ignorei-a e pedi à jovem que me desse as mãos dela, mas ela não queria. Então disse-lhe que se ela queria tanto ler as minhas mãos, porque não poderia eu ler as dela!? Ficou em silêncio, a pensar e sem perder mais tempo peguei-lhe nas mãos e num primeiro olhar saltou à vista uma coisa e perguntei: És casada? Sim, respondeu ela. O teu marido é muito mais velho do que tu. Sim, voltou a responder. Mas como é que sabe? Ignorei e continuei. Porque te casaste com ele? Não respondeu. Impuseram-te este casamento, disse eu.

A outra, a mais velha, olhou de lado para ela e deu-lhe um toque com o cotovelo. Entretanto, ela olhava para mim, atónita, sem querer acreditar no que ouvia e perguntou como era possível eu saber aquilo. Ignorei e continuei. Temos aqui um problema. As duas ouviam-me, consternadas, sem abrirem a boca e com os olhos esbugalhados. Vocês são obrigadas a casar com gente da vossa etnia, não é? Ela fez que sim com a cabeça. Eu sei, respondi, mas o teu rumo vai mudar. Vais-te apaixonar por alguém da tua idade e que não é cigano. Alguém que vai mudar completamente o teu caminho. Vai tirar-te da tua gente e vais seguir o caminho dele, de tua livre e inteira vontade. Está escrito e nada vai mudar isso. Vais crescer interiormente e vais tornar-te numa outra pessoa e abandonar o teu clã.

Ai(!)... murmurava ela. A outra fazia-lhe uns sinais com a cabeça e com o olhar e eu percebi que a coisa já estava no ar. Vendo que ela estava um pouco assustada, disse-lhe, não tenhas medo, essa pessoa vai ajudar-te e vai tudo correr bem. Além disso, és livre e tens direito a escolher a tua vida.

Ela fechou as mãos e guardou-as, dando a sensação de que, conforme eu li, outra pessoa podia ler e aquilo era um segredo fechado a sete chaves, que ninguém poderia suspeitar, sob pena de ser sacrificada a maus tratos e sabe-se lá que mais.

A outra imediatamente estendeu as mãos, pedindo para eu ver também as dela. Disse-lhe que não, que não era cigana. Vocês não dizem que só vocês o podem fazer? Então, tenho cara de cigana? Não, dizia ela, mas a senhora sabe ver, pode-me dizer a mim também? Não, respondi e fui-me embora, só que elas vinham insistentemente atrás de mim e como eu as ignorava, a mais velha perguntou, onde é que a senhora trabalha? Entendi. Ela pensou que a leitura das mãos era a minha vida, o meu ganha-pão e portanto queria saber onde era, para fazer uma consulta. Fiz-lhe sinal que não e continuei. Tive que ser firme para elas me deixarem, mas não foi fácil.

No outro dia, à hora do almoço, quando saí da RTP, ao passar pelo mesmo sítio, que era inevitável, já nem me lembrava daquela história, vejo duas raparigas correrem na minha direcção e percebo que são as mesmas. Senhora, senhora, gritavam e corriam para mim, com toda a gente que passava a olhar e a pensar o que é que elas poderiam querer comigo. Senti-me confrangida e tive que fugir. Nos dias seguintes, quando saía, já ia prevenida e apalpava muito bem o terreno para ver se não havia o perigo de ser apanhada por elas.

É verdade que por aquela elas não esperavam. Mas eu também não. Aconteceu naturalmente.