terça-feira, 12 de novembro de 2019

A mensagem - 81




Na manhã do dia 12 de Outubro de 2019, não sem razão, eu acordava para o dia num perfeito desespero. A minha instabilidade emocional reflectia-se em todo o meu ser, dos pés à cabeça, dentro e fora de mim. Tudo era uma negação aflitiva e eu não tinha a menor ideia dos passos que deveria dar. Toda eu era mal estar. Um mal estar profundo e verdadeiramente infernal, que eu não queria e não estava a conseguir aceitar. Apetecia-me gritar, pedir socorro, inventar alguém que me ajudasse porque eu não sabia mesmo o que fazer. Fui à cozinha e peguei um ansiolítico muito fraco, porque não estou habituada a tomar coisas fortes. Tomei, mas a confusão continuava banhando e revirando todo o meu cérebro, todo o meu ser. Passado pouco tempo voltei à cozinha e tirei metade de um outro, que continuava a ser muito pouco para o estado de desequilíbrio em que me encontrava. 

Os problemas que me atormentavam parecia que não tinham solução e o meu mundo desmoronava. Não seria a primeira vez que tinha essa sensação, pois durante os meus 67 anos de vida perdi a conta de quantas vezes o mundo desmoronou à minha volta. E na verdade já devia estar habituada. Mas não. De todas as vezes que isso acontece é como se fosse a primeira vez. Eu não queria estar onde estava e não queria ser eu. Pensei nas tragédias que vão por esse mundo fora, nos problemas complicadíssimos que cada um enfrenta neste mundo e racionalmente conseguia perceber que o que me estava a acontecer era quase normal, vulgar, comum, considerando que nada na vida é perfeito e que o caminho de todos nós está destinado a enfrentar barreiras, pois é para isso que cá estamos. E enquanto o meu lado espiritual apelava fortemente para manter a calma necessária e dar tempo ao tempo, na verdade o meu lado emocional estava completamente destroçado, sem ponta por onde pegar. Eu sentia-me mal, muito mal e completamente sozinha e esquecida. Mas pior do que tudo, tinha a perfeita noção de que estava “perdida”. Perdida no meio de uma inesgotável angústia e de uma tristeza sem fim. O mal não me dava tréguas. 

Aquela manhã ficaria na história, na história da minha vida, devidamente marcada e registada. Peguei no telemóvel e escrevi: “Família, estou no limite. Amo todos vocês do fundo do meu coração. Recebam um beijo com muita luz e muita paz, o que eu não consigo para mim. Adeus”. 

Isto era muito mais do que uma mensagem. Era um grito de aflição. Um pedido de socorro que eu não tinha outra forma de expressar. A única coisa que eu sabia é que queria, precisava urgentemente de me retirar do sufoco em que estava, de me evadir por qualquer acto de magia, de me subtrair ao sofrimento que sentia e em relação ao qual não podia fazer nada, porque era um problema intrinsecamente ligado à alma humana e para o qual eu não tinha solução. 

Esta mensagem que foi intencionalmente enviada a todos os meus irmãos, foi recebida da pior maneira possível simplesmente porque foi muito mal interpretada. Eu precisava, na verdade, que percebessem o quanto eu estava em sofrimento, mas mais do que tudo era uma informação de que no fundo do meu eu, estava a retirar-me da agitação da vida para me isolar por completo e encontrar novamente o meu eu. E mais ainda, era um urgente pedido ao universo familiar presente e ausente, já que em princípio ninguém poderia fazer nada. Assim, esta mensagem saiu efectivamente dos escombros do meu eu, do fundo da aflição da minha alma cansada de sofrimento. Esta mensagem, que foi mais forte do que eu, chegou a todos os destinatários a quem era dirigida, mas foi ainda mais longe, bem mais longe do que isso, ultrapassando os limites do tangível. A força da sua natureza fez com que atravessasse a barreira do limiar e atingisse o inacessível. 

Não sei se fiz bem ou se fiz mal, mas sei que fiz o que tive que fazer e bem ou mal não me arrependo. Não me arrependo mesmo. Sou humana. Como qualquer um, estou sujeita a erros. Não me orgulho disso mas também não me envergonho. E neste caso reconheço que o sofrimento me transcendeu e me venceu. Mas não completamente, não na totalidade do meu ser. Por isso enviei a mensagem. Foi um acto consciente, talvez pertinente, mas no qual estavam presentes todas as forças que ainda me restavam. E então o inusitado aconteceu. O inesperado teve lugar. 

No dia 11 do 11, Hermés, esse deus da mitologia consagrado no planeta Mercúrio, fez uma trajectória fenomenal, e cruzando a Terra e o Sol, absorveu o meu grito de socorro, deu ouvidos à minha mensagem e de posse de todas as suas faculdades e poderes inacessíveis à humanidade, da maneira mais nobre e surpreendente deu-se ao trabalho de acabar com o meu sofrimento. Em resposta à minha mensagem, através do poder da comunicação e da dinâmica da sua sublime sabedoria, enviava-me a ajuda necessária que se manifestou na forma mais bela e generosa, cristalizando-se, dando-lhe a forma humana, que conseguiu complementar o meu eu mais profundo, devolvendo-me a paz, a harmonia e o amor. 

E uma vez mais, a vida estava de volta!



 


domingo, 15 de setembro de 2019

A assinatura - 80



A pasta de Despacho estava na minha frente, enquanto eu estava sentada à secretária. Ao lado tinha uma quantidade de documentos de despesa já assinados, prontos para entregar. Para isso tinha que retirar de cada um deles a última cópia, a amarela, para meu arquivo. Todos os dias ou quase todos os dias, passavam por mim documentos daqueles, cujo número variava, podendo atingir umas dezenas, nunca se sabia, e que reflectiam os gastos do pessoal da Direcção com as mais diversas coisas, como refeições ou material técnico ou outro e eu dava uma vista de olhos em todos eles.

 

Em princípio estaria tudo certo, mas por uma questão de ética, ao tirar a folha amarela, verificava o conteúdo, que também não era assim tanto que o não pudesse fazer. E naquele dia, enquanto ia separando e juntando as ditas cópias amarelas para o meu arquivo, de repente, há uma que chama a minha atenção. Fiquei parada a olhar. Olhei a importância, vi a que se referia e a quem se destinava. Estava tudo certo. Assinado pelo respectivo responsável, um dos subdirectores que fazia parte do meu leque de secretariado. Porém, a minha atenção tinha ficado retida exactamente na assinatura dele e perguntava a mim mesma porquê e antes de a juntar às outras, decidi deixá-la de lado, continuando sem saber bem porquê. Despachei tudo, inclusive outros documentos, mas aquela cópia continuou de parte. Parecia que não era igual às outras. Claro que era. Estava tudo certo! Porque razão tinha despertado em mim alguma incerteza, isso eu não conseguia explicar para mim mesma.

 

Depois de tudo despachado, encaminhado e arrumado, voltei a pegar na folha para a contemplar com um pouco mais de atenção, agora só eu e ela. A outra papelada toda já tinha seguido o seu caminho, só faltava mesmo aquela. Era só fazer o mesmo, arquivá-la e pronto. Mas ela parecia que não queria ir para o sítio. Parecia que me queria dizer alguma coisa, coisa essa que eu continuava sem saber o que seria.

 

Examinando a folha uma vez mais, percebi que o que estava a chamar a minha atenção era a assinatura. Contudo, era a assinatura do responsável. Era do pelouro dele e estava tudo certo. Mas eu olhava e voltava a olhar para a assinatura. Caramba, porque é que naquele dia eu havia de estar a embirrar com um pormenor que nunca tinha reparado? A assinatura estava correcta, bem feita, sem nada a opor. Era a assinatura dele, sem dúvida, não tinha que enganar. Estava bastante bem feita, com o pormenor da voltinha da última letra, o “a” a vir da direita para a esquerda, sublinhando todo o nome, como ele sempre fazia. Estava tudo bem. Estava até bem de mais e percebi então que era essa a questão. 

 

A minha intuição deu sinal. Era a assinatura dele, muito bem feitinha, mas não tinha o seu cunho pessoal, era isso mesmo. Parecia que tinha sido copiada por cima. Mas isso era um perfeito disparate! Porque faria ele isso? A minha intuição novamente deu alarme. Ele não, mas alguém o poderia ter feito!? Que disparate(!)… não estava a ver ninguém com motivos para fazer tal coisa e a importância nem era nada de especial, de qualquer modo ninguém faria uma coisa dessas. Eu conhecia todos os colegas, homens e mulheres, éramos uma família, ninguém faria uma coisa dessas. Por qualquer motivo, no momento em que assinou aquele documento, vacilou um pouco e saiu assim com um jeito(?)… ah, aquilo não era nada, eram maluquices da minha cabeça. E veio-me à ideia uma lembrança muito, muito antiga.

 

Quando eu andava no liceu, no que seria agora um sexto ano escolar, era muito má aluna, e não era só má, era complicada. Os professores costumavam dizer que não me entendiam. É que eu era muito boa a Português e Matemática, mas nas outras disciplinas era um zero à esquerda, porque não estudava. Português não precisava de estudar e matemática era um passatempo, como um jogo, cujas regras eu decifrava e não tinha segredos.

 

Estudar História, Geografia e todas as outras coisas eu queria lá saber. Estudar porquê? A vida tinha desmoronado todo o meu mundo e eu alimentava uma espécie de raiva e revolta por tudo o que tinha acabado de passar. A minha mãe tinha falecido recentemente e o meu pai estava na guerra, sempre ausente. Ninguém se importava comigo, porque é que eu havia de querer estudar? E por causa disso, uma vez falsifiquei a assinatura da minha avó. Devo dizer que o fiz com uma perfeição e tanto e só foi descoberto porque uma segunda vez ela foi chamada e quando lhe mostraram ela de facto negou, porque na verdade sabia que não tinha assinado nada. Eu tinha assinado por ela, sabia o que estava a fazer e não me arrependia de o ter feito. O resto não vem ao caso. Mas aí eu era uma pré-adolescente cheia de problemas comigo mesma, com a vida, uma revoltada por tudo o que a vida me tinha levado, etc… e era obrigada a sobreviver de qualquer maneira.


E agora estava diante de um documento com o qual não me sentia segura. Aquela assinatura não parava de mexer comigo, querendo-me dizer alguma coisa sem que eu conseguisse uma uma explicação razoável. O que fazer? E a folha ficou de lado mais algum tempo, porque eu não estava certa em relação ao seu destino. E quando se mete uma coisa na minha cabeça não há quem a tire.

 

Comecei a trabalhar no arquivo e por momentos esqueci-me daquele assunto. Gente que entrou, gente que saiu, as televisões a trabalhar, os telefones a funcionar, a normal rotina. Olho através da porta envidraçada e o sub estava sozinho, debruçado sobre papéis. Para lhe ir falar sobre aquilo eu nem sabia bem o que dizer, nem por onde começar. Fazer a pergunta directamente de caras, se tinha sido ele a assinar, era muito complicado, pois ia parecer que estava a apontar o dedo a alguém. Claro que tinha sido ele. Mas a minha inquietação continuava sem me dar descanso. Fui à minha secretária, peguei na folha e entrei. Ele continuava a fazer o que estava a fazer, sem olhar para mim. Então, com a folha na mão, calma e tranquilamente, disse-lhe que achava aquela assinatura dele esquisita, só isso. Quando ele ouviu as minhas palavras imediatamente levantou a cabeça dos papéis que estava a ver e um tanto bruscamente retirou a folha da minha mão, dizendo que era para ele, dando-me a entender que não queria falar naquilo e que o assunto estava arrumado.

 

Isto era muito estranho e fiquei sem perceber nada. Esperava tudo menos aquilo. A questão é que se eu não lhe tivesse levado aquela folha ele nem sabia da existência dela, apesar de que a tinha assinado (ou não?). Quando comecei a falar com ele, ele nem olhou para mim nem para o que eu tinha na mão. Só quando falei na assinatura é que ele deu sinal e sem sequer analisar as coisas, imediatamente a reclamou para si, sem mais demandas, sem mais comentários ou explicações, deixando-me intencionalmente de fora do que quer que fosse. Sem dúvida que era estranho! Mas agora eu sabia que a minha decisão estava certa. Ainda nem sabia exactamente porque o tinha feito. Parecia que alguma força superior me estava a comandar. Mas alguma coisa estava no ar.

 

Saí para ir beber água fresca à máquina que ficava junto à máquina do café e também para arejar as ideias. Estavam duas colegas a tomar café. Fiquei um pouco com elas até que uma se foi embora e fiquei só com a outra, que era da secretaria de apoio à Direcção, de onde vinham todos os documentos de despesa com pessoal. Sem mais nem menos comecei a falar com ela sobre o sucedido, dizendo-lhe que tinha ido mostrar ao subdirector um documento cuja assinatura me parecia estranha e ele me arrancou a folha das mãos, guardando-a a sete chaves. Era esta a sensação com que eu tinha ficado. Ela parou de beber o café, olhou para mim com ar de caso e por instantes manteve-se em silêncio. O mistério continuava e intrigava-me cada vez mais. O que seria? E agora eu queria uma explicação, caso contrário iria parecer que eu estava a bater mal da cabeça. Mas não foi preciso insistir muito para que ela finalmente começasse a falar. Aquele documento era a peça de um puzzle que acabava de fechar e infelizmente a assinatura tinha sido falsificada.



sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Eliane - 79



Eliane era uma garota que vivia no meu prédio, no mesmo andar. Era a irmã do meio de três adolescentes, de uma família brasileira que aqui residiram por três anos. A família era constituída pela mãe, muito nova e o padrasto, mais novo ainda. Eliane tinha dezassete anos, com uma irmã de 15 e outra de 19. As três viviam correndo para minha casa sempre que se chateavam umas com as outras, com a mãe ou com o padrasto.

 

E vinham porque queriam algo diferente, um ambiente fora do que tinham em casa. Às vezes precisavam de sossego, outras vezes precisavam de falar, de conversar e desabafar acerca da vida delas. Coisas de adolescentes. Cada uma delas tinha uma igreja diferente, inclusive a mãe, e viviam fazendo guerra umas às outras sobre a igreja de cada uma delas. Todas achavam que a sua igreja era melhor do que a das outras e por aí adiante, como se de um clube de futebol se tratasse.

 

Eliane era a mais inteligente e a mais aplicada nos estudos e tinha muito boas notas na escola. O seu grande sonho era ser médica. A mais velha, decididamente, não queria estudar e vivia o tempo todo correndo para a sua igreja, num rigor desgraçado. A meu ver, aquilo era doentio, ainda que a mãe achasse que era a que não lhe dava problemas, apenas porque não queria tomar consciência disso porque, na minha modesta opinião, aquela era das três a mais problemática. É que não era só o ir à igreja, era toda uma série de comportamentos que estavam a pôr em causa a sua saúde mental. O pastor tinha-lhe feito uma verdadeira lavagem cerebral e era um completo fanatismo por tudo o que o “pastor” lhe dizia, levando à risca o que não fazia o menor sentido. Ela já não tinha vontade própria, estava completamente sujeita à vontade do pastor. Complicado!

 

A mais nova tinha quinze anos e só pensava no alisamento do cabelo, nas unhas de gel, nas suas formas redondinhas e por aí fora. De vez em quando eu levava-as ao Centro Comercial e deixava-as escolherem alguma coisa para elas. Era uma festa, porque a mãe tinha dificuldades financeiras e o padrasto não ajudava muito porque também não podia. Coisas da vida.

 

O certo é que as três viviam correndo para minha casa no intuito de fugirem ao rebuliço, para terem acesso a coisas diferentes, uma conversa fora do âmbito familiar a que estavam submetidas e não raras vezes me perguntavam como deveriam actuar em determinadas circunstâncias. Além disso, gostavam de bisbilhotar o meu roupeiro, pedindo-me roupas emprestadas e ainda solicitavam a minha ajuda com os cabelos ou com a maquilhagem. E tanto a mãe como o padrasto estavam gratos pela atenção que eu dava às miúdas. De vez em quando eu também ia a casa deles para cavaquear com eles. Algumas vezes assisti a discussões, o que fazia com que estivesse por dentro da vida de todos. Outras vezes, estar com eles e até com os amigos, era muito divertido e cada um dizia um disparate maior que o outro, tornando o convívio muito descontraído e engraçado.

 

Eliane era a que mais tempo passava comigo e eu sabia de todas as suas histórias. Conhecia todos os seus amigos e amigas só de a ouvir falar. Punha-me questões, pedia opinião, enfim, eu era uma segunda mãe, embora mais avó que mãe, para ela. E um dia ela disse-me que a amiga X queria vir a minha casa para falar comigo. Fiquei um pouco intrigada e quis saber o porquê. Ela respondeu que a amiga estava com um grande dilema e precisava de ajuda. Mas a amiga vivia com a mãe e o padrasto, portanto, porque razão haveria de querer falar comigo? Ela tem um problema sério para resolver e só você pode ajudar, dizia ela. Eu? Porquê eu? Como é que vou ajudá-la sem nem saber qual é o problema assim tão complicado que ela não pode resolver em casa com a família?! Ela respondeu que só eu podia resolver porque, por palavras dela “você é muito sábia, né!...”(?)

 

Nesta altura, não me contive e dei uma gargalhada que saiu a todo o vapor. Eu, coitada de mim. Muito sábia?! Já me tinham chamado muitos nomes mas “sábia”, realmente, era a primeira vez. Nunca podia imaginar que alguém pudesse achar que eu era muito sábia, mas de Eliane tudo se podia esperar. Está bem, a amiga que venha, disse-lhe eu. Que mais poderia dizer? Logo se veria.

 

E um dia lá veio Eliane com a amiga, uma garota da mesma idade, uma miúda bonita, alta, magra, loura, com um tipo fino, educada, enfim, gostei dela. Começámos a falar disto e daquilo, comecei fazendo perguntas sobre a sua vida, se gostava de estar em Portugal ou se gostava mais do Brasil, perguntei sobre a família, etc. E a páginas tantas pedi-lhe para me deixar ver as mãos. Ao olhar as suas mãos, numa primeira impressão reparei imediatamente numa viragem ou seja, numa mudança de rumo. Tomei mais atenção e percebi que o destino dela seria no Brasil, não aqui. E disse-lhe que tudo indicava que ela regressaria e por lá ficaria.

 

Elas olharam uma para a outra e eu perguntei qual era afinal o problema dela, a questão exacta da vinda dela à minha casa. Eliane logo se adiantou dizendo “ah, você já respondeu, era isso mesmo que ela queria saber, se ficava ou não”. Receosa da minha possível influência, fui logo explicando que, em todo o caso, a decisão era dela. E a resposta continuou “não se preocupe, ela até já comprou a passagem”. E perguntei, então se ela até já comprou a passagem porque veio? Resposta “Era só p’ra tê a certeza, má você já disse tudo”(!)…



domingo, 4 de agosto de 2019

Alberto - 78



Alberto era um colega meu da RTP, que trabalhava no Centro de Produção do Porto. A certa altura, por motivos de trabalho, começámos a ter uma ligação mais próxima. E por causa da natureza do seu trabalho, vinha a Lisboa muitas vezes e falávamos muito ao telefone, sendo que as conversas começaram a ser cada vez mais extensas e pessoais. Até ao dia em que ele se abriu, dizendo que gostava muito de falar comigo, de estar comigo, etc.

 

Eu simpatizava com ele, mas o facto de ele residir no Porto não me atraía nada. Mas o Alberto era muito insistente e costumava dizer que havia de me levar com ele para onde quer que ele fosse, porque queria estar sempre na minha companhia. E mais, queria ser feliz. Estava separado da mulher, queria divorciar-se e começar uma vida nova e os planos para a nova vida incluíam a minha pessoa, mesmo sem o meu acordo. E eu ia levando as coisas de modo muito ligeiro, sem dar muito crédito, porque achava que o meu caminho não era por ali.

 

O tempo foi passando, até que um dia, por insistência dele, concordei em irmos passar um fim-de-semana ao Algarve, para nos conhecermos melhor e ver como as coisas corriam. Assim foi. Só havia uma colega nossa, que também estava metida nos assuntos de trabalho e que sabia disto. De resto, mais ninguém.

 

Durante o dia as coisas correram bem e na primeira noite as coisas também correram bem. Ele era um homem simpático, calmo, normal e não havia do que reclamar. Na segunda noite, porém, as coisas correram muito mal. Para começar não dormi nada de jeito. Melhor dizendo, não preguei olho em toda a noite. Ele ressonava muito, mas o problema não era esse. Não é por alguém ressonar ao pé de mim que não vou dormir. A noite é para dormir e dormir é comigo mesma. Adormeço e nada me faz acordar, a não ser alguma coisa de muito grave ou de anormal. Mas esse é que foi o problema. Ele ressonava e a respiração dele era muito irregular. Quando eu começava a adormecer a respiração dele parava. Parava por completo e eu pensava que o homem estava morto. E ficava aflita. Tinha que lhe bater, dar um encontrão, abaná-lo para ele continuar a respirar. Depois voltava-se para um e outro lado continuamente, sem descanso. A todo o instante eu pensava que ele se finava porque não o ouvia respirar. 


Provavelmente a minha respiração também não se ouve, mas a dele ouvia-se, por isso é que era fácil perceber que tinha parado. E agora, pensava eu, ainda lhe dá para aqui uma coisa má e o que é que eu faço? Então levei a noite toda naquele desassossego, sem conseguir dormir, com receio de que ele se ficasse. Nunca tinha dormido com ninguém com um problema idêntico. Era uma coisa muito complicada e assustou-me deveras. E o pior é que já de manhã, quando demos a noite por terminada e começámos a falar, ao perguntar-lhe se estava bem, olhou para mim com um ar de espanto, sem entender ou fingindo que não entendia. Disse-lhe que ele tinha dormido mal e imediatamente me respondeu que não, que tinha dormido muito bem. Não tendo gostado da resposta, continuei a falar sobre o assunto, mas ele descartava qualquer observação da minha parte. Não assumia o problema. Uma coisa era certa, ele tinha um problema grave de apneia e eu era testemunha disso. Por causa dele não dormi a noite toda, sempre aflita com a respiração ou falta de respiração. E dizia-me que eu estava enganada, com toda a tranquilidade possível?! Que estranho! Mas a mim não me agradava nada aquela situação. 


Muito bem, o fim de semana estava terminado e regressámos a Lisboa, eu à minha casa e ele ao Hotel. No dia seguinte, iria à RTP e depois voltaria para o Porto. Claro que insistiu para eu ficar com ele mais uma noite no hotel, mas eu recusei-me. E recusei-me com carácter definitivo. Estava decidido que não voltaria a sair com ele e muito menos a ficar com ele. Se havia alguma possibilidade de pensarmos em ficar juntos e iniciar-mos um relacionamento, para mim era muito óbvio que tinha caído por terra, porque eu estava certa de que não me agradava passar um mau bocado com ele. A questão é que ele não assumia o problema que tinha. Se assumisse, ia ao médico, faria exames e alguma coisa seria feita. Se há coisa de que nunca gostei é de gente inconsciente, que não consegue ou não quer assumir os seus problemas, sejam eles de que natureza forem. E era o caso. Fim de história.

 

A vida continuou e o Alberto também continuava com os telefonemas dele, de trabalho, sim, mas sempre dava um jeito de dizer que tinha saudades minhas, batendo sempre no mesmo tema, que queria ser feliz comigo e que para onde ele fosse eu iria com ele. A páginas tantas já nem me chateava, deixava-o falar, porque a minha decisão estava tomada e nada nem ninguém me obriga a fazer o que não quero.

 

Um dia recebo um telefonema dele dizendo que vinha a Lisboa, que ia ficar no Hotel em frente à RTP, como era costume e que esperava por mim para ficarmos juntos essa noite. Disse-lhe que não, mas ele continuou a insistir com falinhas mansas, muito cheio de meiguice e não aceitava de jeito nenhum o meu não. Era problema dele, porque ninguém mandava em mim, muito menos ele. Contei à minha colega, que se ria sempre muito com a história e fazia sempre questão de reforçar que ele gostava mesmo de mim, etc… achando que eu lhe devia dar uma chance(!). Devo dizer que ela era uma ingénua. Sempre foi e sempre será. E disse-lhe exactamente o mesmo. Ele voltou a telefonar insistindo, e de acordo com a conversa não se convencia que eu não iria. Para ele, nem que fosse à última hora, eu acabaria por ir. Claro que não. Se eu quisesse ir dizia-lhe logo de início. Não seria preciso tanta insistência. A questão era muito simples, por mais que ele quisesse, eu não queria e ponto final.

 

Fui para casa, fiz a minha rotina normal e deitei-me para no dia seguinte ir trabalhar como de costume. E nunca mais pensei naquilo. No outro dia cheguei ao meu local de trabalho, o meu chefe chegou logo depois e o dia estava iniciado. Tudo dentro da normalidade, mas pensei que ele devia estar por lá e portanto devia estar a aparecer para chatear a minha paciência, o que eu não iria permitir. Mas tal não aconteceu. Perfeito.

 

Um pouco antes da hora do almoço a porta abriu-se e a minha colega/amiga espreitou. Pensei que estaria à procura dele, mas não. Fiz-lhe sinal para entrar e logo percebi que estava com cara de caso. Ela queria falar mas ao mesmo tempo percebi que estava inibida. Perguntei-lhe o que é que se estava a passar e ela respondeu com outra resposta, querendo saber se eu tinha estado com ele na noite anterior. Fiquei um bocado chateada por ela ainda me estar a fazer aquela pergunta, quando eu lhe tida dito com todas as letras que não. E respondi-lhe uma vez mais que lhe tinha dito que não. Ela então mostrou uma cara de espanto que me deixou sem perceber nada. E voltou a perguntar se realmente não tinha estado com ele, como se estivesse a duvidar de mim. Ela conhecia-me. Conhecia-me bem. Não fazia o menor sentido aquela insistência?! E aquele assunto para mim tinha morrido.

 

E de repente começou a falar muito de depressa exteriorizando o quanto estava aliviada por eu não ter ido(?), que ela estava muito aflita por mim(?) e deixando-me completamente perplexa e sem voz, continuou “Ah… ainda bem que não foste, ainda bem… ele está nos cuidados intensivos porque teve um enfarte!?... … …



quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Alertas - 77



Estávamos num avião da Turquish Airlines com destino a Istambul para uma viagem muito completa pela Turquia e que muito apreciámos. Por mim falo, mas a verdade é que todas gostámos muito. E apesar de toda a gente achar que era uma altura muito má por causa da turbulência no país, mesmo assim lá fomos nós e nem por um instante nos arrependemos e tudo correu muito bem. 

Era uma viagem há muito desejada. Uma viagem várias vezes alinhavada mas que nunca chegou a sair e só então percebi porquê. Se a tivesse feito antes teria perdido a maior parte da informação recolhida. Muita coisa me teria passado ao lado. E esta viagem surgiu aparentemente do nada. De uma conversa banal com uma vizinha, comentando que ia à Turquia com um grupo de amigas, o que seria num espaço de tempo relativamente curto e de repente perguntei se também poderia ir. Ela respondeu que sim e o grupo logo tratou de me incluir. Falando de férias com a minha amiga Cris, comentei sobre a viagem e ela ficou toda interessada, dizendo que também queria ir à Turquia. Estava com uma prima a ver a possibilidade de irem as duas a qualquer sítio e a Turquia era um destino que interessava a ambas. Disse-lhe como tinha surgido esta oportunidade, qual era a agência e ela deu o meu nome para se certificar e lá foi também incluída no grupo mais a prima. E assim passámos a ser sete mulheres, num total de vinte pessoas, do qual metade eram cidadãos brasileiros. 

E a Turquia realmente apaixonou-nos. Alguém me tinha avisado de que os turcos não eram especialmente simpáticos. Queria lá saber disso! Eu não precisava da simpatia deles para nada, só precisava que fossem civilizados e realmente nenhuma de nós teve do que se queixar. Apreciámos a companhia, a comida, a paisagem, as cidades, o passeio de barco no rio Bósforo, a cultura, os hábitos, a história, a Capadócia e o andar no balão, para o qual quase não tivemos tempo de dormir… mas valeu muito a pena. Tudo valeu a pena e eu particularmente encontrei respostas surpreendentes que não estava à espera de encontrar. Por isso agradeci à vida a possibilidade que me deu por ter podido realizar mais uma grande viagem que foi muito importante. Poder viajar implica ter disponibilidade de tempo, ter dinheiro e saúde. Quando tudo isto se conjuga, que não é pouca coisa comparado com o que muitos por esse mundo fora podem ter, então é mesmo razão para estar bem grata à vida. 

Quase a chegar ao destino, a Rosa que ia sentada ao meu lado esquerdo, falava sobre coisas sem importância de maior, até que, de repente, referindo-se exactamente à viagem, disse “vai correr tudo bem… vai(!)”, ao mesmo tempo que acenava que sim com a cabeça, rematando a certeza do pensamento que acabava de verbalizar. Perante esta afirmação os meus sensores logo deram sinal. Olhei para ela e apercebi-me de que os olhos se revestiam de um brilho que surgiu com a afirmação que tinha acabado de proferir, bem como o olhar repentinamente distante, como que a percorrer o que seria a sua viagem à Turquia. Isto deixou-me apreensiva. Ela tinha acabado de afirmar que ia correr tudo bem  e mais ainda, tinha reforçado a parte final da frase. Porquê(?) era agora a minha questão. O que teria ela captado - ela, a sua alma – que necessitaria de ser confirmado ou corrigido com tal convicção?  

Interiormente, distanciei-me dela, daquele lugar, e mentalmente percorri também o interior da minha alma, à procura, mas não consegui encontrar nada que se encaixasse no “alerta” dela. Sim, porque aquela afirmação não seria necessária se realmente fosse correr tudo bem. Portanto, se ela se tinha manifestado, por assim dizer, é porque alguma coisa havia lá no fundo, sem que houvesse consciência disso. Estamos a falar do “inconsciente”. Era a sua intuição a alertar para qualquer coisa, ainda que ela não tivesse consciência disso. Mas a minha intuição acusou e fiquei a saber que qualquer coisa poderia correr menos bem. Enfim, estávamos ali para o desse e viesse e era melhor esquecer o assunto. Adiante se veria. 

Chegámos. O avião tinha feito a sua aterragem de modo impecável e preparávamo-nos para sair. Pegámos nas bagagens de mão e lá fomos. Dirigimo-nos para a passadeira para pegar a nossa bagagem mais pesada e o guia turco marcou um ponto de encontro para todos, junto à porta do aeroporto, para seguirmos num autocarro que nos aguardava no exterior. 

Alguém estava com pressa em fazer o câmbio, por isso fomos a um balcão ainda dentro do aeroporto, antes de irmos para o ponto de encontro. Era uma, depois outra também quis e mais uma e demorámos algum tempo ali. Depois houve trocas e empréstimos de dinheiro, abre carteiras e malas de mão, passaportes para mostrar e para guardar, etc… e finalmente estava tudo resolvido. Seguimos então para a porta onde nos aguardava o guia e o restante grupo. 

E já mesmo quase na porta de saída, a Rosa deu um grito e perguntou “a minha mala?”. Olhámos uns para os outros e de facto percebemos que ela era a única que não transportava a mala. A mala(?) começou toda a gente a perguntar, mas a mala tinha sido retirada do tabuleiro pela própria. Ou seja, a mala tinha chegado juntamente com as outras. Só que não estava com ela. A Rosa estava em pânico, sem saber o que fazer. O sangue subira-lhe à cabeça e o rosto estava vermelho da aflição de se ver sem a mala. Foi aí que pensei “então era isso, a mala dela”! Quando ela ainda no avião tinha feito aquela afirmação de que ia correr tudo bem, era a necessidade de afirmação de algo que poderia ter dado errado. 

Entretanto, lembrámo-nos de que tínhamos estado no balcão do câmbio e era quase certo a mala ter ficado lá por distracção, o que foi posteriormente confirmado pelas câmaras de segurança que tinham seguido o nosso trajecto e recolhido a mala que ficara abandonada. A Rosa aparecia afogueadíssima, cheia de calores, com o guia turco já com a mala, depois de uma hora de espera para que o assunto fosse resolvido, para nosso grande alívio. Estava resolvido o problema e a coisa, apesar do susto, tinha sido pacífica. Apenas alguma espera com que não contávamos. O factor “intituição” tinha funcionado e o “alerta” estava agora dissipado. 

 

terça-feira, 16 de julho de 2019

A morte - 76



Desde que nascemos, a morte é a coisa mais certa da vida. Na cultura ocidental, porém, a morte está muito distanciada, isto é, não queremos nada com ela e frequentemente, quando alguém morre, independentemente do motivo, achamos que foi um grande azar. Há acidentes de vária natureza, há também erros de medicina, falhas humanas, mas sempre arranjamos uma desculpa, considerando que a morte se podia ter evitado. O que nunca pensamos e aceitamos é que ela tem dia e hora marcada. Quando nascemos já a trazemos predestinada e não vai possível alterá-la. É do domínio dos registos akáshicos e nada nem ninguém pode mudar essa circunstância. Mas na nossa cultura, de facto, a morte nunca é aceite como algo inerente à própria vida. O culto à morte está entre muitas culturas, paradoxalmente nas mais ancestrais, e é algo comum entre culturas indígenas com uma aceitação pacífica e normal. Porém, quanto mais o homem evolui, mais se afasta da realidade da morte. Alguém disse esta frase muito certa “Os homens vivem como se nunca fossem morrer e morrem como se nunca tivessem vivido” (Jim Brown).

 

Há uns bons anos atrás, tive um companheiro paquistanês que residia em Portugal. E durante os sete anos que vivi com ele aprendi a pensar e a ver por outras perspectivas e outros prismas de vista. Por exemplo, ele casou-se muito novo, de acordo com os costumes da sua cultura, com casamento marcado pela família e desse casamento tinha um filho com oito anos, mas esse foi o segundo filho, porque antes houve um outro, o primeiro, que morreu após um dia de vida. 


Desde a primeira hora em que ele me contou isto, achei triste ter um filho que morre logo de seguida. Achei que se acontecesse comigo morreria também. Mas a ele parecia não incomodar. É certo que já lá iam uns anos, mas ele sempre me parecera muito sereno em relação a esse assunto. E de vez em quando fazia-lhe perguntas para tentar perceber a razão de tal ter acontecido, para perceber se teria havido alguma hipótese daquela criança ter sobrevivido. Eu achava que podia entender e ele ia respondendo conforme podia, de acordo com as informações que tinha, que eram escassas, digamos. Até um dia em que já estava farto de tanta insistência da minha parte com aquele assunto e me respondeu simplesmente que tinha acontecido porque deus (Alá) tinha mandado aquela criança à vida e lhe tinha dito, vais e vives um dia, depois morres. E o assunto para ele estava encerrado. 


E percebi que era óbvio. Não era fácil para mim tratar aquele assunto assim, mas entendi que ele estava certo. Esta é que é a verdade. Ele estava certíssimo. Não havia motivo para tanta relutância da minha parte. O que estava em causa era a aceitação das coisas que são naturais e a morte é uma coisa natural. Todos os que vêm à vida morrem. Eles não ficam felizes com a morte, mas têm uma postura completamente diferente da nossa ou da maioria das pessoas.

 

Quando eu era criança, tinha os meus cinco anos de idade, vivi uns tempos em Lisboa com os meus tios enquanto os meus pais e a minha irmã bebé ainda estavam em África, por conta de problemas complicados que agora não vem ao caso. O facto é que tive que vir para Portugal e ficar com eles, o que me custou bastante, mas que era necessário. Quando chegou o verão, eles mandaram uma empregada que tinham a tempo inteiro (interna) de férias para a terra dela, a Chamusca, e fui com ela porque acharam que seria bom para mim. Não se enganaram, porque tudo era melhor do que fichar fechada num terceiro andar no coração de Lisboa. A família dela era gente humilde e viviam no campo. Não havia água canalizada, pelo que a toda a hora era preciso ir à fonte encher os cântaros de barro que carregavam sobre a cabeça por cima de uma rodilha. E como a casa ficava num monte, para tudo andávamos ladeira abaixo, ladeira acima.

 

Havia um grande quintal em volta da casa com árvores, capoeiras, tanque de lavar roupa, terreno lavrado e cultivado onde se iam colher os produtos para depois se cozinhar. Tudo aquilo era muito giro e, embora diferente, trazia muito de volta a minha África. Pelo menos eu tinha ar livre. Podia correr, cair, sujar-me. Podia novamente trepar às árvores. Não havia cajus nem mangas, mas havia figos doces como o mel e descobri que adorava aquela fruta maravilhosa até hoje. Enfim, a criança aventureira que havia em mim renasceu, saiu à vida e agradeceu aquela maravilhosa oportunidade. 


É claro que estavam sempre a reprimir-me, com medo disto e daquilo, que me acontecesse alguma coisa, e tentavam quebrar a minha liberdade, mas eu sabia como me defender. Eu era perita nisso e acabava sempre por fazer aquilo que me apetecia. Desassossegava os galos, as galinhas e foi uma festa e tanto, quando descobri uma ninhada de pintainhos pequeninos, amarelinhos, uma coisa muito fofa que me deixou completamente deliciada. Todos os dias me massacravam a paciência com uma gemada com açúcar em jejum porque, diziam, dava muita força… como se eu precisasse disso. Eu precisava era de ar livre e espaço para brincar. Só me sentia infeliz e desarticulada quando ficava enclausurada, sem saber o que fazer. E depois havia contra uma parede exterior da casa um banco corrido de pedra, onde nas noites muito quentes o pai delas, um senhor já com bastante idade, estendia uma manta velha e dormia ao relento. No outro dia quando me levantava, já lá não estava nunca, para lhe poder perguntar se tinha dormido bem e como era ficar ali fora, porque o meu sonho secreto era um dia poder dormir ali, adormecer olhando as estrelas naquele céu limpo onde, sem as luzes dos candeeiros, brilhavam com uma intensidade maior. E queria sentir a noite, momento após momento, a noite na noite dentro, estar atenta à natureza, a tudo o que à minha volta se passava e descobrir os mistérios da escuridão. Só que isso nunca aconteceu que elas nunca me deixaram fazer, com grande pena minha.

 

E no meio dessa brincadeira toda, dessas novidades da província, da vida simples do campo, das idas ao rio para tomar banho e refrescar do calor, no meio das vinhas onde eu queria à força integrar-me para também apanhar as uvas e mostrar que era capaz como as outras crianças, e os tomates que eram o mais parecido com os frutos tropicais por causa da cor, caminhar nas estradas de terra onde a poeira se levantava no ar, enfim, eu sei lá já há quanto tempo, parece que foi noutra vida… mas no meio disso tudo, aconteceu um episódio que nunca esqueci.

 

Um dia correu a notícia de que a senhora não sei quantas estava mal, muito mal. A senhora não sei quantas era uma velhota, muito velhota. Estava de cama e não se levantava mais. E toda a gente ia lá para a ver. A população era reduzida, as pessoas conheciam-se todas umas às outras. Então chegou a vez da empregada dos meus tios, a Leonor e a irmã irem lá vê-la também. E como não me iam deixar sozinha porque eram só elas em casa durante o dia, o marido da irmã e o pai estavam na lavoura, lá fui eu também a casa da senhora velhota que, efectivamente, estava na cama. 


Era um ambiente soturno, triste, deprimente. Havia a família e depois os amigos. Estavam todos à beira dela, por assim dizer. Uma cama no meio de um quarto quase sem nada e a velhota lá deitada, de olhos fechados, com umas vestes pretas, um silêncio de cortar à faca e as pessoas falando em segredo. Até já lá tinha ido o padre para dar a extrema unção, porque não se sabia quanto tempo ela podia estar naquele estado. As pessoas chegavam, aproximavam-se dela, algumas tocavam-lhe, parecia que rezavam e iam-se, para dar lugar a outras. Coitada, diziam algumas pessoas, deus a leve em paz e outras coisas do género. E eu olhava atentamente para aquele ser inerte, tentando vislumbrar algum rasgo de luz. Mas ela estava mais para lá do que para cá.  E alguém pergunta baixinho, sobre o estado dela, querendo saber quanto tempo é que ela iria sobreviver. E alguém respondeu baixinho que o sofrimento dela era muito doloroso e que podia ficar assim por dias, semanas, até se finar de vez. Coitada, diziam, deus tenha piedade(!).

 

E eu que era uma criança de cinco anos apenas e que nessa altura ainda não tinha o trauma da morte, porque a minha mãe ainda não tinha falecido, ainda estava viva e bem viva; eu que não tinha experiência da vida e muito menos da morte, quando ouvi dizerem que ela ficaria assim por muitos dias, até semanas, achei aquilo um absurdo, uma loucura, pensando para comigo que era impossível, porque ela estava exalando o último suspiro e teria apenas umas horas de vida!? Era isto que eu via e era isto que eu sentia. Em todo o caso, como era muito pequena e não sabia nada de nada, acreditei no que ouvi e fiquei com imensa pena de ver um ser humano viver dias ou semanas naquele estado miserável, mais morto que vivo.

 

Feita a visita e os cumprimentos da praxe lá fomos rumo ao monte, no caminho para casa, ainda embuídos daquele clima mórbido e doentio. Pelo caminho fiz a mesma pergunta que tinha ouvido fazer, na esperança de ter uma resposta diferente, mas a resposta foi a mesma, ou seja, que podia ficar assim muitos dias em sofrimento e mais uma vez fiquei não gostei e fiquei impressionada, achando que ela realmente teria apenas algumas horas, quando muito.  


Passou-se a noite e no outro dia logo de manhã veio a notícia de que naquela madrugada a velhota tinha morrido. Quando ouvi pensei logo, eu estava certa. Como é que mais ninguém tinha visto o que eu vi?! Gente da aldeia, de certa forma habituados a lidar com a morte de uma maneira mais familiar do que nas cidades e não perceberam?

 

O facto é que realmente vimos coisas diferentes. Aquela criatura já não representava a vida mas, sim, a morte imediata, que parece que só eu vi.

 

Muita gente pensa que as crianças não compreendem e não entendem, como se fossem cegas, surdas e mudas. É um engano de todo o tamanho! A sensibilidade e a percepção de tudo está lá inteiríssima, toda concentrada, porque ainda nada se perdeu. Vamos crescendo e aí sim, o melhor, o mais genuíno de nós, vai ficando pelo caminho e em muitos casos desaparece completamente para a grande destruição e ruína do ser humano.




sábado, 13 de julho de 2019

As duas faces da moeda - 75



Tiago era emigrante nos Estados Unidos, onde residia há mais de vinte anos. Tinha ido com uma namorada portuguesa com quem casou e teve dois filhos. As coisas não correram muito bem entre eles e veio o dia em que se separaram tendo, no entanto, continuado a viver na América, mais propriamente em Miami. Tiago vinha a Portugal sempre que podia, uma vez por ano e os filhos acompanhavam-no para estarem com os avós e restante família que não era pouca.

 

Com os filhos já adolescentes e separado da primeira mulher Tiago conheceu Nina, uma jovem cubana também emigrante, com idade para ser filha dele, mas que se apaixonou por ele e ele por ela. Nina veio uma primeira vez a Portugal para conhecer a família do namorado e todos se encantaram com ela, bem como ela com a família dele. Uma paixão “caliente”, bem evidente para todos. Os dois estavam felizes e as famílias também. Era uma alegria e tanto. Os filhos gostavam muito da madrasta e vice-versa. Era uma família feliz, muito bem dispostos, onde havia alegria para dar e vender. O casal dava-se às mil maravilhas e tudo era bom demais.

 

Os primeiros anos passaram e Nina começou a falar em ter um filho. Ela insistia em querer ter um filho dele. Afinal ele tinha dois filhos do primeiro casamento e Nina era jovem, por isso achava que era justo ter um filho. Tiago não parecia estar para aí virado, talvez porque já tinha dois adolescentes e como ele sempre fazia questão de salientar, outro filho significava noites mal dormidas, fraldas, biberons, papas e choro de criança. Tudo o que está implícito na vida de um casal quando chega um filho. E Tiago fazia questão de lembrar a Nina um certo desassossego que, com toda a certeza, interferiria na vida de ambos. A questão era simples. Valeria a pena? Quereriam ambos o mesmo?

 

Nina queria, porque queria. Queria ser mãe e ter um filho seu. Ela gostava muito dos enteados a quem tratava com muito amor e todo o carinho, mas ter um filho seu, disso não abdicava. E, quando às vezes Tiago, meio brincando, meio a sério, lhe dizia que se queria um filho teria que arranjar alguém que lho fizesse, porque ele não queria outro filho, ela dizia-lhe com todas as letras que podia até ser, mas que era ele, Tiago, que o iria criar com ela. Isto evidenciava bem o quanto ela admirava o companheiro e como ela achava que ele era gente boa, com bons valores, a ponto de querer que fosse ele a educar um filho dela, como o fazia com os outros.

 

O tempo foi passando e um dia Nina ficou grávida e então Mia nasceu. Uma fofa. Uma coisinha muito querida, muito docinha. Um encanto. E o Face Book mostrava fotos sem fim dos dois em Miami com a sua pequenina Mia, que crescia a olhos vistos. Fotos que mostravam o grande amor entre eles, deliciados com a sua pequenina. Mia fez um aninho e veio a Portugal com os pais e a avó materna, para ser baptizada com a família toda junta. Uma grande festa, uma grande alegria. Exceptuando uma amiga, que à porta da igreja, para não dar vexame, chorava baba e ranho de todo o tamanho, porque estava casada há bastantes anos e não conseguia engravidar de maneira nenhuma. E então, como não podemos estar sempre felizes, ela chorava que só vendo.

 

Um dia, quando Mia já estava com dois aninhos, Tiago chega a Portugal sozinho, para não mais voltar. Ah!... E agora? E então? Pior ainda, sem dinheiro, sem emprego, sem nada. Além do mais, parecia que não estava a bater bem. Era natural, com uma mudança destas tão brusca, qualquer um fica a bater mal.

 

Enfim, toda a família - irmãos, tios, primos e a própria mãe – estava preocupada e apreensiva com a situação de Tiago, agora com quarenta e oito anos, de volta, sozinho e sem nada, absolutamente nada. E começaram a mobilizar-se para o ajudar. A ajuda veio de vários lados, mas Tiago não se adaptava a nada. Estava estranho, chateado e sem perspectiva de coisa nenhuma. Os irmãos começaram a ficar cada vez mais preocupados com a situação dele, que continuava a dar sinais de perturbação mental.

 

Já tinham decorrido uns meses desde que chegara a Portugal quando a família recebeu a visita de Nina com a pequena Mia. A chegada das duas apenas para férias dava, no entanto, à família, alguma esperança de um possível entendimento das suas vidas, já que ambos se gostavam tanto. Mas tal não aconteceu. Durante toda a sua estadia em Portugal e em casa da sogra, Nina fez questão absoluta de mostrar de forma decisiva, que não havia volta a dar e que a sua decisão estava tomada. Tiago não fazia mais parte da vida dela. Tiago não tinha nada para ela e era um vazio completo do qual ela abdicava pura e simplesmente. Ele alimentara uma secreta esperança que fora redondamente em vão. Assim, a família ficou ciente de que Nina não queria mais Tiago. Tudo o que ela via nele tinha-se desvanecido completamente. Tudo virara fumaça no ar. Não restava nada do amor que tinham um pelo outro. Nina tinha vindo exactamente para deixar a situação bem esclarecida, bem definida e para que ninguém tivesse a menor dúvida. E mais, uma vez que Tiago não tinha lá família, ela achava que ele não tinha motivos para voltar para os Estados Unidos. Queria que ele ficasse de vez em Portugal. De facto, toda a família dele estava em Portugal, tirando os filhos, cujas mulheres viviam em Miami. E dito isto, partiu com a filhinha rumo aos Estados Unidos onde, nesta altura, já vivia com a família.

 

Perante esta situação, Tiago estava completamente de rastos. A vida tinha perdido todo o sentido e não havia forças para organizar as ideias do que restava de si mesmo. Depois de muita luta os irmãos conseguiram levá-lo a um psiquiatra. Contrariado, Tiago foi e voltou para casa medicado, o que nada adiantou, porque os medicamentos ficaram metidos numa gaveta. O tempo foi passando e Tiago não melhorava, muito pelo contrário. Toda a família preocupadíssima com as suas atitudes inadequadas, uma vez mais se envidaram esforços para o levar a um psicólogo e mais uma vez ele reagiu mal. Em todo o caso, por insistência dos irmãos e primos, Tiago foi ao psicólogo. Não era um, mas uma psicóloga e ele logo começou a falar da psicóloga de modo nada abonatório. Mas isso já era de esperar.

 

O tempo foi passando e um dia Tiago sentiu-se mal, pelo que foi necessário levá-lo à urgência hospitalar. Exames e mais exames, já não saiu do hospital. No curto espaço de tempo em que ficou internado teve o  azar de contrair uma bactéria. Mas para além disso foi-lhe diagnosticado um tumor no cérebro. A situação que já era complicada, mais complicada ficou. Os médicos chamaram a família e comunicaram que o tumor precisava de ser removido o mais depressa possível, para lhe poderem tratar da infecção pulmonar causada pela bactéria que se estava a alastrar. Uma cena complicadíssima. Dada a gravidade do seu estado clínico foi ainda necessário induzi-lo em estado de coma.

 

Isto provocou uma verdadeira corrida ao hospital por parte de toda a família e amigos mais próximos, revezando-se sem descanso. E Tiago teve mesmo que ser operado de urgência, sendo que os médicos prepararam a família para a realidade nua e crua do problema, dizendo que não podiam garantir nada. Em todo o caso, a cirurgia correu bastante bem e agora era aguardar a reacção do paciente, a resposta do seu corpo a tudo o que a medicina aparentemente tinha podido fazer. Uns rezavam, outros iam à igreja, outros choravam e lamentavam… tudo o que é natural nestes casos. É normal as pessoas reagirem assim. Vieram as duas ex-mulheres da América, os dois filhos adolescentes e todos se condoíam pelo estado do pai, do amigo, do irmão, do filho, sobrinho, etc…

 

Passou uma semana em que o estado de saúde de Tiago andava ora para a frente, ora para trás, para finalmente sucumbir. Para grande pesar e tristeza de todos sem excepção, Tiago partira para não mais voltar. Casos destes acontecem todos os dias, a todas as horas, mas nós não sabemos, graças a deus. Até ao dia em que nos toca pela porta.

 

Estávamos no funeral, um funeral com gente que nunca mais acabava, porque é uma família muito, muito grande. Uns choravam, outros aceitavam. As duas mães dos filhos acompanharam o corpo até entrar no gavetão e ambas choravam, choravam, mas o desassossego da segunda era bem maior que o da primeira. A segunda era Nina, a mãe de Mia, que tinha ficado com a família materna em Miami por ser muito pequenina. Nina estava sozinha e chorava que dava dó. Chamava por ele, beijava o caixão, etc, etc, etc… e é nesta altura que começo a ouvir vozes que se salientam, comentando que Nina tinha muita culpa. Nina tinha “expulsado” Tiago e arruinado a vida dele. Como é que podia agora mostrar-se tão chorosa, tão infeliz, se tinha corrido com ele da maneira mais cruel possível!? Ela tinha dito que não queria mais nada com ele e não o queria na América porque, sem ela, não havia justificação para ele continuar lá. E porquê? Porque ficaria sozinho, sem família. Ela não o queria mais.

 

E os comentários continuavam, chamando a atenção para o facto de ela ter sido um “diabo” na vida dele.

 

Aparentemente era assim. Ela despachara-o, efectivamente, sem dó nem piedade. Tinha sido muito dura. Todos estavam cientes disso porque ela mesma, a própria, não mandara recado, tinha feito questão de deixar isso bem esclarecido. Não era segredo para ninguém.

 

Eu estava assistindo a tudo isto e não tinha razões para a defender ou para a atacar. Mas, de repente, pensei para comigo mesmo “e se ela não o tivesse mandado embora, se apenas se tivesse desligado dele e não se importasse com o facto de ele ficar sozinho ou não? Como é que teria sido? Não teria sido muito pior?”

 

Segundo os médicos, o tumor de Tiago era muito grande, teria no mínimo uns cinco anos. Foi o tempo de eles se conhecerem, se apaixonarem e terem uma filha. E o tumor lá. Só na hora da bomba rebentar é que ele foi “escorraçado”. A minha questão é: Nina foi um “anjo” bom ou um anjo mau? Ressalve-se que “anjo” é apenas um modo de falar. Então Nina foi do bem ou do mal? Pelas aparências, tudo leva crer que foi do mal. Mas, insisto, se ela não o tem mandado embora, ele tinha ficado lá sozinho com aquele problema e quem sabe, teria morrido sozinho, sem a família por perto, o que teria sido muito, mas muito pior para todos. 


Quando ela o manda embora não sabe, claro, não está consciente disso, mas está apenas cumprindo a sua missão, porque o está devolvendo ao seio familiar, para com eles viver os seus últimos dias de vida. Nem ela nem ninguém sabe disso, mas o cosmos sabe o que faz e nós somos apenas induzidos superiormente para cumprir as nossas missões, que é para isso que aqui estamos. Apunhalar Nina seria, à primeira vista, a coisa justa a fazer. Mas aí estaríamos apenas a considerar uma das faces da moeda. Se a virarmos, a história é outra e então compreenderemos muito melhor o destino dos homens, o destino da humanidade. 


As coisas não são o que parecem. O plano divino é verdadeiramente fabuloso. Mas acima de tudo é um grande mistério. E é essa a razão porque não podemos nem devemos julgar, pois o risco de errar é quase certo. A verdade é que a atitude aparentemente desumana de Nina poupou à família um desgosto ainda maior. Nina sem saber, fez a coisa certa, devolvendo-o à família. É assim. A moeda tem sempre duas faces.

 


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

"Improviso" - 74



Na sexta-feira fui ao Chi Kung e encontrei a Cris. A Cris é minha colega no Chi Kung, na USO e presentemente, uma das minhas melhores amigas. Às vezes fazemos programas juntas e não raras vezes vamos ao cinema. E na sexta-feira quando a vi, apeteceu-me falar-lhe em cinema para o fim-de-semana. Porém, ela comentou tanta coisa acerca dos seus afazeres que percebi que não valia a pena falar nisso. Ficaria para outra ocasião. 

Entretanto, ainda na sexta-feira ao fim da tarde, cruzei-me com a Rosário, minha vizinha do mesmo prédio, mesmo andar, do meu lado esquerdo, que alterna os fins-de-semana entre esta casa e a casa de campo em Torres Vedras. Falámos e ela comentou que este fim-de-semana era do lado de cá. E porque não dar uma saidinha, talvez ir ao cinema? Afinal, não tinha combinado nada com a Cris nem com mais ninguém, portanto, podia ser. No entanto, ainda estava em tempo de telefonar à Cris, para o caso de ela estar interessada em ir connosco. Mas depois havia a Isabel e a Flora, que às vezes também alinham. Mas voltei a pensar que a Cris realmente parecia estar muito cheia no fim-de-semana e uma vez que nem sequer tinha falado nisso, é porque era quase certo não poder ir. Quanto às outras, deveria ter combinado mais cedo. Pois bem, iria ao cinema no sábado com a Rosário. 

A Rosário conhece a Cris, numa viagem que fizemos à Turquia e que, quase por acaso, a Cris também foi. Mas isso é uma outra história. 

No sábado falei com a Rosário e decidimos que entre o Strada e o Loureshopping, iríamos ao Strada, por causa dos horários e iríamos com uma certa antecedência para fazermos um lanchinho ou ver as novidades nas lojas e assim foi. 

Sábado à tarde, muitos carros à entrada do piso menos um, fizeram-me decidir ir para o menos dois, o que é raríssimo. Mas fui, para evitar as confusões do estacionamento. Entrámos no Centro Comercial propriamente dito e sugeri que comprássemos os bilhetes para ficarmos despachadas e depois então fôssemos dar um giro antes do cinema. Assim foi. Chegadas à bilheteira, tínhamos dois filmes em mente. Disse à Rosário que escolhesse. Escolhes tu, escolho eu, decidimos o filme que ela queria: “Amigos Improváveis”. Não era exactamente o que me apetecia, mas tudo bem. A rapariga que nos atendeu perguntou onde nos queríamos sentar. A Rosário escolheu os lugares, inclusive a fila, no que eu concordei. Era indiferente. Fomos dar uma volta e na altura certa, tendo em atenção as horas, disse-lhe que deveríamos ir andando para o cinema. E fomos. 

Entrámos na sala já com as luzes apagadas, eu na frente e ela atrás e começámos a subir os degraus. E logo no início, olhei para o cimo da sala, porque vi uma figura de mulher a despir o casaco que pensei para comigo mesma “parece mesmo a Cristina”, longe de pensar encontrá-la ali. Chegadas à nossa fila, ouço uma voz bem conhecida dizendo: “ah… apanhei-te!” Não sem espanto, olho e nem queria acreditar, a Cris, ela mesma, em pessoa. Bom, não foi preciso perguntar o que estava ali a fazer porque era óbvio. Sozinha(?), perguntei. Sim, disse ela. E perguntou quais eram os nossos lugares. Onze e doze. Treze é o meu, comentou ela. Não! Era absolutamente inacreditável. Numa sala tão grande, com meia dúzia de “gatos pingados”, a Cristina está sentada mesmo ao nosso lado. A Rosário ficou embasbacada, sem saber o que dizer, pensando que tínhamos combinado sem que eu lhe tivesse dito nada, o que não faria o menor sentido, é claro, e frisei que não tínhamos combinado nada, dado que ela parecia ter o fim-de-semana cheio, o que a Cris confirmou. Mas explicou que a irmã tinha feito anos, isso já eu sabia porque era um dos compromissos dela para o fim-de-semana, e ela tinha-lhe oferecido uma camisola que, por qualquer razão, precisava de ser trocada e como não lhe apetecia ir ao Centro, pediu à Cris para lhe tratar disso. A Cris despachou o almoço em família, ficou um pouco encostada a descansar, com a sua cadela e a sua gata Maria, e a páginas tantas achou que não havia necessidade de ficar em casa, uma vez que já todos tinham dado à sola. Subitamente, levantou-se e decidiu ir tratar da troca da prenda da irmã. Quando chegou ao Centro Comercial foi espreitar os cinemas e vendo que estava na hora, decidiu ir ver “Amigos Improváveis”. Comprou o bilhete e lá foi ela, longe de pensar que nos íamos encontrar, claro. Mas o absurdo disto tudo é que, sem combinarmos nada, escolhemos o mesmo dia, o mesmo filme, a mesma sessão e até os lugares juntos, quando não havia mais ninguém na mesma fila, nem à direita nem à esquerda?! Bingo. A Rosário continuava intrigadíssima, achando que era muita coisa para ser simples coincidência. Mas há mais. 

Na saída do cinema a Cris perguntou de que lado eu tinha o carro. Para ali, disse eu. Eu também, respondeu ela. E começámos a rir. No piso menos um ou no menos dois, perguntou novamente. Excepcionalmente, estou no menos dois, respondi. Eu também, respondeu ela. E lá começámos a rir outra vez. Entrámos no estacionamento e ela perguntou para que lado era. Para ali, respondi eu. Eu também. Enfim, os nossos carros estavam quase juntos. Bem pertinho um do outro. Por pouco não estavam lado a lado. Mas a Rosário parecia que ainda não estava bem convencida de que tudo não tinha passado de uma grande coincidência ou de coisas do destino, se assim quisermos. Não parava de referenciar tanta coincidência. E mais uma vez tive que relembrá-la de que foi ela quem escolheu o filme e os lugares. Eu apenas me limitei a concordar. 

Isto recordou-me uma história bem antiga, lá atrás, perdida no tempo, mas bastante curiosa ou não menos curiosa. 

Eu tinha então dezoito anos. Estava em Lisboa havia meia dúzia de meses, trabalhava no Ministério das Finanças e vivia num lar para raparigas estudantes e trabalhadoras. 

Era uma tarde de domingo de um dia invernoso, sem chuva, mas com muito frio. E decidi que me apetecia viver, pois era para isso que tinha deixado o liceu em Setúbal para ir trabalhar para Lisboa. Então vesti-me para sair e disse às outras miúdas que ia a uma festa. Onde? Com quem? Isso eram tudo respostas que eu não tinha para lhes dar porque também não as tinha para mim. Apenas decidi sair e apetecia-me comer umas coisas boas e dançar. Como não tinha dinheiro para me dar a esses luxos, ia sair e havia de ir a uma festa. Numa festa encontraria isso tudo que queria. 

Claro que as raparigas não tiveram em conta nada disto. Devem ter pensado que eu era doida. Além disso, sabiam que eu estava em Lisboa havia muito pouco tempo e não conhecia praticamente nada nem ninguém, além do Ministério. 

Mas eu saí mentalizando que iria a uma festa, porque me apetecia distrair um bocadinho e descontrair. Apanhei o metro das Picoas, bem pertinho do lar e lá fui eu rumo à baixa. No metro, sem querer, estavam ao meu lado dois rapazes e do nada, começámos a falar. Os dois perguntaram-me para onde eu ia e respondi que sem rumo, ou seja, sem destino certo, apenas passear um pouco. E aqui começa a trama das coincidências. Os dois iam a uma festa de aniversário de um amigo e convidaram-me para ir com eles. Uma festa, era tudo o que eu queria e como eles me pareceram gente fixe, logo aceitei. 

A festa era numa garagem. Estavam os pais do aniversariante, alguns familiares e amigos. Fui muito bem recebida por todos os presentes o que muito me encantou, é claro. O pai do garoto logo se apressou a convidar-me a tirar o longo casaco e foi uma verdadeira surpresa para todos, porque debaixo do casacão até aos pés estava precisamente o inverso, isto é, uma garota de dezoito anos, de hotpants atrevidos, que na altura muito se usava, e botas de cabedal pretas acima do joelho. Ninguém diria, mas foi assim: do casulo saiu uma deliciosa borboleta, que muito animou a festa já que todos queriam dançar comigo, a começar pelo pai do garoto que parecia encantado com a nova “amiga” do filho. 

De volta para casa, isto é, de regresso ao lar, pela hora tardia, as raparigas curiosas voltaram a perguntar onde tinha ido afinal. E simplesmente voltei a responder: “a uma festa”. O rosto delas não tinha expressão alguma. Queriam outra resposta que não fosse aquela. Uma resposta que considerassem válida e coerente ou então eu já sabia que ia a uma festa e não lhes queria dizer para não se pendurarem. Não era nada disso. Mas, uma vez mais, eu não tinha outra resposta. Na verdade, tal como lhes tinha dito antes de sair, eu tinha ido a uma festa. Uma festa de “improviso”.