sábado, 13 de julho de 2019

As duas faces da moeda - 75



Tiago era emigrante nos Estados Unidos, onde residia há mais de vinte anos. Tinha ido com uma namorada portuguesa com quem casou e teve dois filhos. As coisas não correram muito bem entre eles e veio o dia em que se separaram tendo, no entanto, continuado a viver na América, mais propriamente em Miami. Tiago vinha a Portugal sempre que podia, uma vez por ano e os filhos acompanhavam-no para estarem com os avós e restante família que não era pouca.

 

Com os filhos já adolescentes e separado da primeira mulher Tiago conheceu Nina, uma jovem cubana também emigrante, com idade para ser filha dele, mas que se apaixonou por ele e ele por ela. Nina veio uma primeira vez a Portugal para conhecer a família do namorado e todos se encantaram com ela, bem como ela com a família dele. Uma paixão “caliente”, bem evidente para todos. Os dois estavam felizes e as famílias também. Era uma alegria e tanto. Os filhos gostavam muito da madrasta e vice-versa. Era uma família feliz, muito bem dispostos, onde havia alegria para dar e vender. O casal dava-se às mil maravilhas e tudo era bom demais.

 

Os primeiros anos passaram e Nina começou a falar em ter um filho. Ela insistia em querer ter um filho dele. Afinal ele tinha dois filhos do primeiro casamento e Nina era jovem, por isso achava que era justo ter um filho. Tiago não parecia estar para aí virado, talvez porque já tinha dois adolescentes e como ele sempre fazia questão de salientar, outro filho significava noites mal dormidas, fraldas, biberons, papas e choro de criança. Tudo o que está implícito na vida de um casal quando chega um filho. E Tiago fazia questão de lembrar a Nina um certo desassossego que, com toda a certeza, interferiria na vida de ambos. A questão era simples. Valeria a pena? Quereriam ambos o mesmo?

 

Nina queria, porque queria. Queria ser mãe e ter um filho seu. Ela gostava muito dos enteados a quem tratava com muito amor e todo o carinho, mas ter um filho seu, disso não abdicava. E, quando às vezes Tiago, meio brincando, meio a sério, lhe dizia que se queria um filho teria que arranjar alguém que lho fizesse, porque ele não queria outro filho, ela dizia-lhe com todas as letras que podia até ser, mas que era ele, Tiago, que o iria criar com ela. Isto evidenciava bem o quanto ela admirava o companheiro e como ela achava que ele era gente boa, com bons valores, a ponto de querer que fosse ele a educar um filho dela, como o fazia com os outros.

 

O tempo foi passando e um dia Nina ficou grávida e então Mia nasceu. Uma fofa. Uma coisinha muito querida, muito docinha. Um encanto. E o Face Book mostrava fotos sem fim dos dois em Miami com a sua pequenina Mia, que crescia a olhos vistos. Fotos que mostravam o grande amor entre eles, deliciados com a sua pequenina. Mia fez um aninho e veio a Portugal com os pais e a avó materna, para ser baptizada com a família toda junta. Uma grande festa, uma grande alegria. Exceptuando uma amiga, que à porta da igreja, para não dar vexame, chorava baba e ranho de todo o tamanho, porque estava casada há bastantes anos e não conseguia engravidar de maneira nenhuma. E então, como não podemos estar sempre felizes, ela chorava que só vendo.

 

Um dia, quando Mia já estava com dois aninhos, Tiago chega a Portugal sozinho, para não mais voltar. Ah!... E agora? E então? Pior ainda, sem dinheiro, sem emprego, sem nada. Além do mais, parecia que não estava a bater bem. Era natural, com uma mudança destas tão brusca, qualquer um fica a bater mal.

 

Enfim, toda a família - irmãos, tios, primos e a própria mãe – estava preocupada e apreensiva com a situação de Tiago, agora com quarenta e oito anos, de volta, sozinho e sem nada, absolutamente nada. E começaram a mobilizar-se para o ajudar. A ajuda veio de vários lados, mas Tiago não se adaptava a nada. Estava estranho, chateado e sem perspectiva de coisa nenhuma. Os irmãos começaram a ficar cada vez mais preocupados com a situação dele, que continuava a dar sinais de perturbação mental.

 

Já tinham decorrido uns meses desde que chegara a Portugal quando a família recebeu a visita de Nina com a pequena Mia. A chegada das duas apenas para férias dava, no entanto, à família, alguma esperança de um possível entendimento das suas vidas, já que ambos se gostavam tanto. Mas tal não aconteceu. Durante toda a sua estadia em Portugal e em casa da sogra, Nina fez questão absoluta de mostrar de forma decisiva, que não havia volta a dar e que a sua decisão estava tomada. Tiago não fazia mais parte da vida dela. Tiago não tinha nada para ela e era um vazio completo do qual ela abdicava pura e simplesmente. Ele alimentara uma secreta esperança que fora redondamente em vão. Assim, a família ficou ciente de que Nina não queria mais Tiago. Tudo o que ela via nele tinha-se desvanecido completamente. Tudo virara fumaça no ar. Não restava nada do amor que tinham um pelo outro. Nina tinha vindo exactamente para deixar a situação bem esclarecida, bem definida e para que ninguém tivesse a menor dúvida. E mais, uma vez que Tiago não tinha lá família, ela achava que ele não tinha motivos para voltar para os Estados Unidos. Queria que ele ficasse de vez em Portugal. De facto, toda a família dele estava em Portugal, tirando os filhos, cujas mulheres viviam em Miami. E dito isto, partiu com a filhinha rumo aos Estados Unidos onde, nesta altura, já vivia com a família.

 

Perante esta situação, Tiago estava completamente de rastos. A vida tinha perdido todo o sentido e não havia forças para organizar as ideias do que restava de si mesmo. Depois de muita luta os irmãos conseguiram levá-lo a um psiquiatra. Contrariado, Tiago foi e voltou para casa medicado, o que nada adiantou, porque os medicamentos ficaram metidos numa gaveta. O tempo foi passando e Tiago não melhorava, muito pelo contrário. Toda a família preocupadíssima com as suas atitudes inadequadas, uma vez mais se envidaram esforços para o levar a um psicólogo e mais uma vez ele reagiu mal. Em todo o caso, por insistência dos irmãos e primos, Tiago foi ao psicólogo. Não era um, mas uma psicóloga e ele logo começou a falar da psicóloga de modo nada abonatório. Mas isso já era de esperar.

 

O tempo foi passando e um dia Tiago sentiu-se mal, pelo que foi necessário levá-lo à urgência hospitalar. Exames e mais exames, já não saiu do hospital. No curto espaço de tempo em que ficou internado teve o  azar de contrair uma bactéria. Mas para além disso foi-lhe diagnosticado um tumor no cérebro. A situação que já era complicada, mais complicada ficou. Os médicos chamaram a família e comunicaram que o tumor precisava de ser removido o mais depressa possível, para lhe poderem tratar da infecção pulmonar causada pela bactéria que se estava a alastrar. Uma cena complicadíssima. Dada a gravidade do seu estado clínico foi ainda necessário induzi-lo em estado de coma.

 

Isto provocou uma verdadeira corrida ao hospital por parte de toda a família e amigos mais próximos, revezando-se sem descanso. E Tiago teve mesmo que ser operado de urgência, sendo que os médicos prepararam a família para a realidade nua e crua do problema, dizendo que não podiam garantir nada. Em todo o caso, a cirurgia correu bastante bem e agora era aguardar a reacção do paciente, a resposta do seu corpo a tudo o que a medicina aparentemente tinha podido fazer. Uns rezavam, outros iam à igreja, outros choravam e lamentavam… tudo o que é natural nestes casos. É normal as pessoas reagirem assim. Vieram as duas ex-mulheres da América, os dois filhos adolescentes e todos se condoíam pelo estado do pai, do amigo, do irmão, do filho, sobrinho, etc…

 

Passou uma semana em que o estado de saúde de Tiago andava ora para a frente, ora para trás, para finalmente sucumbir. Para grande pesar e tristeza de todos sem excepção, Tiago partira para não mais voltar. Casos destes acontecem todos os dias, a todas as horas, mas nós não sabemos, graças a deus. Até ao dia em que nos toca pela porta.

 

Estávamos no funeral, um funeral com gente que nunca mais acabava, porque é uma família muito, muito grande. Uns choravam, outros aceitavam. As duas mães dos filhos acompanharam o corpo até entrar no gavetão e ambas choravam, choravam, mas o desassossego da segunda era bem maior que o da primeira. A segunda era Nina, a mãe de Mia, que tinha ficado com a família materna em Miami por ser muito pequenina. Nina estava sozinha e chorava que dava dó. Chamava por ele, beijava o caixão, etc, etc, etc… e é nesta altura que começo a ouvir vozes que se salientam, comentando que Nina tinha muita culpa. Nina tinha “expulsado” Tiago e arruinado a vida dele. Como é que podia agora mostrar-se tão chorosa, tão infeliz, se tinha corrido com ele da maneira mais cruel possível!? Ela tinha dito que não queria mais nada com ele e não o queria na América porque, sem ela, não havia justificação para ele continuar lá. E porquê? Porque ficaria sozinho, sem família. Ela não o queria mais.

 

E os comentários continuavam, chamando a atenção para o facto de ela ter sido um “diabo” na vida dele.

 

Aparentemente era assim. Ela despachara-o, efectivamente, sem dó nem piedade. Tinha sido muito dura. Todos estavam cientes disso porque ela mesma, a própria, não mandara recado, tinha feito questão de deixar isso bem esclarecido. Não era segredo para ninguém.

 

Eu estava assistindo a tudo isto e não tinha razões para a defender ou para a atacar. Mas, de repente, pensei para comigo mesmo “e se ela não o tivesse mandado embora, se apenas se tivesse desligado dele e não se importasse com o facto de ele ficar sozinho ou não? Como é que teria sido? Não teria sido muito pior?”

 

Segundo os médicos, o tumor de Tiago era muito grande, teria no mínimo uns cinco anos. Foi o tempo de eles se conhecerem, se apaixonarem e terem uma filha. E o tumor lá. Só na hora da bomba rebentar é que ele foi “escorraçado”. A minha questão é: Nina foi um “anjo” bom ou um anjo mau? Ressalve-se que “anjo” é apenas um modo de falar. Então Nina foi do bem ou do mal? Pelas aparências, tudo leva crer que foi do mal. Mas, insisto, se ela não o tem mandado embora, ele tinha ficado lá sozinho com aquele problema e quem sabe, teria morrido sozinho, sem a família por perto, o que teria sido muito, mas muito pior para todos. 


Quando ela o manda embora não sabe, claro, não está consciente disso, mas está apenas cumprindo a sua missão, porque o está devolvendo ao seio familiar, para com eles viver os seus últimos dias de vida. Nem ela nem ninguém sabe disso, mas o cosmos sabe o que faz e nós somos apenas induzidos superiormente para cumprir as nossas missões, que é para isso que aqui estamos. Apunhalar Nina seria, à primeira vista, a coisa justa a fazer. Mas aí estaríamos apenas a considerar uma das faces da moeda. Se a virarmos, a história é outra e então compreenderemos muito melhor o destino dos homens, o destino da humanidade. 


As coisas não são o que parecem. O plano divino é verdadeiramente fabuloso. Mas acima de tudo é um grande mistério. E é essa a razão porque não podemos nem devemos julgar, pois o risco de errar é quase certo. A verdade é que a atitude aparentemente desumana de Nina poupou à família um desgosto ainda maior. Nina sem saber, fez a coisa certa, devolvendo-o à família. É assim. A moeda tem sempre duas faces.

 


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