A pasta de Despacho estava na minha frente, enquanto eu estava sentada à
secretária. Ao lado tinha uma quantidade de documentos de despesa já assinados,
prontos para entregar. Para isso tinha que retirar de cada um deles a última
cópia, a amarela, para meu arquivo. Todos os dias ou quase todos os dias,
passavam por mim documentos daqueles, cujo número variava, podendo atingir umas
dezenas, nunca se sabia, e que reflectiam os gastos do pessoal da Direcção com
as mais diversas coisas, como refeições ou material técnico ou outro e eu dava
uma vista de olhos em todos eles.
Em princípio estaria tudo certo, mas por uma questão de ética, ao tirar a
folha amarela, verificava o conteúdo, que também não era assim tanto que o não
pudesse fazer. E naquele dia, enquanto ia separando e juntando as ditas cópias
amarelas para o meu arquivo, de repente, há uma que chama a minha atenção.
Fiquei parada a olhar. Olhei a importância, vi a que se referia e a quem se
destinava. Estava tudo certo. Assinado pelo respectivo responsável, um dos
subdirectores que fazia parte do meu leque de secretariado. Porém, a minha
atenção tinha ficado retida exactamente na assinatura dele e perguntava a mim
mesma porquê e antes de a juntar às outras, decidi deixá-la de lado,
continuando sem saber bem porquê. Despachei tudo, inclusive outros documentos,
mas aquela cópia continuou de parte. Parecia que não era igual às outras. Claro
que era. Estava tudo certo! Porque razão tinha despertado em mim alguma
incerteza, isso eu não conseguia explicar para mim mesma.
Depois de tudo despachado, encaminhado e arrumado, voltei a pegar na folha
para a contemplar com um pouco mais de atenção, agora só eu e ela. A outra
papelada toda já tinha seguido o seu caminho, só faltava mesmo aquela. Era só
fazer o mesmo, arquivá-la e pronto. Mas ela parecia que não queria ir para o
sítio. Parecia que me queria dizer alguma coisa, coisa essa que eu continuava
sem saber o que seria.
Examinando a folha uma vez mais, percebi que o que estava a chamar a minha
atenção era a assinatura. Contudo, era a assinatura do responsável. Era do
pelouro dele e estava tudo certo. Mas eu olhava e voltava a olhar para a
assinatura. Caramba, porque é que naquele dia eu havia de estar a embirrar com
um pormenor que nunca tinha reparado? A assinatura estava correcta, bem feita,
sem nada a opor. Era a assinatura dele, sem dúvida, não tinha que enganar.
Estava bastante bem feita, com o pormenor da voltinha da última letra, o “a” a
vir da direita para a esquerda, sublinhando todo o nome, como ele sempre fazia.
Estava tudo bem. Estava até bem de mais e percebi então que era essa a
questão.
A minha intuição deu sinal. Era a assinatura dele, muito bem feitinha, mas
não tinha o seu cunho pessoal, era isso mesmo. Parecia que tinha sido copiada
por cima. Mas isso era um perfeito disparate! Porque faria ele isso? A minha
intuição novamente deu alarme. Ele não, mas alguém o poderia ter feito!? Que
disparate(!)… não estava a ver ninguém com motivos para fazer tal coisa e a
importância nem era nada de especial, de qualquer modo ninguém faria uma coisa
dessas. Eu conhecia todos os colegas, homens e mulheres, éramos uma família,
ninguém faria uma coisa dessas. Por qualquer motivo, no momento em que assinou
aquele documento, vacilou um pouco e saiu assim com um jeito(?)… ah, aquilo não
era nada, eram maluquices da minha cabeça. E veio-me à ideia uma lembrança
muito, muito antiga.
Quando eu andava no liceu, no que seria agora um sexto ano escolar, era
muito má aluna, e não era só má, era complicada. Os professores costumavam
dizer que não me entendiam. É que eu era muito boa a Português e Matemática,
mas nas outras disciplinas era um zero à esquerda, porque não estudava.
Português não precisava de estudar e matemática era um passatempo, como um
jogo, cujas regras eu decifrava e não tinha segredos.
Estudar História, Geografia e todas as outras coisas eu queria lá saber.
Estudar porquê? A vida tinha desmoronado todo o meu mundo e eu alimentava uma
espécie de raiva e revolta por tudo o que tinha acabado de passar. A minha mãe
tinha falecido recentemente e o meu pai estava na guerra, sempre ausente.
Ninguém se importava comigo, porque é que eu havia de querer estudar? E por
causa disso, uma vez falsifiquei a assinatura da minha avó. Devo dizer que o
fiz com uma perfeição e tanto e só foi descoberto porque uma segunda vez ela
foi chamada e quando lhe mostraram ela de facto negou, porque na verdade sabia
que não tinha assinado nada. Eu tinha assinado por ela, sabia o que estava a
fazer e não me arrependia de o ter feito. O resto não vem ao caso. Mas aí eu
era uma pré-adolescente cheia de problemas comigo mesma, com a vida, uma
revoltada por tudo o que a vida me tinha levado, etc… e era obrigada a
sobreviver de qualquer maneira.
E agora estava diante de um documento com o qual não me sentia segura.
Aquela assinatura não parava de mexer comigo, querendo-me dizer alguma coisa
sem que eu conseguisse uma uma explicação razoável. O que fazer? E a folha
ficou de lado mais algum tempo, porque eu não estava certa em relação ao seu
destino. E quando se mete uma coisa na minha cabeça não há quem a tire.
Comecei a trabalhar no arquivo e por momentos esqueci-me daquele assunto.
Gente que entrou, gente que saiu, as televisões a trabalhar, os telefones a
funcionar, a normal rotina. Olho através da porta envidraçada e o sub estava
sozinho, debruçado sobre papéis. Para lhe ir falar sobre aquilo eu nem sabia
bem o que dizer, nem por onde começar. Fazer a pergunta directamente de caras,
se tinha sido ele a assinar, era muito complicado, pois ia parecer que estava a
apontar o dedo a alguém. Claro que tinha sido ele. Mas a minha inquietação
continuava sem me dar descanso. Fui à minha secretária, peguei na folha e
entrei. Ele continuava a fazer o que estava a fazer, sem olhar para mim. Então,
com a folha na mão, calma e tranquilamente, disse-lhe que achava aquela
assinatura dele esquisita, só isso. Quando ele ouviu as minhas palavras
imediatamente levantou a cabeça dos papéis que estava a ver e um tanto
bruscamente retirou a folha da minha mão, dizendo que era para ele, dando-me a
entender que não queria falar naquilo e que o assunto estava arrumado.
Isto era muito estranho e fiquei sem perceber nada. Esperava tudo menos
aquilo. A questão é que se eu não lhe tivesse levado aquela folha ele nem sabia
da existência dela, apesar de que a tinha assinado (ou não?). Quando comecei a
falar com ele, ele nem olhou para mim nem para o que eu tinha na mão. Só quando
falei na assinatura é que ele deu sinal e sem sequer analisar as coisas,
imediatamente a reclamou para si, sem mais demandas, sem mais comentários ou
explicações, deixando-me intencionalmente de fora do que quer que fosse. Sem
dúvida que era estranho! Mas agora eu sabia que a minha decisão estava certa.
Ainda nem sabia exactamente porque o tinha feito. Parecia que alguma força
superior me estava a comandar. Mas alguma coisa estava no ar.
Saí para ir beber água fresca à máquina que ficava junto à máquina do café
e também para arejar as ideias. Estavam duas colegas a tomar café. Fiquei um
pouco com elas até que uma se foi embora e fiquei só com a outra, que era da
secretaria de apoio à Direcção, de onde vinham todos os documentos de despesa
com pessoal. Sem mais nem menos comecei a falar com ela sobre o sucedido,
dizendo-lhe que tinha ido mostrar ao subdirector um documento cuja assinatura
me parecia estranha e ele me arrancou a folha das mãos, guardando-a a sete
chaves. Era esta a sensação com que eu tinha ficado. Ela parou de beber o café,
olhou para mim com ar de caso e por instantes manteve-se em silêncio. O
mistério continuava e intrigava-me cada vez mais. O que seria? E agora eu
queria uma explicação, caso contrário iria parecer que eu estava a bater mal da
cabeça. Mas não foi preciso insistir muito para que ela finalmente começasse a
falar. Aquele documento era a peça de um puzzle que acabava de fechar e
infelizmente a assinatura tinha sido falsificada.