quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Anita - 107

 

Anita era uma miúda filha de uns amigos nossos, que tinha apenas mais um ano que o meu filho, mas uma criança difícil, que só queria fazer o que lhe apetecia e o que não devia. Está bem, era criança, mas é de pequenino que se torce o pepino, como diz o povo. Isto, só para dizer, que os pais não estavam nem aí para a educação da sua menina querida, que adoravam, mas não faziam nada de proveitoso por ela. Não se incomodavam e nem se davam ao trabalho de contrariar a menina, quando se fazia necessário, o que era praticamente sempre.

Anita estava sempre em contradição com tudo e com todos. Já o irmãozinho, com menos dois anos do que ela, por qualquer coisa, levava boas palmadas dos pais. Anita fazia coisas verdadeiramente inconcebíveis. Nos Açores era frequente reunirmo-nos para passar alguns serões entre amigos, conversando e gracejando por tudo e por nada, enquanto as crianças se entretinham brincando umas com as outras. Anita tinha prazer em estar sempre a interferir na brincadeira dos outros, procurando dar nas vistas de maneira muito inconveniente, e sempre a perturbar tanto os pequenos como os adultos.

Com apenas três anos, roubava os cigarros que o pai estava a fumar, num intervalo em que os punha no cinzeiro, e descaradamente, exibia-se, desfilando em frente de todos, atirando o fumo para o ar, rindo feliz da vida, porque estava a fazer o que os adultos faziam. E os pais na boa! A mãe sorria, deliciada, e o pai ficava mais do que envaidecido, achando que a filha era muito inteligente e muito engraçada. Era o fim da picada. Eu ficava completamente consternada. E não adiantava tentar fazê-la parar, porque o próprio pai incentivava e ficava orgulhoso com a ousadia da sua menina, rindo gostosamente, o que me deixava completamente consternada. Não conseguia compreender aquilo e dentro de mim abria uma brecha de revolta, porque achava que aquilo era tudo menos serem pais. Pais que amam os seus filhos não fazem coisas desta natureza. Muito pelo contrário.

Isto era nos Açores. Todos tinham crianças ainda pequenas, porque eram todos da nossa geração e mais ou menos, todos casámos na mesma altura. Mas já aí eu percebia, apesar de as crianças serem ainda muito pequenas, compreendia perfeitamente e sem sombra de dúvidas, que o meu filho não tinha nada a ver com os outros. As suas capacidades eram muito acima. Havia um abismo entre ele e os outros, porque se destacava em tudo, de uma forma muito concreta. Era o que ele sabia e os outros não. O que entendia e os outros não. Era da educação, da formação e da orientação. Sim, talvez, mas, acima de tudo, era dele. Porque ninguém consegue fazer dos outros o que eles não são.

Com Anita, eu chegava a ter pena dela, porque percebia que aquela criança não tinha sequer chance. O que poderia ser diferente nela, se os próprios pais não eram?! Esse era, sem dúvida, o maior problema. Como seria pela vida fora? Era dramático. Ah, pois, mas coisas e as pessoas mudam! Ou não. A mudança pode sempre ser para melhor ou ainda para pior.

Um dia em que eu andana em buscas no google, de repente, sem mais nem menos, aparece-me o nome dela, médica endocrinologista, numa clínica em Ponta Delgada, S. Miguel, Açores. O nome era o dela, portanto, era ela. Não havia dúvidas. A mesma idade, tudo igual. Não posso dizer que não fiquei bastante surpreendida, porque fiquei mesmo. Caramba! Afinal eu tinha-me enganado. E não é que ser médica fosse algo de extraordinário, mas para a pessoa que eu conhecia ou que eu tinha conhecido, era mais que muito. Como era possível aquela miúda ter chegado ali?! Fiquei deveras surpreendida e até com muita dificuldade em acreditar nas informações que ali estavam e que qualquer um podia testemunhar.

Era bom, evidentemente. Mas era tão estranho! Na minha cabeça e, tendo-a conhecido como a conheci, era quase um milagre. Porque a criança que eu conheci, jamais chegaria àquele ponto. Era preciso ter tido uma grande determinação, em qualquer altura da sua vida, para mudar completamente o rumo das coisas. E por parte dos pais, também não conseguia ver a possibilidade de lhe terem proporcionado esse caminho. É certo que tudo pode ser mudado, quando e como quisermos. Mas esse é que era o problema. Ali, de acordo com tudo a que sempre assisti e sabia, nada poderia ter mudado, porque era o que era e não havia como, nem jeito.

O facto é que ali estava o nome dela, médica endocrinologista, numa clínica em Ponta Delgada. Nem sequer podia haver engano, porque o sobrenome e apelido eram pouco ou nada comuns e num lugar tão pequeno, era impossível haver outra pessoa com o nome dela. Seria uma coincidência muito grande, nada provável. Se fosse um nome comum, até podia ser outra. Mas o dela não. Não havia do que duvidar.

Eu estava perplexa, com imensa dificuldade em acreditar no que lia. Como era possível uma tamanha mudança? Era uma viragem inconcebível. E aí eu tinha que admitir que afinal me tinha enganado e que, por trás daquela Anita, havia outra, que eu nunca tinha conseguido ver. De certa forma, sentia-me completamente derrotada pela maneira como sempre tinha enxergado as coisas. Tinha-me enganado redondamente e feito muito mau juízo da criança. Levei dias a tentar digerir aquilo, acusando-me a mim mesma por me achar uma pessoa má, por ter feito um péssimo julgamento de uma criança, que afinal, apesar do que era, tinha conseguido encontrar o seu caminho e trazido ao de cima o seu melhor. Talvez esse melhor sempre lá tivesse estado e só eu não tenha tido a capacidade de ver e de compreender.

Era uma estranha sensação. Por um lado, eu continuava a ter toda a dificuldade do mundo em aceitar. Por outro, queria muito não ter feito um julgamento tão errado e adoraria conseguir congratular-me com aquela outra Anita. Mas estava completamente dividida nos meus sentimentos e nas minhas emoções. A questão já não era ela - Anita. A questão agora era eu. Quem era eu, afinal? Um ser mesquinho e malévolo, que tinha feito um juízo tão mau daquela criança que, lá atrás, eu achava que tão bem tinha conhecido. Até na adolescência, eu sabia de fonte segura, que à noite, frequentava a discoteca, utilizando o cartão de crédito da avó, que já tinha muita idade, esbanjando dinheiro com amiguinhos. Isto era de loucos, completamente.

Mas o importante é que Anita tinha conseguido. Muito provavelmente, sentia-se realizada e muito bem preenchida e a sua vida era muito válida. Isso estava acima de tudo e era mais importante do que tudo o resto. Tudo o resto era passado e tinha ficado lá atrás, esquecido e enterrado para sempre. Que bom para ela e bom para o mundo.

O tempo passou e um dia, tive que falar com o meu ex-marido, por qualquer coisa que já nem me lembro. Por acaso ele até estava nos Açores, onde, depois de se reformar, passa a maior parte do tempo. E de repente, lembrei-me de lhe perguntar. Disse-lhe que tinha encontrado no google uma Anita, médica endocrinologista, e que fiquei bastante admirada com o facto.  Contudo, e sem se fazer esperar, ele logo respondeu sem qualquer hesitação: “não, não é a mesma. É outra”. Outra, disse-lhe, mas é o mesmo nome!? E ele respondeu: “Sim, mas não é ela, é outra”.

Ah!... Afinal, por mais estranho que parecesse, com o mesmo nome, a mesma idade, no mesmo lugar… afinal havia outra.

A minha dedução infelizmente estava completamente certa. A Anita que conheci, essa, nunca na vida. Impossível.