terça-feira, 29 de dezembro de 2009

A minha amiga Ana - 13


A Ana era minha amiga. Uma grande amiga e uma mulher incrível. Tinha recomeçado a vida rigorosamente do zero pela terceira vez. Não é para qualquer pessoa. Uma vontade de ferro e uma capacidade de sobrevivência a toda a prova levavam-na a ultrapassar as dificuldades de uma maneira prodigiosa. Para além da nossa amizade eu tinha uma admiração enorme por essa criatura espantosa, que resistia a tudo heroicamente. Ela já não está entre nós, mas a memória dos momentos que passámos juntas e dos bocados em que tanto nos divertimos, continuam comigo. Não há como esquecer. 

Conhecemo-nos através dos nossos filhos, que estudaram juntos e eram muito amigos. Ela era Indiana e esse foi o nosso ponto de partida. Uma pessoa divertida, bem disposta, que adorava presentear e mimar os outros com o seu melhor. 

Possuidora de uma fisionomia fina, mas robusta e firme e por tudo o que já tinha passado na vida eu achava que ela tinha uma saúde de ferro. Porém, um dia, ficou doente. Foi uma coisa súbita. Telefonou-me do Hospital a dar a notícia de que tinha sido internada de urgência na noite anterior e que no dia seguinte ia ser submetida a uma intervenção cirúrgica. Fui completamente apanhada de surpresa. Ela estava apreensiva mas relativamente calma. A minha missão era tranquilizá-la, dar-lhe força e prestar-lhe toda a solidariedade. 

Foi operada, recuperou bastante bem e regressou a casa, onde ficou ainda algum tempo em recuperação. Continuou a recuperar-se espantosamente bem e logo voltou à sua vida de Professora. Parecia que estava tudo sanado e o mau bocado tinha passado. A Ana estava bem, tinha perdido muito peso, que aliás tinha em excesso, e agora estava na medida certa. 

O tempo foi passando, mas chegou um dia em que tudo voltou atrás. Vieram as dores que não lhe davam tréguas. Exames e mais exames e não havia resultados bons. O sofrimento dela aumentava de dia para dia e a medicação idem. Veio a químio e tudo cada vez pior. Eu não pude dar-lhe a atenção que ela merecia, é verdade. Tudo isto coincidiu com o internamento do meu falecido pai e não tive como me desdobrar. Telefonava, mas nem sempre ela atendia, porque passava a maior parte do tempo sedada, a fim de sobreviver às dores que eram muito fortes. Consegui ir vê-la duas vezes, depois, um pouco cobardemente, desisti. Todos os dias arranjava desculpas para não ir vê-la, embora a minha preocupação fosse constante. Fugia dos telefonemas que ela já nem atendia, dado o estado de debilidade em que se encontrava e a imagem de destruição que aparentava era verdadeiramente constrangedora. Eu sabia que devia ir lá mas, gradualmente, também as minhas forças iam abaixo. Ela estava a morrer e eu estava arrasada. Sentia-me mal, muito mal. Era como se a tivesse abandonado nos piores momentos da vida dela. Era certo que eu não podia fazer nada, mas devia ter estado mais ao lado dela e tinha a certeza de que essa minha falha tinha deixado mágoa nela, o que muito me apoquentava. 

O tempo foi passando e eu sentia que estava a esgotar-se a minha oportunidade de resgatar esse sentimento de culpa que tanto peso tinha em mim, além de que eu devia isso a ela. Esse nosso último encontro estava por um fio, tal qual a sua vida. 

Nos poucos dias que se seguiram fui interiorizando a ideia de que precisava de ir lá, custasse o que custasse. Cada dia eu assimilava e digeria mais um pouco essa necessidade, até que chegou um Sábado e eu percebi que não podia adiar mais. A intuição dizia-me que se não fosse naquele dia nunca mais a veria. 

Ao fim da tarde telefonei. O filho mais novo que vivia com ela atendeu. Perguntei como é que a mãe estava e ele respondeu que agora mais tranquila. Fiquei a pensar o que é que ele quereria dizer com "agora estava mais tranquila". Explicou que estava praticamente o tempo todo a descansar e que já não estavam a receber visitas. Deu um nó na minha garganta. Eu queria vê-la, disse-lhe eu, envergonhada. Ah, sim, claro, respondeu ele, pode vir quando quiser. Aquela resposta era um sinal de que realmente só faltava eu. Ela estava à minha espera. 

Isto, descrito assim, parece banal. Mas são coisas da alma, coisas que só a alma entende sem poder explicar, porque as palavras não conseguem descrever. E a linguagem da alma é tão sublime como soberana. Agora eu sabia que algo especial estava no meu caminho. 

Quando a vi, fiquei muito mal, por ela e por mim. Mas isso eu já sabia que ia acontecer, só que era muito pior do que eu imaginara. Eu achava que já tinha perdido a minha amiga há muito tempo, mas não era verdade. Naquele momento pude perceber que o que restava dela estava tão inteiro como antes, não naquele corpo, que já não era nada, mas no espírito, cuja presença era imponente. E senti que só faltava a minha presença. Pode parecer pretensão minha uma coisa destas, mas é a linguagem da alma. O espírito dela pairava naquele quarto, do qual ela tanto gostava. Afaguei-lhe as mãos inertes, sem vida, completamente geladas e despedi-me de coração aberto. Queria ficar ali até partir definitivamente, mas ao mesmo tempo achei que não tinha esse direito, já que antes não tinha estado ao seu lado. 

Saí e fui para casa. Sentia uma dor funda que não tinha como resolver. O facto é que tinha estado em falta, indesculpavelmente em falta e continuava a estar, sem saber exactamente o que fazer para apaziguar a minha dor. 

Pouco depois, chegou uma amiga minha que a todo o custo queria ir ao Centro Comercial. Disse-lhe que nem pensasse numa coisa dessas que eu não estava em condições. Ela percebeu que eu estava realmente transtornada, mas achou que me ia fazer bem. Eu não queria de jeito nenhum, mas ela tanto fez e tanto disse, que acabou por me arrancar da prostração em que estava e lá fomos. 

Não via nada nem ninguém. Estava péssima. Fui com ela a uma loja, mas era confusão de mais para a minha cabeça. Tinha saído de casa da Ana por volta das 19,30. Naquele momento, rondavam as 21,00 e pouco. Eu só queria ir-me embora. Apetecia-me correr para casa da Ana e ficar ali perto dela, implorando-lhe que me perdoasse, porque eu me sentia muito mal. Eu achava que ela tinha prolongado aquele horrível sofrimento só para não partir sem estar comigo uma última vez. No seu íntimo ela tinha consciência de que já se despedira de todos e para se despedir do mundo de vez, faltava eu. Quanto remorso eu sentia e a que tremenda humilhação eu estava a ser submetida! E sentia que ela estava a ir-se de vez e me chamava para perto dela e eu não estava lá. 

Foi horrível! A minha cabeça parecia que explodia de tanta tensão. Por fim, disse à minha amiga que não aguentava mais e queria ir para casa descansar. Ela compreendeu e regressámos a casa. Assim que saí daquele inferno do centro comercial, comecei a sentir-me melhor. Quando cheguei a casa deitei-me e ela ficou ali um pouco comigo a tentar distrair-me, experimentando as coisas que tinha comprado e pedindo-me opiniões, como costumava fazer. Aos poucos fui baixando, aterrando e voltando à minha serenidade, até que ela se foi embora. 

Preparei-me para me deitar e quando ia baixar os estores, reparei que havia muita luz em casa da Ana. O filho mais velho também lá estava e os dois estavam ao telemóvel, em varandas diferentes. Achei estranho. Senti uma agitação no ar... mas era hora de dormir e apesar de estar mais calma, estava exausta. Poucos instantes antes de apagar as luzes o telemóvel tocou. Olhei para o relógio que marcava meia-noite. Não fiquei assustada, mas o meu sensor deu alerta e acho mesmo que não precisava ter atendido o telefone, mas atendi, claro. Era o filho mais novo comunicando-me que a mãe partira. Perguntei a que horas tinha sido, respondeu que por volta das 21,30, a hora em que eu estava no Centro Comercial e percebi que ela estava a ir de vez, quando me senti muito, muito mal. Não estava enganada. 

Agora tinha realmente a certeza de que ela sempre tinha estado à minha espera e eu não tinha estado lá. Senti que, de certa forma, tinha concorrido para prolongar o sofrimento dela. Por outro lado, tinha que pensar que fora uma escolha dela, a parte que nos cabe no livre arbítrio. Aquela mulher tinha sido corajosa a vida inteira, até mesmo na hora de morrer. Não partiu sem se despedir da amiga, fiel até ao fim. Atolada numa verdadeira amálgama de sentimentos, por um lado sentia um certo alívio pela partida dela, que pusera fim ao seu sofrimento e ainda porque a amizade dela tinha sido um grande presente para mim. Mas isso não me consolava o suficiente. Não estava certa desse merecimento. Sabia que não tinha cumprido por inteiro a minha missão para com ela. Ela, porém, revelara a sua fiel amizade comigo, até à eternidade, para minha grande humilhação. Era um prémio e ao mesmo tempo uma punição. 

Na história das nossas vidas, das pessoas e coisas que tiveram especial importância, nem sempre somos os heróis. Também não foi propriamente uma derrota, mas foi uma verdadeira lição de vida ou no caso, de morte, que não esquecerei nunca e a memória da minha amiga para sempre será preservada com o maior carinho e muito amor.