O
Cunha era um grande amigo. Meu colega de trabalho, embora em áreas diferentes. Muitas
vezes almoçávamos juntos em grupo, no refeitório da empresa ou em qualquer
restaurante fora, quando nos apetecia arejar.
O
Cunha era uma pessoa do bem, isto é, uma pessoa bem formada. Um excelente
profissional, enfim, uma pessoa como deve ser, pelo que tinha muitos amigos e
todos gostavam dele. E talvez porque tinha mais dezassete anos do que eu, tinha
a mania de tomar conta de mim. Na verdade, estava sempre preocupado com o que
eu comia, quando almoçávamos juntos, porque sempre fui magra e ele achava que
era uma questão de alimentação. Não era nada, era eu que era assim mesmo, como
ainda hoje o sou.
Mas
ele estava sempre a mandar-me comer, a vigiar se eu comia tudo e sempre a
tentar acrescentar mais alguma coisa à minha refeição, dizendo sempre o mesmo,
que o que eu precisava era de comer e beber. Sim, porque, se eu lhe conhecia
algum defeito era, talvez, a bebida. Gostava muito de beber. Não que alguma vez
o tivesse visto bêbado nem nada que se parecesse mas, realmente, sempre achei
que bebia um pouco demais. Era às refeições, no fim das refeições, com o café e
fora das refeições também. Sempre havia alguma coisa que se adequava à hora, ao
momento e isso era álcool, nada mais. Sempre achei que era demasiado, mas ele
era maior e vacinado e não tinha idade para mandarem nele, muito menos eu. Ele
é que sabia da vida dele.
Posso
ainda dizer que era um indivíduo sempre muito bem disposto, quase
permanentemente com um sorriso nos lábios, bem parecido, boa figura, um tipo de
homem que em geral agrada a qualquer mulher. Simpático, educado, polido, nada
inconveniente, pelo contrário, enfim, uma pessoa afável, bem disposta e de bem
com a vida. Nada a apontar. E na verdade éramos muito amigos, embora ele fosse
amigo de toda a gente.
Um
dia, por conta da idade, reformou-se e foi-se embora. E uma ou outra vez foi lá
de visita, como fazia toda a gente que se ia embora. É difícil, quando se passa
toda uma vida ali, o trabalho é a nossa segunda casa. No meu caso foram trinta
e oito anos, o que é uma vida e tanto. Não é fácil sair e de um dia para o
outro cortar com tudo. Por isso, uma vez ou outra, aparecia por lá para matar
saudades. Depois, como também é normal, as visitas começam a ser cada vez mais
espaçadas, até que um dia se corta de vez o cordão umbilical. É assim com toda
a gente ou pelo menos com a maioria. Mas, porque há sempre um amigo que ainda
vai à empresa e se vêm lá fora, vai-se sabendo da vida de cada um.
Entretanto,
com o passar dos anos, chegou também a minha vez de me vir embora e o processo
não escapou à generalidade. Durante dois anos, de vez em quando eu ia matar
saudades. Depois, as minhas idas começaram a rarear, até que também me
desliguei completamente das idas à RTP. Mas as notícias acabam por nos chegar.
O mundo é pequeno e sempre aparece alguém que sabe deste e daquele. Assim, um
dia, alguém me disse que o Cunha estava doente. Doente? Cancro nos
intestinos.
Por esta altura ele estaria muito próximo dos oitenta anos, de qualquer modo
lamentei. E volta e meia pensava nele. O tempo foi passando, até que um dia,
alguém me telefonou comunicando o seu falecimento. Oh, fiquei muito triste, mas
a vida é isso mesmo: nascer e morrer. Contudo, com a morte dele muitas
lembranças encheram o meu pensamento. Comecei a recordar muitas coisas que
tínhamos vivido, muitas situações engraçadas, muitos momentos bem passados.
Eram boas as lembranças mas não deixavam de me transmitir uma certa nostalgia e
um certo pesar por tudo o que já ia algures no tempo distante.
Não
me preocupando em demasia, achando que aquilo era normal, deixei as lembranças
à solta, fluindo livremente. E durante uns dois dias dei comigo a pensar sempre
no mesmo. Percebi que lamentava o facto de não me ter despedido dele. Era isso.
Eu gostaria mesmo de o ter visto recentemente, antes de partir. Mas a vida não
permitiu que tal acontecesse. Apenas isso. Contudo, eu lamentava, e à medida
que tomava consciência disso, uma tristeza aflorava. Eu achava que não era
motivo para isso, mas o facto é que sentia tristeza por não me ter despedido
dele. Parecia que alguma ponta da vida tinha ficado solta e não tinha sido
rematada - era essa a sensação -, o facto é que não havia nada a fazer e
remediado está o que não tem remédio, portanto, tinha que me conformar com a
situação.
E
então, passou um dia e uma noite e mais um dia e outra noite e eu sempre
pensando naquilo. Na terceira noite o inusitado aconteceu. Foi uma coisa
espectacular. Sempre que a vida toca os planos superiores é uma coisa
sensacional. Foi o que aconteceu.
Na
terceira noite, mal acordei de manhã, veio-me à lembrança o sonho lindo que
tinha tido. Lindo, porque aquilo era a resposta ao meu desconforto, à minha
sensação de algo que não se tinha completado, que tinha ficado em suspenso e
precisava de ser consolidado para então, sim, finalizar.
No
meu sonho, o Cunha aparecia vindo de cima, impregnado no éter e, embora vestido
normalmente, estava completamente envolto em luz. Apresentava-se muito bem
disposto, como se estivesse cheio de vida e saúde, como sempre aparentara e
também como sempre, sorrindo. E eu olhava para ele, impressionada com com
aquela visão tão cheia de luz. Era uma visão linda! Mas acima de tudo ele
estava ali, mais do que completo, mais do que confirmado.
Agora eu já não tinha nada a lamentar. Naquele momento estávamos os dois no
mesmo plano, ou seja, não havia um que estava morto nem outro que estava vivo.
Coexistíamos na mesma dimensão. Não sei qual, mas aquela que permite estarmos
visíveis e comunicáveis. E isto é uma coisa extraordinária!
É
claro que já me tinha acontecido outras vezes, com outras pessoas, mas de cada
vez que isto acontece é sempre como se fosse uma primeira vez. A alma vibra a
uma frequência sem limites e o espírito acede a um plano verdadeiramente
transcendente. Naquele momento mágico, a única coisa importante é que eu estava
na presença do meu amigo, apesar de ele ter partido. Também não sei qual é a
capacidade que nos permite este tipo de comunicação; não sei qual é o neurónio
que funciona para isto, nem o tipo ou qualidade de ADN que contem este mistério
e que proporciona este fenómeno. Não sei. Eu realmente não sei, nem sei se
alguém sabe. O que eu sei é que a comunicação a este nível me fascina e me
deslumbra de uma maneira verdadeiramente incrível e apaixonante. E mais uma vez
eu estava dentro dela, olhando o Cunha ali materializado aos olhos da minha
alma. E mergulhada no sono do silêncio da noite, de forma telepática,
ia recebendo a mensagem que ele me passava: “vim para me veres...
para te dizer que estou aqui e estou bem... vim para te dizer adeus”…
Acordada
e com os olhos bem abertos revia, extasiada, aquele sonho fantástico, lindo e
maravilhoso, que trazia de volta a minha paz. E feliz, pensava para comigo
mesmo: ele veio em resposta ao meu chamamento. Ele veio!
Agora tudo estava bem.