quarta-feira, 28 de março de 2018

O Cunha - 70



O Cunha era um grande amigo. Meu colega de trabalho, embora em áreas diferentes. Muitas vezes almoçávamos juntos em grupo, no refeitório da empresa ou em qualquer restaurante fora, quando nos apetecia arejar.

 

O Cunha era uma pessoa do bem, isto é, uma pessoa bem formada. Um excelente profissional, enfim, uma pessoa como deve ser, pelo que tinha muitos amigos e todos gostavam dele. E talvez porque tinha mais dezassete anos do que eu, tinha a mania de tomar conta de mim. Na verdade, estava sempre preocupado com o que eu comia, quando almoçávamos juntos, porque sempre fui magra e ele achava que era uma questão de alimentação. Não era nada, era eu que era assim mesmo, como ainda hoje o sou.

 

Mas ele estava sempre a mandar-me comer, a vigiar se eu comia tudo e sempre a tentar acrescentar mais alguma coisa à minha refeição, dizendo sempre o mesmo, que o que eu precisava era de comer e beber. Sim, porque, se eu lhe conhecia algum defeito era, talvez, a bebida. Gostava muito de beber. Não que alguma vez o tivesse visto bêbado nem nada que se parecesse mas, realmente, sempre achei que bebia um pouco demais. Era às refeições, no fim das refeições, com o café e fora das refeições também. Sempre havia alguma coisa que se adequava à hora, ao momento e isso era álcool, nada mais. Sempre achei que era demasiado, mas ele era maior e vacinado e não tinha idade para mandarem nele, muito menos eu. Ele é que sabia da vida dele.

 

Posso ainda dizer que era um indivíduo sempre muito bem disposto, quase permanentemente com um sorriso nos lábios, bem parecido, boa figura, um tipo de homem que em geral agrada a qualquer mulher. Simpático, educado, polido, nada inconveniente, pelo contrário, enfim, uma pessoa afável, bem disposta e de bem com a vida. Nada a apontar. E na verdade éramos muito amigos, embora ele fosse amigo de toda a gente.

 

Um dia, por conta da idade, reformou-se e foi-se embora. E uma ou outra vez foi lá de visita, como fazia toda a gente que se ia embora. É difícil, quando se passa toda uma vida ali, o trabalho é a nossa segunda casa. No meu caso foram trinta e oito anos, o que é uma vida e tanto. Não é fácil sair e de um dia para o outro cortar com tudo. Por isso, uma vez ou outra, aparecia por lá para matar saudades. Depois, como também é normal, as visitas começam a ser cada vez mais espaçadas, até que um dia se corta de vez o cordão umbilical. É assim com toda a gente ou pelo menos com a maioria. Mas, porque há sempre um amigo que ainda vai à empresa e se vêm lá fora, vai-se sabendo da vida de cada um.

 

Entretanto, com o passar dos anos, chegou também a minha vez de me vir embora e o processo não escapou à generalidade. Durante dois anos, de vez em quando eu ia matar saudades. Depois, as minhas idas começaram a rarear, até que também me desliguei completamente das idas à RTP. Mas as notícias acabam por nos chegar. O mundo é pequeno e sempre aparece alguém que sabe deste e daquele. Assim, um dia, alguém me disse que o Cunha estava doente. Doente? Cancro nos intestinos. 


Por esta altura ele estaria muito próximo dos oitenta anos, de qualquer modo lamentei. E volta e meia pensava nele. O tempo foi passando, até que um dia, alguém me telefonou comunicando o seu falecimento. Oh, fiquei muito triste, mas a vida é isso mesmo: nascer e morrer. Contudo, com a morte dele muitas lembranças encheram o meu pensamento. Comecei a recordar muitas coisas que tínhamos vivido, muitas situações engraçadas, muitos momentos bem passados. Eram boas as lembranças mas não deixavam de me transmitir uma certa nostalgia e um certo pesar por tudo o que já ia algures no tempo distante. 

Não me preocupando em demasia, achando que aquilo era normal, deixei as lembranças à solta, fluindo livremente. E durante uns dois dias dei comigo a pensar sempre no mesmo. Percebi que lamentava o facto de não me ter despedido dele. Era isso. Eu gostaria mesmo de o ter visto recentemente, antes de partir. Mas a vida não permitiu que tal acontecesse. Apenas isso. Contudo, eu lamentava, e à medida que tomava consciência disso, uma tristeza aflorava. Eu achava que não era motivo para isso, mas o facto é que sentia tristeza por não me ter despedido dele. Parecia que alguma ponta da vida tinha ficado solta e não tinha sido rematada - era essa a sensação -, o facto é que não havia nada a fazer e remediado está o que não tem remédio, portanto, tinha que me conformar com a situação.

 

E então, passou um dia e uma noite e mais um dia e outra noite e eu sempre pensando naquilo. Na terceira noite o inusitado aconteceu. Foi uma coisa espectacular. Sempre que a vida toca os planos superiores é uma coisa sensacional. Foi o que aconteceu.

 

Na terceira noite, mal acordei de manhã, veio-me à lembrança o sonho lindo que tinha tido. Lindo, porque aquilo era a resposta ao meu desconforto, à minha sensação de algo que não se tinha completado, que tinha ficado em suspenso e precisava de ser consolidado para então, sim, finalizar.

 

No meu sonho, o Cunha aparecia vindo de cima, impregnado no éter e, embora vestido normalmente, estava completamente envolto em luz. Apresentava-se muito bem disposto, como se estivesse cheio de vida e saúde, como sempre aparentara e também como sempre, sorrindo. E eu olhava para ele, impressionada com com aquela visão tão cheia de luz. Era uma visão linda! Mas acima de tudo ele estava ali, mais do que completo, mais do que confirmado. 


Agora eu já não tinha nada a lamentar. Naquele momento estávamos os dois no mesmo plano, ou seja, não havia um que estava morto nem outro que estava vivo. Coexistíamos na mesma dimensão. Não sei qual, mas aquela que permite estarmos visíveis e comunicáveis. E isto é uma coisa extraordinária!

 

É claro que já me tinha acontecido outras vezes, com outras pessoas, mas de cada vez que isto acontece é sempre como se fosse uma primeira vez. A alma vibra a uma frequência sem limites e o espírito acede a um plano verdadeiramente transcendente. Naquele momento mágico, a única coisa importante é que eu estava na presença do meu amigo, apesar de ele ter partido. Também não sei qual é a capacidade que nos permite este tipo de comunicação; não sei qual é o neurónio que funciona para isto, nem o tipo ou qualidade de ADN que contem este mistério e que proporciona este fenómeno. Não sei. Eu realmente não sei, nem sei se alguém sabe. O que eu sei é que a comunicação a este nível me fascina e me deslumbra de uma maneira verdadeiramente incrível e apaixonante. E mais uma vez eu estava dentro dela, olhando o Cunha ali materializado aos olhos da minha alma. E mergulhada no sono do silêncio da noite, de forma telepática, ia recebendo a mensagem que ele me passava: “vim para me veres... para te dizer que estou aqui e estou bem... vim para te dizer adeus”…

 

Acordada e com os olhos bem abertos revia, extasiada, aquele sonho fantástico, lindo e maravilhoso, que trazia de volta a minha paz. E feliz, pensava para comigo mesmo: ele veio em resposta ao meu chamamento. Ele veio!

 

Agora tudo estava bem.




terça-feira, 27 de março de 2018

A máquina fotográfica - 69



Era uma vez uma máquina fotográfica… que era para ser um presente de alguém muito especial. Alguém com quem vivi sete meses, com quem planeei ficar junto o resto da minha vida, etc…, etc..., etc… e que, ao fim de sete meses, em vésperas de fazermos a viagem que tínhamos idealizado para a nossa de lua de mel, que marcaria também o nosso casamento, adoeceu repentinamente e, em menos de uma semana, partiu para não mais voltar.

 

Seis anos depois deste triste e infeliz acontecimento, consigo falar perfeitamente sobre o assunto, porém, na altura e durante bastante tempo, foi difícil. Foi uma tragédia e tanto na minha vida. Mais uma a somar a outras.

 

Eu sempre gostei de fotografar e tinha uma máquina pequena que cabia em qualquer mala de senhora. O Álvaro dizia que eu levava jeito para a coisa e gostava que eu fizesse um curso para aprender e melhorar. Ao mesmo tempo, como era engenheiro na Sony, mandou vir uma máquina profissional ou quase, para me oferecer. Máquina essa que eu não cheguei a ver porque estava guardada no gabinete dele, na Sony, e que seria para me dar na hora certa. Nem questionei nada, posto que na cabeça dele estava tudo sempre muito bem pensado, planeado e nada falhava. Cabia-me apenas esperar que ele decidisse a tal “hora certa”.

 

Todavia, eu sabia qual era a máquina e quais as características dela, porque ele tinha dado as dicas. Não era segredo. Ele apenas queria esperar uma altura qualquer especial. E aparentemente nada disto deu certo, uma vez que ele partiu repentinamente e, portanto, aparentemente - repito - tudo foi para o espaço. Tudo. Não restou nada, a não ser as lembranças daquilo que foi muito bom. E com as voltas que o destino nos trocou, nunca mais pensei na máquina. Tinha tantas outras coisas com que ocupar o meu pensamento! Com a partida inesperada dele fiquei meses à deriva, pairando, sem conseguir reagir, à espera que aquela dor me desse tréguas. E o tempo foi passando. É verdade, o tempo foi passando e levando aquela dor, ao mesmo tempo que, conforme podia, ia apanhando todos os cacos do que tinha restado de mim e um por um, fui colando no lugar certo, até me refazer completamente.

 

Um dia, pegando na minha velha máquina, veio-me à memória a tal especial que ele tinha mandado vir para mim. Até isso eu tinha perdido, muito embora esse fosse o menor de todos os males. Mas ele queria tanto que eu tivesse uma máquina boa e esse prazer não lhe tinha sido concedido. Mas eu haveria de ter uma máquina decente, quanto mais não fosse, em sua memória. Haveria de comprar uma e pensar que tinha sido presente dele na mesma, porque a intenção é que contava. Pois bem, era isso que eu faria.

 

Nesse sentido, liguei para um dos colegas dele que eu conhecia bem e falei da minha intenção de adquirir uma máquina boa para melhorar a qualidade do meu registo fotográfico. É claro que nada falei sobre a outra que ele tinha mandado vir, porque iria parecer que eu a estava a pedir e isso não fazia muito sentido. Perguntou exactamente em que é que eu estava a pensar e respondi, com toda a franqueza, que não fazia ideia. Ele disse que falaria com outro colega que estava mais dentro do assunto e decidiriam o que fosse melhor para mim. Pedi-lhe que tivesse em conta o preço, só porque não queria uma coisa excessivamente cara e assim ficou combinado que resolveriam o assunto por mim. Finalmente eu ia ter uma máquina a sério, conforme o Álvaro queria. Não sabia quanto tempo poderia demorar, mas ela viria, era só esperar e também tinha a certeza de que o que viesse era bom, sem ter de me preocupar se tinha feito a escolha certa. Também era certo que não seria a mesma, mas a intenção é que contava.

 

O tempo passou. Passa sempre. Felizmente, para o bom e para o mau. Não pára. E então, um belo dia, o Luís telefonou-me para saber se eu podia ir ter com ele à RTP, porque tinha que lá ir com o colega a quem tinha pedido ajuda para a máquina e já a tinham. Ah, fiquei toda contente! E assim marcámos encontro no gabinete do meu antigo chefe, porque, embora eu já estivesse reformada, mantinha ligação com ele. Por lá estive toda a tarde, até que eles apareceram com um saco da Sony.

 

O Luís era um amigo muito especial. Foi ele que me apresentou o Álvaro e foi ele que esteve por dentro e a par de tudo, aquando do problema de saúde que o levou sem volta. 

 

Eles chegaram sorridentes, cumprimentámo-nos todos, fizemos perguntas uns aos outros sobre como ia a saúde, a vida em geral e finalmente deram-me um saco grande dizendo que era a máquina. Fiquei muito feliz e comecei a abrir a embalagem para ver a máquina. Era uma máquina a sério, que metia respeito. Para quem tinha uma que cabia em qualquer lado, não estava nada mal. Eu sabia que eles resolveriam o assunto. Mas ao olhar mais atentamente, de repente, pensei que aquilo deveria custar um balúrdio e talvez fosse mais do que eu podia pagar. Havíamos de ver, porque talvez pudesse pagar em duas vezes, por exemplo. Não me preocupei muito porque confiava neles e sabia que eles confiavam em mim.

 

O Luís pediu ao colega e amigo para me dar umas dicas e assim ele começou a dar umas explicações sobre o funcionamento: para que serve isto e para que serve aquilo e por aí fora. Eu estava radiante. Finalmente tinha uma câmara fotográfica a sério. O Álvaro ficaria feliz. E eu já me via de máquina em punho, inventando fotos por todo o lado. Agora tinha que justificar semelhante aquisição, mas como eu gostava muito de fotografar não seria nada difícil.

 

E já tinha quase um curso ali, de tanta troca de impressões com o colega do Luís. Ele também tinha uma igual e estava muito satisfeito com ela. Se ele estava satisfeito era certo que eu também estaria e aos poucos havia de me familiarizar para tirar o máximo de rendimento.

 

Estava feito, mas ainda não sabia quanto aquela brincadeira me ia custar. Finalmente e um pouco apreensiva, perguntei quanto era a minha dívida, porque estava um pouco ansiosa para saber. E aí os dois responderam que não era nada. Nada? Como podia ser? É oferta da Sony para ti, responderam eles. Mas… oferta porquê? Eu só tinha pedido a eles porque não ia saber comprar uma máquina boa, adequada à minha pessoa. Mas eles, sorrindo, disseram que era uma oferta merecida. Merecida? Então porquê, perguntei novamente. Ah, porque tu mereces, responderam eles. Bem, fiquei um pouco sem jeito, pensando, eu até aceitava que eles me fizessem um desconto qualquer, mas daí a oferecerem-me a máquina, realmente, com essa não contava. E como perceberam o meu constrangimento, reforçaram que eu merecia, que não estavam a fazer nada de mais, enfim, muito simpático da parte deles. Para finalizar tudo sobre a máquina o amigo do Luís referiu ainda que eu só teria que comprar um cartão de memória e uma tampa, porque a máquina não tinha. Respondi que sim, sem qualquer problema. Agradeci e voltei a agradecer,até um pouco comovida com a atitude deles e tudo ficou por aí mesmo.

 

À noite, quando ia para me deitar, comecei a pensar no assunto e então a ficha caiu, isto é, fez-se luz. A máquina correspondia à descrição da que o Álvaro tinha mandado vir para mim. Talvez ele até tivesse pedido ao colega uma opinião mais avalizada, tal qual eu fiz. A máquina estava lá guardada no gabinete dele. Quando ele faleceu, certamente fizeram uma limpeza e encontraram a máquina. O amigo do Luís, uma vez que a máquina era igual, ficou com o cartão, que dá sempre jeito e provavelmente com a tampa que é uma coisa também susceptível de se perder com facilidade. No entanto, a máquina ficou lá guardada porque não tinha registo para ser vendida ao público. Quando eu pedi uma, eles devem-se ter lembrado daquela e a máquina era a que o Álvaro tinha mandado vir para mim. Provavelmente eles não sabiam, mas eu sabia que, apesar de vir das mãos deles, o presente do Álvaro acabava finalmente de chegar às minhas mãos. 

 

E hoje eu posso dizer, sem dúvida alguma, que foi mais um presente dele, de entre tantos, mesmo depois de ter partido e por mais que doa, na “hora certa”(!) …