Era
uma vez uma máquina fotográfica… que era para ser um presente de alguém muito
especial. Alguém com quem vivi sete meses, com quem planeei ficar junto o resto
da minha vida, etc…, etc..., etc… e que, ao fim de sete meses, em vésperas de
fazermos a viagem que tínhamos idealizado para a nossa de lua de mel, que
marcaria também o nosso casamento, adoeceu repentinamente e, em menos de uma
semana, partiu para não mais voltar.
Seis anos depois deste triste e infeliz acontecimento, consigo
falar perfeitamente sobre o assunto, porém, na altura e durante bastante tempo,
foi difícil. Foi uma tragédia e tanto na minha vida. Mais uma a somar a outras.
Eu sempre gostei de fotografar e tinha uma máquina pequena que
cabia em qualquer mala de senhora. O Álvaro dizia que eu levava jeito para a
coisa e gostava que eu fizesse um curso para aprender e melhorar. Ao mesmo
tempo, como era engenheiro na Sony, mandou vir uma máquina profissional ou
quase, para me oferecer. Máquina essa que eu não cheguei a ver porque estava
guardada no gabinete dele, na Sony, e que seria para me dar na hora certa. Nem
questionei nada, posto que na cabeça dele estava tudo sempre muito bem pensado,
planeado e nada falhava. Cabia-me apenas esperar que ele decidisse a tal “hora
certa”.
Todavia, eu sabia qual era a máquina e quais as características
dela, porque ele tinha dado as dicas. Não era segredo. Ele apenas queria
esperar uma altura qualquer especial. E aparentemente nada disto deu certo, uma
vez que ele partiu repentinamente e, portanto, aparentemente - repito - tudo
foi para o espaço. Tudo. Não restou nada, a não ser as lembranças daquilo que
foi muito bom. E com as voltas que o destino nos trocou, nunca mais pensei na
máquina. Tinha tantas outras coisas com que ocupar o meu pensamento! Com a
partida inesperada dele fiquei meses à deriva, pairando, sem conseguir reagir,
à espera que aquela dor me desse tréguas. E o tempo foi passando. É
verdade, o tempo foi passando e levando aquela dor, ao mesmo tempo que,
conforme podia, ia apanhando todos os cacos do que tinha restado de mim e um
por um, fui colando no lugar certo, até me refazer completamente.
Um dia, pegando na minha velha máquina, veio-me à memória a tal
especial que ele tinha mandado vir para mim. Até isso eu tinha perdido, muito
embora esse fosse o menor de todos os males. Mas ele queria tanto que eu
tivesse uma máquina boa e esse prazer não lhe tinha sido concedido. Mas eu
haveria de ter uma máquina decente, quanto mais não fosse, em sua memória.
Haveria de comprar uma e pensar que tinha sido presente dele na mesma, porque a
intenção é que contava. Pois bem, era isso que eu faria.
Nesse sentido, liguei para um dos colegas dele que eu conhecia bem
e falei da minha intenção de adquirir uma máquina boa para melhorar a qualidade
do meu registo fotográfico. É claro que nada falei sobre a outra que ele tinha
mandado vir, porque iria parecer que eu a estava a pedir e isso não fazia muito
sentido. Perguntou exactamente em que é que eu estava a pensar e respondi, com
toda a franqueza, que não fazia ideia. Ele disse que falaria com outro colega
que estava mais dentro do assunto e decidiriam o que fosse melhor para mim.
Pedi-lhe que tivesse em conta o preço, só porque não queria uma coisa
excessivamente cara e assim ficou combinado que resolveriam o assunto por mim.
Finalmente eu ia ter uma máquina a sério, conforme o Álvaro queria. Não sabia
quanto tempo poderia demorar, mas ela viria, era só esperar e também tinha a
certeza de que o que viesse era bom, sem ter de me preocupar se tinha feito a
escolha certa. Também era certo que não seria a mesma, mas a intenção é que
contava.
O tempo passou. Passa sempre. Felizmente, para o bom e para o mau.
Não pára. E então, um belo dia, o Luís telefonou-me para saber se eu podia ir
ter com ele à RTP, porque tinha que lá ir com o colega a quem tinha pedido
ajuda para a máquina e já a tinham. Ah, fiquei toda contente! E assim marcámos
encontro no gabinete do meu antigo chefe, porque, embora eu já estivesse
reformada, mantinha ligação com ele. Por lá estive toda a tarde, até que eles
apareceram com um saco da Sony.
O Luís era um amigo muito especial. Foi ele que me apresentou o
Álvaro e foi ele que esteve por dentro e a par de tudo, aquando do problema de
saúde que o levou sem volta.
Eles chegaram sorridentes, cumprimentámo-nos todos, fizemos
perguntas uns aos outros sobre como ia a saúde, a vida em geral e finalmente
deram-me um saco grande dizendo que era a máquina. Fiquei muito feliz e comecei
a abrir a embalagem para ver a máquina. Era uma máquina a sério, que metia
respeito. Para quem tinha uma que cabia em qualquer lado, não estava nada mal.
Eu sabia que eles resolveriam o assunto. Mas ao olhar mais atentamente, de
repente, pensei que aquilo deveria custar um balúrdio e talvez fosse mais do
que eu podia pagar. Havíamos de ver, porque talvez pudesse pagar em duas vezes,
por exemplo. Não me preocupei muito porque confiava neles e sabia que eles
confiavam em mim.
O Luís pediu ao colega e amigo para me dar umas dicas e assim ele
começou a dar umas explicações sobre o funcionamento: para que serve isto e
para que serve aquilo e por aí fora. Eu estava radiante. Finalmente tinha uma
câmara fotográfica a sério. O Álvaro ficaria feliz. E eu já me via de máquina
em punho, inventando fotos por todo o lado. Agora tinha que justificar
semelhante aquisição, mas como eu gostava muito de fotografar não seria nada
difícil.
E já tinha quase um curso ali, de tanta troca de impressões com o
colega do Luís. Ele também tinha uma igual e estava muito satisfeito com ela.
Se ele estava satisfeito era certo que eu também estaria e aos poucos havia de
me familiarizar para tirar o máximo de rendimento.
Estava feito, mas ainda não sabia quanto aquela brincadeira me ia
custar. Finalmente e um pouco apreensiva, perguntei quanto era a minha dívida,
porque estava um pouco ansiosa para saber. E aí os dois responderam que não era
nada. Nada? Como podia ser? É oferta da Sony para ti, responderam eles. Mas…
oferta porquê? Eu só tinha pedido a eles porque não ia saber comprar uma
máquina boa, adequada à minha pessoa. Mas eles, sorrindo, disseram que era uma
oferta merecida. Merecida? Então porquê, perguntei novamente. Ah, porque tu
mereces, responderam eles. Bem, fiquei um pouco sem jeito, pensando, eu até
aceitava que eles me fizessem um desconto qualquer, mas daí a oferecerem-me a
máquina, realmente, com essa não contava. E como perceberam o meu
constrangimento, reforçaram que eu merecia, que não estavam a fazer nada de
mais, enfim, muito simpático da parte deles. Para finalizar tudo sobre a
máquina o amigo do Luís referiu ainda que eu só teria que comprar um cartão de
memória e uma tampa, porque a máquina não tinha. Respondi que sim, sem qualquer
problema. Agradeci e voltei a agradecer,até um pouco comovida com a atitude
deles e tudo ficou por aí mesmo.
À noite, quando ia para me deitar, comecei a pensar no assunto e
então a ficha caiu, isto é, fez-se luz. A máquina correspondia à descrição da
que o Álvaro tinha mandado vir para mim. Talvez ele até tivesse pedido ao colega
uma opinião mais avalizada, tal qual eu fiz. A máquina estava lá guardada no
gabinete dele. Quando ele faleceu, certamente fizeram uma limpeza e encontraram
a máquina. O amigo do Luís, uma vez que a máquina era igual, ficou com o
cartão, que dá sempre jeito e provavelmente com a tampa que é uma coisa também
susceptível de se perder com facilidade. No entanto, a máquina ficou lá
guardada porque não tinha registo para ser vendida ao público. Quando eu pedi
uma, eles devem-se ter lembrado daquela e a máquina era a que o Álvaro tinha
mandado vir para mim. Provavelmente eles não sabiam, mas eu sabia que, apesar
de vir das mãos deles, o presente do Álvaro acabava finalmente de chegar às
minhas mãos.
E hoje eu posso dizer, sem dúvida alguma, que foi mais um presente
dele, de entre tantos, mesmo depois de ter partido e por mais que doa, na “hora
certa”(!) …
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