terça-feira, 27 de março de 2018

A máquina fotográfica - 69



Era uma vez uma máquina fotográfica… que era para ser um presente de alguém muito especial. Alguém com quem vivi sete meses, com quem planeei ficar junto o resto da minha vida, etc…, etc..., etc… e que, ao fim de sete meses, em vésperas de fazermos a viagem que tínhamos idealizado para a nossa de lua de mel, que marcaria também o nosso casamento, adoeceu repentinamente e, em menos de uma semana, partiu para não mais voltar.

 

Seis anos depois deste triste e infeliz acontecimento, consigo falar perfeitamente sobre o assunto, porém, na altura e durante bastante tempo, foi difícil. Foi uma tragédia e tanto na minha vida. Mais uma a somar a outras.

 

Eu sempre gostei de fotografar e tinha uma máquina pequena que cabia em qualquer mala de senhora. O Álvaro dizia que eu levava jeito para a coisa e gostava que eu fizesse um curso para aprender e melhorar. Ao mesmo tempo, como era engenheiro na Sony, mandou vir uma máquina profissional ou quase, para me oferecer. Máquina essa que eu não cheguei a ver porque estava guardada no gabinete dele, na Sony, e que seria para me dar na hora certa. Nem questionei nada, posto que na cabeça dele estava tudo sempre muito bem pensado, planeado e nada falhava. Cabia-me apenas esperar que ele decidisse a tal “hora certa”.

 

Todavia, eu sabia qual era a máquina e quais as características dela, porque ele tinha dado as dicas. Não era segredo. Ele apenas queria esperar uma altura qualquer especial. E aparentemente nada disto deu certo, uma vez que ele partiu repentinamente e, portanto, aparentemente - repito - tudo foi para o espaço. Tudo. Não restou nada, a não ser as lembranças daquilo que foi muito bom. E com as voltas que o destino nos trocou, nunca mais pensei na máquina. Tinha tantas outras coisas com que ocupar o meu pensamento! Com a partida inesperada dele fiquei meses à deriva, pairando, sem conseguir reagir, à espera que aquela dor me desse tréguas. E o tempo foi passando. É verdade, o tempo foi passando e levando aquela dor, ao mesmo tempo que, conforme podia, ia apanhando todos os cacos do que tinha restado de mim e um por um, fui colando no lugar certo, até me refazer completamente.

 

Um dia, pegando na minha velha máquina, veio-me à memória a tal especial que ele tinha mandado vir para mim. Até isso eu tinha perdido, muito embora esse fosse o menor de todos os males. Mas ele queria tanto que eu tivesse uma máquina boa e esse prazer não lhe tinha sido concedido. Mas eu haveria de ter uma máquina decente, quanto mais não fosse, em sua memória. Haveria de comprar uma e pensar que tinha sido presente dele na mesma, porque a intenção é que contava. Pois bem, era isso que eu faria.

 

Nesse sentido, liguei para um dos colegas dele que eu conhecia bem e falei da minha intenção de adquirir uma máquina boa para melhorar a qualidade do meu registo fotográfico. É claro que nada falei sobre a outra que ele tinha mandado vir, porque iria parecer que eu a estava a pedir e isso não fazia muito sentido. Perguntou exactamente em que é que eu estava a pensar e respondi, com toda a franqueza, que não fazia ideia. Ele disse que falaria com outro colega que estava mais dentro do assunto e decidiriam o que fosse melhor para mim. Pedi-lhe que tivesse em conta o preço, só porque não queria uma coisa excessivamente cara e assim ficou combinado que resolveriam o assunto por mim. Finalmente eu ia ter uma máquina a sério, conforme o Álvaro queria. Não sabia quanto tempo poderia demorar, mas ela viria, era só esperar e também tinha a certeza de que o que viesse era bom, sem ter de me preocupar se tinha feito a escolha certa. Também era certo que não seria a mesma, mas a intenção é que contava.

 

O tempo passou. Passa sempre. Felizmente, para o bom e para o mau. Não pára. E então, um belo dia, o Luís telefonou-me para saber se eu podia ir ter com ele à RTP, porque tinha que lá ir com o colega a quem tinha pedido ajuda para a máquina e já a tinham. Ah, fiquei toda contente! E assim marcámos encontro no gabinete do meu antigo chefe, porque, embora eu já estivesse reformada, mantinha ligação com ele. Por lá estive toda a tarde, até que eles apareceram com um saco da Sony.

 

O Luís era um amigo muito especial. Foi ele que me apresentou o Álvaro e foi ele que esteve por dentro e a par de tudo, aquando do problema de saúde que o levou sem volta. 

 

Eles chegaram sorridentes, cumprimentámo-nos todos, fizemos perguntas uns aos outros sobre como ia a saúde, a vida em geral e finalmente deram-me um saco grande dizendo que era a máquina. Fiquei muito feliz e comecei a abrir a embalagem para ver a máquina. Era uma máquina a sério, que metia respeito. Para quem tinha uma que cabia em qualquer lado, não estava nada mal. Eu sabia que eles resolveriam o assunto. Mas ao olhar mais atentamente, de repente, pensei que aquilo deveria custar um balúrdio e talvez fosse mais do que eu podia pagar. Havíamos de ver, porque talvez pudesse pagar em duas vezes, por exemplo. Não me preocupei muito porque confiava neles e sabia que eles confiavam em mim.

 

O Luís pediu ao colega e amigo para me dar umas dicas e assim ele começou a dar umas explicações sobre o funcionamento: para que serve isto e para que serve aquilo e por aí fora. Eu estava radiante. Finalmente tinha uma câmara fotográfica a sério. O Álvaro ficaria feliz. E eu já me via de máquina em punho, inventando fotos por todo o lado. Agora tinha que justificar semelhante aquisição, mas como eu gostava muito de fotografar não seria nada difícil.

 

E já tinha quase um curso ali, de tanta troca de impressões com o colega do Luís. Ele também tinha uma igual e estava muito satisfeito com ela. Se ele estava satisfeito era certo que eu também estaria e aos poucos havia de me familiarizar para tirar o máximo de rendimento.

 

Estava feito, mas ainda não sabia quanto aquela brincadeira me ia custar. Finalmente e um pouco apreensiva, perguntei quanto era a minha dívida, porque estava um pouco ansiosa para saber. E aí os dois responderam que não era nada. Nada? Como podia ser? É oferta da Sony para ti, responderam eles. Mas… oferta porquê? Eu só tinha pedido a eles porque não ia saber comprar uma máquina boa, adequada à minha pessoa. Mas eles, sorrindo, disseram que era uma oferta merecida. Merecida? Então porquê, perguntei novamente. Ah, porque tu mereces, responderam eles. Bem, fiquei um pouco sem jeito, pensando, eu até aceitava que eles me fizessem um desconto qualquer, mas daí a oferecerem-me a máquina, realmente, com essa não contava. E como perceberam o meu constrangimento, reforçaram que eu merecia, que não estavam a fazer nada de mais, enfim, muito simpático da parte deles. Para finalizar tudo sobre a máquina o amigo do Luís referiu ainda que eu só teria que comprar um cartão de memória e uma tampa, porque a máquina não tinha. Respondi que sim, sem qualquer problema. Agradeci e voltei a agradecer,até um pouco comovida com a atitude deles e tudo ficou por aí mesmo.

 

À noite, quando ia para me deitar, comecei a pensar no assunto e então a ficha caiu, isto é, fez-se luz. A máquina correspondia à descrição da que o Álvaro tinha mandado vir para mim. Talvez ele até tivesse pedido ao colega uma opinião mais avalizada, tal qual eu fiz. A máquina estava lá guardada no gabinete dele. Quando ele faleceu, certamente fizeram uma limpeza e encontraram a máquina. O amigo do Luís, uma vez que a máquina era igual, ficou com o cartão, que dá sempre jeito e provavelmente com a tampa que é uma coisa também susceptível de se perder com facilidade. No entanto, a máquina ficou lá guardada porque não tinha registo para ser vendida ao público. Quando eu pedi uma, eles devem-se ter lembrado daquela e a máquina era a que o Álvaro tinha mandado vir para mim. Provavelmente eles não sabiam, mas eu sabia que, apesar de vir das mãos deles, o presente do Álvaro acabava finalmente de chegar às minhas mãos. 

 

E hoje eu posso dizer, sem dúvida alguma, que foi mais um presente dele, de entre tantos, mesmo depois de ter partido e por mais que doa, na “hora certa”(!) …

 

 

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