Anita era uma
miúda filha de uns amigos nossos, que tinha apenas mais um ano que o meu filho,
mas uma criança difícil, que só queria fazer o que lhe apetecia e o que não
devia. Está bem, era criança, mas é de pequenino que se torce o pepino, como
diz o povo. Isto, só para dizer, que os pais não estavam nem aí para a educação
da sua menina querida, que adoravam, mas não faziam nada de proveitoso por ela.
Não se incomodavam e nem se davam ao trabalho de contrariar a menina, quando se
fazia necessário, o que era praticamente sempre.
Anita estava
sempre em contradição com tudo e com todos. Já o irmãozinho, com menos dois
anos do que ela, por qualquer coisa, levava boas palmadas dos pais. Anita fazia
coisas verdadeiramente inconcebíveis. Nos Açores era frequente reunirmo-nos
para passar alguns serões entre amigos, conversando e gracejando por tudo e por
nada, enquanto as crianças se entretinham brincando umas com as outras. Anita
tinha prazer em estar sempre a interferir na brincadeira dos outros, procurando
dar nas vistas de maneira muito inconveniente, e sempre a perturbar tanto os
pequenos como os adultos.
Com apenas três
anos, roubava os cigarros que o pai estava a fumar, num intervalo em que os
punha no cinzeiro, e descaradamente, exibia-se, desfilando em frente de todos,
atirando o fumo para o ar, rindo feliz da vida, porque estava a fazer o que os
adultos faziam. E os pais na boa! A mãe sorria, deliciada, e o pai ficava mais
do que envaidecido, achando que a filha era muito inteligente e muito
engraçada. Era o fim da picada. Eu ficava completamente consternada. E não
adiantava tentar fazê-la parar, porque o próprio pai incentivava e ficava orgulhoso
com a ousadia da sua menina, rindo gostosamente, o que me deixava completamente
consternada. Não conseguia compreender aquilo e dentro de mim abria uma brecha
de revolta, porque achava que aquilo era tudo menos serem pais. Pais que amam
os seus filhos não fazem coisas desta natureza. Muito pelo contrário.
Isto era nos
Açores. Todos tinham crianças ainda pequenas, porque eram todos da nossa
geração e mais ou menos, todos casámos na mesma altura. Mas já aí eu percebia,
apesar de as crianças serem ainda muito pequenas, compreendia perfeitamente e
sem sombra de dúvidas, que o meu filho não tinha nada a ver com os outros. As
suas capacidades eram muito acima. Havia um abismo entre ele e os outros, porque
se destacava em tudo, de uma forma muito concreta. Era o que ele sabia e os
outros não. O que entendia e os outros não. Era da educação, da formação e da
orientação. Sim, talvez, mas, acima de tudo, era dele. Porque ninguém consegue
fazer dos outros o que eles não são.
Com Anita, eu
chegava a ter pena dela, porque percebia que aquela criança não tinha sequer
chance. O que poderia ser diferente nela, se os próprios pais não eram?! Esse
era, sem dúvida, o maior problema. Como seria pela vida fora? Era dramático.
Ah, pois, mas coisas e as pessoas mudam! Ou não. A mudança pode sempre ser para
melhor ou ainda para pior.
Um dia em que eu
andana em buscas no google, de repente, sem mais nem menos, aparece-me o nome
dela, médica endocrinologista, numa clínica em Ponta Delgada, S. Miguel,
Açores. O nome era o dela, portanto, era ela. Não havia dúvidas. A mesma idade,
tudo igual. Não posso dizer que não fiquei bastante surpreendida, porque fiquei
mesmo. Caramba! Afinal eu tinha-me enganado. E não é que ser médica fosse algo
de extraordinário, mas para a pessoa que eu conhecia ou que eu tinha conhecido,
era mais que muito. Como era possível aquela miúda ter chegado ali?! Fiquei
deveras surpreendida e até com muita dificuldade em acreditar nas informações
que ali estavam e que qualquer um podia testemunhar.
Era bom,
evidentemente. Mas era tão estranho! Na minha cabeça e, tendo-a conhecido como
a conheci, era quase um milagre. Porque a criança que eu conheci, jamais
chegaria àquele ponto. Era preciso ter tido uma grande determinação, em
qualquer altura da sua vida, para mudar completamente o rumo das coisas. E por
parte dos pais, também não conseguia ver a possibilidade de lhe terem
proporcionado esse caminho. É certo que tudo pode ser mudado, quando e como
quisermos. Mas esse é que era o problema. Ali, de acordo com tudo a que sempre
assisti e sabia, nada poderia ter mudado, porque era o que era e não havia
como, nem jeito.
O facto é que
ali estava o nome dela, médica endocrinologista, numa clínica em Ponta Delgada.
Nem sequer podia haver engano, porque o sobrenome e apelido eram pouco ou nada
comuns e num lugar tão pequeno, era impossível haver outra pessoa com o nome
dela. Seria uma coincidência muito grande, nada provável. Se fosse um nome
comum, até podia ser outra. Mas o dela não. Não havia do que duvidar.
Eu estava
perplexa, com imensa dificuldade em acreditar no que lia. Como era possível uma
tamanha mudança? Era uma viragem inconcebível. E aí eu tinha que admitir que
afinal me tinha enganado e que, por trás daquela Anita, havia outra, que eu
nunca tinha conseguido ver. De certa forma, sentia-me completamente derrotada
pela maneira como sempre tinha enxergado as coisas. Tinha-me enganado
redondamente e feito muito mau juízo da criança. Levei dias a tentar digerir
aquilo, acusando-me a mim mesma por me achar uma pessoa má, por ter feito um
péssimo julgamento de uma criança, que afinal, apesar do que era, tinha
conseguido encontrar o seu caminho e trazido ao de cima o seu melhor. Talvez
esse melhor sempre lá tivesse estado e só eu não tenha tido a capacidade de ver
e de compreender.
Era uma estranha
sensação. Por um lado, eu continuava a ter toda a dificuldade do mundo em
aceitar. Por outro, queria muito não ter feito um julgamento tão errado e
adoraria conseguir congratular-me com aquela outra Anita. Mas estava
completamente dividida nos meus sentimentos e nas minhas emoções. A questão já
não era ela - Anita. A questão agora era eu. Quem era eu, afinal? Um ser
mesquinho e malévolo, que tinha feito um juízo tão mau daquela criança que, lá
atrás, eu achava que tão bem tinha conhecido. Até na adolescência, eu sabia de
fonte segura, que à noite, frequentava a discoteca, utilizando o cartão de
crédito da avó, que já tinha muita idade, esbanjando dinheiro com amiguinhos.
Isto era de loucos, completamente.
Mas o importante
é que Anita tinha conseguido. Muito provavelmente, sentia-se realizada e muito
bem preenchida e a sua vida era muito válida. Isso estava acima de tudo e era
mais importante do que tudo o resto. Tudo o resto era passado e tinha ficado lá
atrás, esquecido e enterrado para sempre. Que bom para ela e bom para o mundo.
O tempo passou e
um dia, tive que falar com o meu ex-marido, por qualquer coisa que já nem me
lembro. Por acaso ele até estava nos Açores, onde, depois de se reformar, passa
a maior parte do tempo. E de repente, lembrei-me de lhe perguntar. Disse-lhe
que tinha encontrado no google uma Anita, médica endocrinologista, e que fiquei
bastante admirada com o facto. Contudo,
e sem se fazer esperar, ele logo respondeu sem qualquer hesitação: “não, não é
a mesma. É outra”. Outra, disse-lhe, mas é o mesmo nome!? E ele respondeu:
“Sim, mas não é ela, é outra”.
Ah!... Afinal,
por mais estranho que parecesse, com o mesmo nome, a mesma idade, no mesmo
lugar… afinal havia outra.
A minha dedução
infelizmente estava completamente certa. A Anita que conheci, essa, nunca na
vida. Impossível.