quinta-feira, 20 de outubro de 2022

Anita - 107

 

Anita era uma miúda filha de uns amigos nossos, que tinha apenas mais um ano que o meu filho, mas uma criança difícil, que só queria fazer o que lhe apetecia e o que não devia. Está bem, era criança, mas é de pequenino que se torce o pepino, como diz o povo. Isto, só para dizer, que os pais não estavam nem aí para a educação da sua menina querida, que adoravam, mas não faziam nada de proveitoso por ela. Não se incomodavam e nem se davam ao trabalho de contrariar a menina, quando se fazia necessário, o que era praticamente sempre.

Anita estava sempre em contradição com tudo e com todos. Já o irmãozinho, com menos dois anos do que ela, por qualquer coisa, levava boas palmadas dos pais. Anita fazia coisas verdadeiramente inconcebíveis. Nos Açores era frequente reunirmo-nos para passar alguns serões entre amigos, conversando e gracejando por tudo e por nada, enquanto as crianças se entretinham brincando umas com as outras. Anita tinha prazer em estar sempre a interferir na brincadeira dos outros, procurando dar nas vistas de maneira muito inconveniente, e sempre a perturbar tanto os pequenos como os adultos.

Com apenas três anos, roubava os cigarros que o pai estava a fumar, num intervalo em que os punha no cinzeiro, e descaradamente, exibia-se, desfilando em frente de todos, atirando o fumo para o ar, rindo feliz da vida, porque estava a fazer o que os adultos faziam. E os pais na boa! A mãe sorria, deliciada, e o pai ficava mais do que envaidecido, achando que a filha era muito inteligente e muito engraçada. Era o fim da picada. Eu ficava completamente consternada. E não adiantava tentar fazê-la parar, porque o próprio pai incentivava e ficava orgulhoso com a ousadia da sua menina, rindo gostosamente, o que me deixava completamente consternada. Não conseguia compreender aquilo e dentro de mim abria uma brecha de revolta, porque achava que aquilo era tudo menos serem pais. Pais que amam os seus filhos não fazem coisas desta natureza. Muito pelo contrário.

Isto era nos Açores. Todos tinham crianças ainda pequenas, porque eram todos da nossa geração e mais ou menos, todos casámos na mesma altura. Mas já aí eu percebia, apesar de as crianças serem ainda muito pequenas, compreendia perfeitamente e sem sombra de dúvidas, que o meu filho não tinha nada a ver com os outros. As suas capacidades eram muito acima. Havia um abismo entre ele e os outros, porque se destacava em tudo, de uma forma muito concreta. Era o que ele sabia e os outros não. O que entendia e os outros não. Era da educação, da formação e da orientação. Sim, talvez, mas, acima de tudo, era dele. Porque ninguém consegue fazer dos outros o que eles não são.

Com Anita, eu chegava a ter pena dela, porque percebia que aquela criança não tinha sequer chance. O que poderia ser diferente nela, se os próprios pais não eram?! Esse era, sem dúvida, o maior problema. Como seria pela vida fora? Era dramático. Ah, pois, mas coisas e as pessoas mudam! Ou não. A mudança pode sempre ser para melhor ou ainda para pior.

Um dia em que eu andana em buscas no google, de repente, sem mais nem menos, aparece-me o nome dela, médica endocrinologista, numa clínica em Ponta Delgada, S. Miguel, Açores. O nome era o dela, portanto, era ela. Não havia dúvidas. A mesma idade, tudo igual. Não posso dizer que não fiquei bastante surpreendida, porque fiquei mesmo. Caramba! Afinal eu tinha-me enganado. E não é que ser médica fosse algo de extraordinário, mas para a pessoa que eu conhecia ou que eu tinha conhecido, era mais que muito. Como era possível aquela miúda ter chegado ali?! Fiquei deveras surpreendida e até com muita dificuldade em acreditar nas informações que ali estavam e que qualquer um podia testemunhar.

Era bom, evidentemente. Mas era tão estranho! Na minha cabeça e, tendo-a conhecido como a conheci, era quase um milagre. Porque a criança que eu conheci, jamais chegaria àquele ponto. Era preciso ter tido uma grande determinação, em qualquer altura da sua vida, para mudar completamente o rumo das coisas. E por parte dos pais, também não conseguia ver a possibilidade de lhe terem proporcionado esse caminho. É certo que tudo pode ser mudado, quando e como quisermos. Mas esse é que era o problema. Ali, de acordo com tudo a que sempre assisti e sabia, nada poderia ter mudado, porque era o que era e não havia como, nem jeito.

O facto é que ali estava o nome dela, médica endocrinologista, numa clínica em Ponta Delgada. Nem sequer podia haver engano, porque o sobrenome e apelido eram pouco ou nada comuns e num lugar tão pequeno, era impossível haver outra pessoa com o nome dela. Seria uma coincidência muito grande, nada provável. Se fosse um nome comum, até podia ser outra. Mas o dela não. Não havia do que duvidar.

Eu estava perplexa, com imensa dificuldade em acreditar no que lia. Como era possível uma tamanha mudança? Era uma viragem inconcebível. E aí eu tinha que admitir que afinal me tinha enganado e que, por trás daquela Anita, havia outra, que eu nunca tinha conseguido ver. De certa forma, sentia-me completamente derrotada pela maneira como sempre tinha enxergado as coisas. Tinha-me enganado redondamente e feito muito mau juízo da criança. Levei dias a tentar digerir aquilo, acusando-me a mim mesma por me achar uma pessoa má, por ter feito um péssimo julgamento de uma criança, que afinal, apesar do que era, tinha conseguido encontrar o seu caminho e trazido ao de cima o seu melhor. Talvez esse melhor sempre lá tivesse estado e só eu não tenha tido a capacidade de ver e de compreender.

Era uma estranha sensação. Por um lado, eu continuava a ter toda a dificuldade do mundo em aceitar. Por outro, queria muito não ter feito um julgamento tão errado e adoraria conseguir congratular-me com aquela outra Anita. Mas estava completamente dividida nos meus sentimentos e nas minhas emoções. A questão já não era ela - Anita. A questão agora era eu. Quem era eu, afinal? Um ser mesquinho e malévolo, que tinha feito um juízo tão mau daquela criança que, lá atrás, eu achava que tão bem tinha conhecido. Até na adolescência, eu sabia de fonte segura, que à noite, frequentava a discoteca, utilizando o cartão de crédito da avó, que já tinha muita idade, esbanjando dinheiro com amiguinhos. Isto era de loucos, completamente.

Mas o importante é que Anita tinha conseguido. Muito provavelmente, sentia-se realizada e muito bem preenchida e a sua vida era muito válida. Isso estava acima de tudo e era mais importante do que tudo o resto. Tudo o resto era passado e tinha ficado lá atrás, esquecido e enterrado para sempre. Que bom para ela e bom para o mundo.

O tempo passou e um dia, tive que falar com o meu ex-marido, por qualquer coisa que já nem me lembro. Por acaso ele até estava nos Açores, onde, depois de se reformar, passa a maior parte do tempo. E de repente, lembrei-me de lhe perguntar. Disse-lhe que tinha encontrado no google uma Anita, médica endocrinologista, e que fiquei bastante admirada com o facto.  Contudo, e sem se fazer esperar, ele logo respondeu sem qualquer hesitação: “não, não é a mesma. É outra”. Outra, disse-lhe, mas é o mesmo nome!? E ele respondeu: “Sim, mas não é ela, é outra”.

Ah!... Afinal, por mais estranho que parecesse, com o mesmo nome, a mesma idade, no mesmo lugar… afinal havia outra.

A minha dedução infelizmente estava completamente certa. A Anita que conheci, essa, nunca na vida. Impossível.


quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Manias - 106

 

“Meditamos sobre a Luz Divina do adorável Sol da Consciência Universal,

que estimula nosso poder de percepção espiritual”

Om Svah

 

Cada um tem as suas manias e eu também tenho as minhas, algumas delas, devidamente assumidas, porque sobejamente intrínsecas à minha pessoa. Afirmo que é uma mania, apenas, porque acho que mais ninguém o faz, ou se o faz, não fala nisso, pelo menos sistematicamente, ou com a intensidade ou necessidade com que o faço. Por isso, é uma mania, sim, pelo menos, no meu caso.

Também não sei porque o faço, mas faço-o constantemente. Olho para uma pessoa, umas que conheço, outras que não, tanto faz crianças como adultos e até mesmo idosos, e ponho-me a observar cuidadosamente, nos mínimos detalhes, com quem ela ou ele se parecerá, tentando perceber, por exemplo, se os olhos são uma herança materna ou paterna, a boca, o nariz, o seu perfil, etc… etc… etc… E não se trata de querer "adivinhar". É ler nos seus traços, na sua fisionomia, nas suas características, no aspecto. Isso sim.

Porque o faço, não sei. É uma mania. É quase um vício. O facto é que gosto de perceber essa coisa que é o que trazemos de trás, das gerações passadas, a genética daqueles que nos trouxeram a este mundo. Afinal, somos todos um, sendo que, nessa fusão de ADN, não há ninguém igual a ninguém. Ninguém se repete, porque não somos clones. Pelo menos por enquanto. Assim, cada um guarda, religiosamente, o seu completo historial, que está marcado na totalidade do seu ser e se repercute, de maneira mais ou menos acentuada, em todo o seu físico, ou seja, em toda a matéria da qual somos um composto.

A beleza, ou a falta dela, é, de certa forma, uma convenção, e todo o registo dos nossos traços, falam, dizem de onde vêm, e têm as suas próprias características, as suas “qualidades”, quaisquer que elas sejam, bem como o seu significado. Mas não só. O porte, o modo de ser, mais feminino ou masculino, esse equilíbrio ou desequilíbrio, que leva muitas vezes a que uma coisa pareça outra completamente diferente.

É daí que vem o meu especial interesse por essa matéria, embora o faça um pouco intuitivamente. Já tenho lido alguma coisa sobre isso, precisamente porque é um assunto que tem o meu especial interesse, caso contrário, certamente não me daria ao trabalho de procurar informação a esse respeito. E por tudo isto, aconteceu um episódio, há relativamente pouco tempo, que achei interessante e chamou a minha atenção.

Moro num prédio com nove andares. Dado que cada patamar tem seis apartamentos, é bastante gente, sempre a entrar e a sair. Por isso, cruzo-me frequentemente, com os vizinhos. Uns de longa data, outros mais recentes, porque há sempre uns que vão, para dar a vez a outros.

Há um casal que já conheço há algum tempo, embora sem grandes intimidades. Bom dia, boa tarde, como vão, e pouco mais. Têm um filho, o Pedro, de trinta e dois anos, que vejo com mais frequência, porque sai várias vezes ao dia para passear o cão. E sempre que o vejo, associo-o imediatamente aos pais. Só que, desde sempre, nunca consegui encontrar nele, traços que reflictam parecenças com o pai ou com a mãe.

Parvoíces minhas. Manias. Talvez outras pessoas consigam encontrar as parecenças que eu não consigo. Os próprios pais, certamente. O facto, é que, não há vez nenhuma que, ao vê-lo, não faça, repetida e insistentemente, esta relação parental, buscando qualquer coisa que os assemelhe ou que os junte. Tenho alguma necessidade disso? Claro que não. Mas não faço isso só com ele. Como já referi, de um modo geral, faço-o com toda a gente. Daí, que considere isso uma verdadeira mania.

Mas devo dizer que, da minha análise, resulta sempre um conjunto de parecenças, que fazem sentido e que têm a sua razão de ser. Algumas são mais do que evidentes e qualquer pessoa pode constatar. Outras, nem por isso, passando despercebido para muitos, mas não para mim.

No caso do Pedro, sendo totalmente franca e honesta comigo, sem estar a inventar, nunca consegui encontrar o mínimo sinal de parecença, o menor detalhe de afinidade, deduzindo que as minhas faculdades intuitivas não estavam a funcionar com ele. Paciência. Isto não é relevante, nem tem interesse nenhum para ninguém. Se me desse ao trabalho de falar com os pais a este respeito, o que não faria muito sentido, talvez eles me revelassem semelhanças que eu nunca consegui encontrar.

Um dia, cruzando-me com o casal, ela ficou pendurada a conversar comigo, dizendo que às vezes tem necessidade de falar e o marido não é muito conversador. E, então, começou a desabafar um pouco da sua vida, das suas coisas. Coisas de nada, sem importância, mas tendo percebido que ela precisava mesmo disso, deixei-a falar e fui ouvindo, simplesmente. De repente a conversa rumou aos filhos e fiquei sabendo que eles só têm aquele filho, coisa que eu já tinha desconfiado.

O curioso, é que, sempre que penso que a minha intuição não está a responder ou não está certa, alguma coisa tem por trás, alguma coisa se esconde, impedindo-me de compreender seja o que for, pelo que acabo por concluir que o problema é meu. É falha minha, porque não encontro outra explicação. Foi o caso.

A conversa fluía e com a maior naturalidade, sem mais nem menos, começou a falar dos irmãos do Pedro. De repente fiquei perdida, sem perceber nada do assunto, pensando que tinha perdido alguma parte, que por qualquer razão me teria escapado e por isso, ingenuamente, perguntei, “mas não disse que só tem um filho?” E com toda a tranquilidade, ela respondeu: “sim, o Pedro, mas nós não conseguíamos ter filhos, de modo que o Pedro é adoptado”.

Ah?!... Estava explicado o mistério. Agora sim, eu entendia e fazia todo o sentido. Estava tudo certo. A única coisa errada nisto tudo, foi, simplesmente, e uma vez mais, ter duvidado da minha intuição. Mas como também não sou dona da verdade! Nem eu nem ninguém. 

Contudo, quer se aceite ou não, quer se queira ou não, existe uma coisa que se chama intuição, o equivalente a percepção espiritual e que, apesar de não ser muito valorizada, fala sempre mais alto do que tudo, para nos revelar apenas e somente a Verdade.


segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Tadeu e Vinicius - 105

 

Há coisas estranhas…

Tadeu e Vinicius, dois jovens brasileiros e irmãos por parte da mãe. O primeiro é o mais velho, com cerca de trinta anos e o segundo mais novo. A mãe, uma brasileira de quarenta e cinco anos, vive em Portugal há já muitos anos, no que está mais do que adaptada e onde gosta de viver, inclusive, casada com um português.

Tadeu e Vini vivem no Brasil, mas estão sempre em contacto com a mãe, através de mensagens de WhatsApp e chamadas de vídeo, onde têm acesso ao quotidiano uns dos outros, podendo aliviar as saudades. Tadeu é casado, trabalha por conta própria no seu negócio e a mulher idem. Segundo a mãe, Josy, têm uma vida muito boa em todos os aspectos, porque conseguem fazer muito dinheiro. Têm uma menina com sete anos, filha de um primeiro namorado da mãe e agora um menino com seis meses, filho de ambos.

Josy é minha vizinha, porque ela e o marido vivem no mesmo prédio que eu e não raras vezes estamos juntos. Pela nossa diferença de idades eu poderia perfeitamente ser mãe, tanto dela, como do marido, o que não impede que nos demos muito bem. Eles fazem muitos programas tando dentro de casa como fora, no qual me incluem, o que para mim é sempre muito agradável. E Josy tem sempre coisas para me contar da vida dela, seja daqui, seja do Brasil, ou da sua vida particular, enfim, conta-me muita coisa. Eu diria mesmo que me conta tudo da sua vida, para a qual eu sou sua fiel confidente, pois respeito tudo o que ela me fala e muito embora me atreva a dar a minha opinião, é apenas a minha opinião, sendo que as decisões que toma, por sua livre e espontânea vontade, são um direito seu.

A companhia deles é sempre muito bem-vinda, por se contrapor à minha solidão. O marido tem dois filhos ainda adolescentes, fruto do seu casamento anterior, que muitas vezes estão com eles. E embora se deem muito bem, como qualquer casal normal, às vezes há problemas. Aí, Josy desabafa sempre comigo, expondo o seu ponto de vista, em relação ao qual posso concordar ou não, mas são problemas deles e não tenho nada com isso, limitando-me simplesmente a ouvi-la.

Há tempos, início de Verão, uma vez mais me convidaram para ir com eles para a casa do Algarve, onde vão com frequência passar alguns dias, quando o trabalho de ambos o permitia. E nesses dias, além de algumas horas na praia, não havia o que fazer, pois as refeições eram sempre fora ou pedidas a casa, passando o tempo a assistir a qualquer coisa na televisão, mas muito mais conversando e jogando conversa fora.

E nas nossas longas horas de conversa eu já tinha na minha cabeça a visão de tudo o que ela me contava sobre a vida dos filhos no Brasil. Ela descrevia tantas vezes e com tanta minuciosidade que não dava para ignorar. Mesmo sem querer eu visualizava tudo, tal qual ela relatava. Já conhecia por dentro e por fora a casa de um e do outro filho e até o ambiente familiar no qual estavam inseridos. Visualizava as crianças, a rotina de todos, etc. E até já sabia tudo de cor e salteado, o que era engraçado, porque tudo isto era apenas de ouvir.

Estando, no Algarve, uma vez mais, ela começa a falar dos filhos e recebe um telefonema do mais velho, que lhe fala de um assunto que a deixa de certa forma encantada e esperançosa. Terminado o telefonema, imediatamente me põe a par e passo da situação. Tadeu trabalha em casa, num negócio de vendas online e tenciona chamar o irmão, Vini, para começar a trabalhar com ele.

Isto deixou Josy encantada, porque sempre dizia que tinha pena do filho mais novo, por conta do trabalho que fazia. Era um trabalho muito duro e ao ar livre, embora ele gostasse do que fazia. Além de que não era muito bem remunerado. Então, este convite do irmão mais velho para trabalhar com ele vinha a calhar, porque era em casa, sem o desgaste físico que o outro trabalho lhe dava. Ela falando, quando de repente me lembrei de um pormenor que imediatamente lhe contei. Nunca lhe tinha falado nisso, achando que era uma confusão qualquer minha e não fazia o menor sentido. Contudo, depois deste telefonema, a minha cabeça deu sinal e percebi que afinal, parecia que as coisas sempre encaixavam. Talvez não lhe devesse ter dito nada, mas foi mais forte do que eu.

Josy, disse-lhe, então é por isso que sempre que me falas do negócio do teu filho eu vejo o Vini lá, trabalhando, andando de lá para cá, com embalagens na mão, e nunca o Tadeu. Nem nunca me lembro de ter visualizado o Tadeu a não ser ao computador. É sempre, sempre o Vini. E nunca falei nada porque achei não fazer o menor sentido. Josy, que já está mais do que habituada às minhas estranhezas, que considera uma dádiva, imediatamente se expressou encantada e deliciada, dizendo, verdade? Não me digas isso! É tudo o que eu mais quero, é tirar o Vini daquele trabalho porque é muito duro. E se ele fosse trabalhar com o irmão era outro descanso em todos os aspectos. E continuou dizendo que queria, porque queria muito e, portanto, o que eu acabava de lhe dizer, dava-lhe uma imensa esperança de que as coisas seguissem esse rumo. Posso mesmo dizer que estava feliz, tanto com a novidade do telefonema do filho, como com aquilo que eu tinha acabado de dizer que via sempre, mesmo sem compreender, o que para ela era quase uma certeza.

Josy nunca escondeu o facto de achar que eu sou uma pessoa “especial”, muito à frente, segundo palavras dela, etc… etc… apenas porque teve alguns percalços, que acha que fui eu que os resolvi. Por exemplo, a máquina do café um dia deixou de trabalhar. Lamentou-se dizendo que agora não tinha café em casa e porque não sabia se a máquina tinha arranjo ou se tinha que comprar outra, o que era uma chatice. Estávamos ao telefone e disse-lhe para desligar e voltar a ligar. Horas depois ligou-me muito contente, feliz da vida porque tinha feito o que eu lhe tinha dito e a máquina imediatamente começou a trabalhar(!?). Rimos as duas, claro. Se calhar era apenas um mau contacto, só isso. Mas ela achou que foram as minhas boas energias. Outra vez foi a máquina de lavar do salão, que não fez a centrifugação. Disse-lhe para mudar de programa e experimentar. Ela rindo, disse, já sei, a máquina vai funcionar. O facto é que funcionou. Não tenho explicação, são apenas mudanças de atitude. Se calhar estava cansada daquele programa!

De modo que, quando lhe contei que via sempre o filho mais novo e nunca o mais velho, ela ficou maravilhada, porque era mesmo o que ela queria. Mas eu estava a ser muito franca com ela, ou seja, não estava a inventar nada para lhe ser simpática, que isso não faz o meu feitio. Agora só havia um handicap, ele aceitar ou não. Dependia apenas dele. E aí sim, percebi a sua forte apreensão.

De regresso a casa, os dias voltaram à sua rotina e novamente estamos juntas. Nas conversas habituais, lá vêm os filhos. E de repente, pergunto-lhe como está o assunto entre os dois, convencida de que o mais novo tinha aceitado o trabalho com o irmão. Mas para minha surpresa, ela respondeu que não, ou seja, o Vini tinha recusado, explicando que trabalho era trabalho e não queria de forma alguma pôr em risco a sua relação com o irmão. Por isso achava prudente não aceitar, continuando tudo como estava.

Eu mesma fiquei desiludida, mas compreendia a situação e no fundo achava que tinha alguma razão de ser. Em todo o caso, posso dizer com toda a verdade, que fiquei um pouco espantada e perdida, por ter saído completamente fora da verdade, isto é, por ter dito uma coisa que não correu como a minha intuição previa. Quase que me senti derrotada. Mas as coisas são como são e, então, talvez fosse mesmo apenas e somente alguma confusão da minha cabeça, como eu sempre tinha achado. Mas volta e meia pensava naquilo, sempre com um certo pesar, sempre com dificuldade em admitir que tinha falhado e que se calhar era preferível não ter dito nada. Se calhar estava mesmo a inventar. Mas porquê? Porque todas estas coisas saem do nosso controle e não são muito ou nada perceptíveis.

O tempo foi passando, passando, outros problemas apareceram e não foram poucos, tanto para eles como para mim e a vida acontecendo, com coisas que a única saída é aceitar, simplesmente. Já lá iam uns dois meses, desde aquele incidente que me tinha deixado sem palavras. Agora, Josy estava falando do netinho que já vai ao jardim escola para a mãe poder trabalhar, mostrando-me vídeos dele com muita graça. E na conversa que está a decorrer, de repente, a minha frustração esfuma-se naquele preciso momento, deixando-me bem mais tranquila e sem o arrependimento de ter falado no assunto ao ouvi-la dizer que o Vini estava a trabalhar com o Mateus. Perguntei, espantada, o quê? Pensei que ele tinha recusado a proposta do irmão!? Ah, mas pouco tempo depois acabou por voltar atrás e por sinal está a correr tudo muito bem para os dois.

E, afinal, tudo encaixou no sítio certo. Mas há coisas estranhas…


terça-feira, 16 de agosto de 2022

Verdades ocultas - 104

 

Não tenho nada contra as religiões, mas também não tenho muito a favor. Cada um é livre de acreditar no que quiser e seguir os credos que entender. Respeito todos os povos com a sua cultura, os seus costumes e as suas religiões, porque acima de tudo prezo e respeito a liberdade, o bem mais precioso do ser humano.

Quando fui para os Açores e conheci o meu marido ele vivia com a mãe, o irmão e um tio. O tio era padre e tinha outro irmão também padre, que não vivia com eles, porque era Pároco na Freguesia da Lagoa, fora de Ponta Delgada. Mas como tudo ali é perto porque a ilha não é grande, ele ia lá muitas vezes estar com a família.

Os dois eram padres, mas um bem mais do que outro, ou seja, o de Ponta Delgada um padre a cem por cento, o outro nem tanto. E digo isto apenas no seu aspecto exterior, porque Padre Domingos andava sempre “fardado”, já o outro não. Quem o visse fora da igreja e não o conhecesse, nunca diria que ele era padre. O outro nem nunca me lembro de o ver de roupa que não fosse da igreja. Depois, enquanto que padre Domingos andava sempre, mas sempre, de missal na mão ou debaixo do braço, padre Agostinho tinha sempre um cigarro na mão. Eram realmente muito diferentes neste aspecto. No resto eram iguaisinhos.

Focando-me exactamente no Padre Agostinho, ele vivia na Lagoa por ser o Pároco daquela freguesia e morava numa bela casa, um solar de dois pisos, de frente para o mar, com uma vista soberba. Um casarão que ia muito para além das suas necessidades. Mas era propriedade da igreja e, portanto, por direito estava-lhe atribuída. Algo em que eu pensava frequentemente, mas a vida é o que é e as coisas são como são. Além disso tinha um pequeno terreno onde ele tinha feito uma hortinha bem jeitosa, no qual colhia legumes fresquinhos quando quisesse. Se eram só para ele ou se os distribuía com a população, não faço a menor ideia. Lembro-me de que de vez em quando levava uma cesta com coisas lá para casa e especialmente quando engravidei, no que ele tinha o cuidado de com muita regularidade levar produtos fresquíssimos como alfaces, cenouras, batatas e outras coisas mais, o que muito agradeci.

Mas Padre Agostinho, tio do meu marido, andava quase sempre acompanhado de um garoto a quem ele chamava de afilhado e que o tratava precisamente por “padrinho”. O garoto estava com frequência lá em casa, pelo facto de andar sempre com ele. Segundo dizia, era filho da senhora Lucinda, a pessoa que lhe fazia a faxina em casa e cuidava de tudo na igreja. E assim, ele tinha o garoto como afilhado e como afilhado acompanhava muito o padrinho.

Todos nós já estávamos mais do que habituados ao convívio do garoto e que estava completamente à vontade tanto com o padrinho como com o resto da família. E algumas vezes dei por mim a pensar que o miúdo, que deveria ter uns onze, doze anos, poderia perfeitamente ser da família, pela semelhança que tinha com todos. Achava imensa graça à coincidência das semelhanças dele com o padrinho. Mas se calhar era só eu. Talvez os outros não se dessem conta disso, porque provavelmente nem se detinham nesses pensamentos. E não é que eu quisesse ou tivesse alguma intenção especial. Era simplesmente porque aquela “coincidência” era tão consistente, digamos, que era mais forte do que eu. Quantas vezes dei por mim a pensar, a olhar para ele, a observar e sempre a chegar à mesma conclusão de porque razão aquilo haveria de ser uma obstinação para mim. Eu nem queria saber daquele assunto. Não tinha interesse nenhum. Mas acabava por ser mais forte do que eu, sem dúvida.

Olhando-os de trás, um era a miniatura do outro. A mesma forma, a mesma estatura, os ombros largos, o cabelo claro como o meu filho e os primos. Os olhos castanho-esverdeados como os da minha sogra e do meu marido. O mesmo tom de pele, enfim, as semelhanças eram inúmeras. No meu íntimo, não era nenhuma insinuação que eu fazia. Longe de mim pensar que o garoto fosse filho dele, mas é que realmente era tão grande a semelhança que me deixava completamente confusa.

Todos sabemos que os padres não podem casar, não podem ter filhos e isto, em princípio, é aceite pela comunidade. É uma estupidez! Não interessa. Problema da igreja. Quando se metem a ser padres já sabem disso. É problema deles. E também nunca conheci nenhum padre que tivesse filhos. Mas cada vez há mais casos desses. Isso é sabido. E para mim tanto faz como fez. É-me absolutamente indiferente, dado que a religião não me diz nada. O facto de ser crente, não implica ter uma religião. Mas isso sou eu, por isso também, aceito os outros como são.

Em relação ao caso do tio padre, às vezes até me sentia incomodada com a tentação de pensar constantemente naquele assunto. Longe de mim imaginar que o garoto seria seu filho. E tinha a certeza de que ninguém na família alguma vez tivesse pensado nisso. Nunca. Eles eram tão rígidos com os princípios do catolicismo! Eu fui “obrigada” a casar-me segundo os rituais da Igreja Católica para poder ter acesso aos encontros em família ao Domingo, dia do “Senhor”. Enfim… só disparates. Mas eram os costumes deles, eram as suas tradições, as suas regras e tudo tinha que seguir os seus trâmites, caso contrário era muito complicado.

Entretanto, o meu marido e eu divorciámo-nos, cada um seguiu o seu caminho, apesar de mantermos um relacionamento civilizado, quanto mais não fosse porque tínhamos um filho que precisava disso. Os anos passaram, fomos todos envelhecendo, as crianças tornaram-se adultos e também seguiram o seu rumo, o caminho destinado e por aí adiante. Os tios padres morreram, primeiro um, depois o outro e a minha sogra foi a última, porque faleceu com cento e quatro anos.

Muito recentemente dei por mim a andar para trás no tempo, porque a minha cabeça, sem motivo aparente, foi buscar todas essas recordações lá atrás, o que me parece natural. E foi aí que vi o filme na sua película original e verdadeira. Ou seja, de repente, sem mais nem menos, percebi porque razão eu ia sempre parar ao mesmo caminho: o padrinho e o afilhado. Pela primeira vez na vida eu vi com os olhos da alma, que não havia padrinho e afilhado, mas um pai e um filho, pura e simplesmente. E perguntei a mim mesma porque razão tinha escondido isso de mim mesma durante tantos anos!?

Estava claro, mais do que claro, que desde a primeira vez que os vi, percebi que eram pai e filho. Não havia dúvida nenhuma. Só não via quem não queria. E também estava claro que os outros sabiam perfeitamente. Hoje tenho a certeza disso, mas ninguém tinha a coragem de falar. Aceitavam aquilo como uma verdade oculta, por uma questão de princípio, porque estavam em causa os princípios da Igreja e o respeito pelo tio Padre, que não tinha outra saída naquela história.

Os padrões a que estamos sujeitos e as regras que nos impõem desde sempre, conseguem bloquear totalmente as capacidades inatas do ser humano. Elas foram feitas para isso e cumprem a cem por cento os resultados a que se destinam. E mais uma vez encontramos um lugar comum, ou seja, aqui, somos todos iguais. A limitação continua a dominar-nos. As verdades ocultas continuam a ter total soberania, se não evoluirmos como seres humanos. A nossa evolução passa pela luz que conseguimos chamar a nós. À medida que crescemos interiormente e desenvolvemos o nosso ser de luz, assim conseguiremos desabrochar e deixar sair a nossa verdadeira e mais pura identidade, para a qual não há meta e onde o céu não tem limite. O limite sem fronteiras que libertará de vez o espírito e acabará de vez com todos os nossos bloqueios e todas as verdades ocultas. 

 

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Viagem à Rússia - 103


O ano de 2020, o ano do “rato”, de acordo com o zodíaco chinês, tinha acabado de dar entrada. A Direção da Associação Sénior de Odivelas estava reunida para mais uma reunião, a primeira do ano, na qual estavam presentes todos os seus membros.

A senhora Presidente, dirigindo-se ao colega Celestino cujo pelouro são as viagens, pergunta se já tem alguma coisa em vista para a viagem internacional da ASO. O colega Celestino é uma pessoa de eficiência total. Prepara a sua parte com todo o cuidado e com uma antecedência espantosa, pelo que está sempre pronto a responder a qualquer questão que lhe seja posta. Portanto, não seria agora que ia falhar e por isso, uma vez mais, ele já tinha o trabalho de casa perfeitamente elaborado, pronto para ser apreciado por toda a direção, a fim de se planear a viagem sem falha.

Das várias propostas apresentadas à mesa, a mais apelativa para ele é uma viagem de cinco dias à Rússia. E depois de distribuída toda a informação sobre este assunto, para que todos pudessem avaliar e formar uma opinião, um a um, todos se manifestam a favor da Rússia, incluindo a srª Presidente, que faz questão de afirmar que em seu entender é a melhor escolha e vale muito a pena. Ela tinha estado lá com familiares, muito recentemente e adorou, dizendo maravilhas da Rússia.

Enquanto isto, limito-me a ver e ouvir o interesse por parte de todos, sem me pronunciar. Achando estranho, a senhora presidente pergunta porque razão ainda não proferi uma palavra sequer em relação à viagem. No mais profundo silêncio, de facto, eu era a única que não se manifestava. Todos pareciam unânimes em votar na viagem à Rússia. Porque razão eu não me manifestava, era a pergunta da senhora presidente e agora dos outros também. Não queria ser desmancha prazeres, mas a minha única resposta era “não”. A viagem seria feita, uma vez que todos concordavam, mas eu não iria. E intrigados começaram a levantar questões, porque eu sou sempre muito animada com as viagens internacionais e não falho uma. Sem dúvida, mas à Rússia não.

E começa uma espécie de “batalha”, com todos exigindo da minha pessoa uma resposta concreta e objetiva, uma resposta cabível, que tenha fundamento. Não que eu tivesse obrigação, mas por uma questão de princípio e como vogal da direção, deveria pronunciar-me, só isso. Mas essa resposta eu não tinha. A única coisa que sabia é que assim que ouvi falar em Rússia, a minha intuição deu de imediato alerta e a resposta era um não, sem sombra de dúvida. Porquê, eu também não iria explorar muito essa questão, nem para mim mesma, pois há muito que aprendi que em casos destes, a resposta a seu tempo virá. Mas à Rússia era certo que não iria. Paciência. Era dinheiro que eu não ia gastar, mas não era por essa razão. Não tinha nada que ver com isso. Outros valores se sobrepunham.

E a senhora presidente insistia que não compreendia a minha decisão, continuando com perguntas a que eu só podia responder com “não”. Não tinha nada contra, apenas não iria à Rússia, para obedecer rigorosamente à minha intuição, que vinha não sei de onde, mas isso também não importava. Era não e tudo o que eu pudesse dizer, não teria o menor fundamento, o que não tinha qualquer importância, nem tão pouco me constrangia. O importante é que eu estava a ser fiel a mim mesma e à minha verdade. À Rússia não iria. 

Não foi muito fácil lidar com este assunto, porque os outros não compreendem nem têm que compreender. Não se pode exigir isso de ninguém. Ali, o elemento “estranho”, por assim dizer, estava a ser eu, que continuava irredutível e imperturbável, sem me incomodar absolutamente nada. Não valia a pena era estar a inventar desculpas para satisfazer os outros. Isso também não. Achavam estranha a minha atitude? Pois iam ter que se aguentar. Eu própria já passei por isso em relação a mim mesma. Quantas e quantas vezes me interroguei em situações análogas, sabendo qual a resposta, quando não percebia porque haveria de estar a ser empurrada, por assim dizer, para uma decisão que conscientemente ainda não tinha sido tomada por mim mesma, mas que na verdade, vinda não sei de onde, era muito mais forte do que tudo e acabava por me indicar o caminho!? Independentemente de o fazer ou não, mais tarde lá vinha a resposta ou as consequências positivas ou nefastas. Por isso, era o que era.

Ainda não há muito tempo, talvez dois anos ou talvez menos, comecei a ensinar português a uma rapariga indiana, que queria muito aprender para poder arranjar trabalho, mas não sabia onde, nem tinha dinheiro para isso. E por ter sido pedido e falado por quem foi, eu acedi. A rapariga em questão ligou-me, conversámos e combinámos o dia em que daríamos início às aulas. Uns dias antes de ela vir comecei a ter uns sonhos esquisitos, meio embrulhados e acordava estranha, sem perceber nada do que estava a acontecer. E na noite anterior ao dia em que ela veio pela primeira vez, tive um sonho horrível, um pesadelo medonho, que me fez acordar com vontade de não ter acordado ou então, com vontade de acordar e sair daquele horror. Só me apetecia chorar e vomitar, para me livrar daquela sensação tão negativa, na qual me sentia completamente aprisionada.

Satti veio a meio da manhã, conforme combinado e traçámos um plano. Houve empatia entre nós, é verdade, mas ela dificultava muito o trabalho e parecia que não dava a importância que dizia. Dizia uma coisa e depois na prática tinha um comportamento que não correspondia. Estava sempre a atender chamadas no telemóvel e coisas do género. Queria falar de tudo, menos de português. Uma bagunça. Se estivesse a pagar não faria isso, com certeza.

E um dia, novamente na noite anterior, tive o mesmo tipo de sonho, que me deu um mal-estar de arrasar, ao acordar. Era um mal-estar tão forte que eu perguntava a mim mesma, porquê? Mas a resposta eu sabia qual era. Era não estar mais disponível para ela. E por não entender porquê e querer a toda a força uma resposta coerente, dei-me muito mal. Apenas porque não fui fiel à minha intuição.

Ela estava constipada. Tinha apanhado muita chuva e nesse dia várias vezes espirrou. Nós não tínhamos máscaras para pronunciarmos as palavras o melhor possível. E apesar de haver uma certa distância entre as duas e de estarmos na varanda com as janelas meio abertas, não serviu de nada. Nos dias que se seguiram ela não apareceu, ficou muito doente e ao fim de uma semana fez um teste que deu positivo à Covid. Ligou-me para me dizer isso. Lamentei e desejei-lhe as melhoras, só que depois comecei a pensar, e se eu também estou? Lembrei-me dos espirros dela e a minha cabeça começou a trabalhar porque, entretanto, eu já tinha estado muito de perto com mais pessoas, por isso, para aliviar a minha consciência, liguei para o SNS, que me mandou imediatamente fazer um teste, apesar de eu não ter sintomas. Passado poucas horas veio o resultado e surpresa das surpresas, estava positivo, com todas as letras, o que significava que, apesar da ausência dos sintomas - talvez por causa das duas doses de vacina que já tinha tomado - ordens expressas do SNS, tinha que ficar dez dias em casa, sem qualquer contacto, completamente isolada. E foi aí que comecei a sentir-me mal, muito mal. Os meus níveis de ansiedade subiram drasticamente, de uma forma incontrolável e passei mal. Tive que ligar para o SNS e estive uma hora ao telefone com uma psicóloga que tentou acalmar-me e para o efeito até me mandou tomar um banho quente, etc… mas foi horrível. Parecia de tinha entrado no inferno. Senti de novo todo aquele mal-estar do sonho, que tinha tido aquando do primeiro dia da rapariga indiana e que eu não percebia, ou melhor, percebia e sabia, mas rejeitei, por achar que não fazia sentido e que tinha que “ultrapassar” essas coisas.

Definitivamente, há coisas que estão acima, muito acima do nosso entendimento. Não adianta barafustar, procurar entender, não adianta nada disso. Só uma coisa é certa, por mais estranho ou relutante que pareça: aceitar. É a intuição a sobrepor-se ao nosso universo tridimensional, quando existem dimensões tão superiores a isso. Não conseguimos lá chegar, estamos muito longe dessa compreensão. Em todo o caso, somos filhos do universo e o universo está connosco, tentando comunicar-se. É preciso ouvir, escutar a voz do silêncio, as orientações cósmicas, que têm diferentes formas de chegar até nós. Não podemos dar luta porque quem sai perdendo somos nós próprios. Além de que estamos a rejeitar a sua proteção. É como desperdiçar comida.

E agora, à mesa da reunião, com todos esperando ouvir de mim uma explicação ou um voltar atrás na palavra dada, nada disso aconteceu, porque a minha posição foi irredutível, continuando sem me alongar nas explicações, porque não convém nada.

O tempo passou, com os números do Covid a aumentar, os países a tomarem as suas medidas, os aviões a não levantarem e tudo o resto a que nenhum ser humano pôde ficar indiferente, porque nos atingiu a todos, directa ou indirectamente. E o que é que aconteceu? A viagem à Rússia não pôde ser realizada. E vieram os confinamentos e o mundo inteiro foi condenado. A minha resposta estava mais do que justificada. “Não” à Rússia, porque a viagem teve que ser cancelada, versus adiada.

E chegou o ano de 2021, o ano do boi. Se o ano do rato é chato, porque o rato nos faz partidas e aparece onde não devia aparecer e é nojento e ninguém gosta deles, o búfalo tem cornos e é marrento. E quando a Direção de novo começou a preparar-se para, enfim, dar oportunidade aos seniores de irem à Rússia, pois o mundo teve que aprender a lidar com o Covid e agora já havia as condições mínimas para se poder fazer a viagem, recomeçam-se os preparativos com mais pessoas a juntarem-se ao grupo. E mais uma vez sou questionada, por acharem que agora a minha disposição seria outra. O problema é que não era nada com a disposição. O problema era outro. Mas achavam que ainda estava em tempo de voltar atrás e aproveitar essa malograda viagem. Aconteceu isso com muitos colegas, que não se tinham inscrito anteriormente e agora tinham ido a correr fazer a sua inscrição. Mas a minha intuição continuava a dizer “não”. E então pensei para comigo mesma, nem agora nem nunca. Talvez numa próxima reencarnação. Nesta não. Porquê? Não sabia e não estava interessada em saber. Mas a seu tempo saberíamos.

Vinte e quatro de Fevereiro de 2022: o ano do Tigre! A Rússia mostra as suas “garras” e decide entrar em acção, fazendo guerra à Ucrânia, à europa, ao mundo. Fazer o quê?

Viagem à Rússia? Esqueçam. Infelizmente agora estava dada a resposta. Adiada sine die, porque nem para mim nem para ninguém.


segunda-feira, 23 de maio de 2022

As novas tecnologias - 102

 

Há dez minutos que eu estava sentada, com a atenção focada no quadro em frente, à espera de ser chamada para a consulta de oftalmologia, num dos Hospitais da Cuf. Tinha tido consulta há cerca de seis meses no hospital público, por isso, em princípio estaria tudo bem. Mas o problema da alergia, para o qual já tinha consultado a dermatologista, não me dava tréguas. Por vezes, as minhas pálpebras começavam a inchar de uma maneira estranha, ficando vermelhas, o que me dava imensa comichão, difícil de resistir. E quanto mais coçava, mais comichão me dava e os olhos ficavam uma lástima por dentro e por fora. Já tinha ido à farmácia e também me tinham dado gotas para a alergia ocular e pomadas e cremes para as pálpebras, mas nada surtia grande efeito e eu estava muito baralhada no meio de tanta coisa, que já não sabia o que fazer. Decidi então, na tentativa de ser uma última vez, ir a um oftalmologista privado, levar toda a tralha que tinha da farmácia e dos outros médicos, para me orientar e dizer o que deveria fazer correta e definitivamente e pôr fim àquele suplício que, não sendo nada de muito grave, nem por isso deixava de me incomodar o suficiente.

Ao fim de dez minutos de espera, uma assistente vem à sala de espera chamando o meu nome e pedindo-me para a acompanhar. Encaminhou-me pelo corredor e parou, com papéis na mão, dizendo para aguardar a auxiliar de enfermagem que me levaria à sala de exames, onde seria devidamente observada para depois ser vista pelo médico.

E aí, pensei para comigo mesma, que não pretendia exames. Não precisava. Só queria uma opinião em relação ao que deveria fazer exatamente como certo e mais nada. Mas acabei por ser interrompida nos meus pensamentos, pela auxiliar de bata branca que, dirigindo-se à minha pessoa, me cumprimentou e me pediu para a acompanhar. Bem, lá fui com ela, cogitando na possibilidade de a interpelar para me poder explicar em relação ao pretendido, porque achava que realmente não necessitava de exames.

O facto é que ela abriu a porta do gabinete e pediu para me sentar em frente ao equipamento, sem que eu recusasse e falasse o que tinha em mente. Porque é que me hei de sujeitar a estes exames? Em princípio estará tudo bem!? Portanto, para além da consulta, ia ter de pagar mais os exames, que não são propriamente baratos. Mas o facto é que da minha boca nada saía. E eu até me sentia indignada comigo mesma, pelo facto de não me explicar e dizer, atenção, eu não vim aqui para fazer exames, vim por outro motivo.

Mas, entretanto, enquanto a minha cabeça trabalhava cheia de dúvidas e de incertezas, a auxiliar, uma garota muito jovem, muito calma e simpática, diz que não está a perceber o que se está a passar com o equipamento, que tem estado em perfeitas condições e de repente não quer funcionar. Não quer funcionar?! Ouvi bem o que ela disse e a minha intuição imediatamente deu sinal de alerta, conectando-se.

Silenciosa, ela tentava por todas as vias que estavam ao seu alcance, perceber o que se passava com o computador, enquanto eu continuava com os meus pensamentos em negação, achando que era uma perda de tempo e de dinheiro, fazer aqueles exames e o melhor seria aproveitar a oportunidade de o computador estar a meu favor e dizer que não tinha importância, porque eu não precisava de fazer os exames.

Ela pedia desculpa, dizendo que realmente não conseguia perceber o que se estava a passar e eu sempre pensando que estava na altura de falar. Só que não me saía o que eu queria dizer, o que não é muito normal em mim. E ela desfazendo-se em desculpas pelo tempo que achava que me estava a roubar. O que ela não sabia é que esse era o menor dos males, uma vez que eu tinha o tempo todo por minha conta. E mais, o que ela nem imaginava é que o computador estava sob um controle que ela desconhecia. E eu sabia também que não falava porque me estava a dar conta dessa situação insólita e precisava de ter a certeza absoluta disso. Porque, tal facto, podia ter-me escapado e passado completamente despercebido. Mas se a minha intuição tinha dado sinal, eu estava simplesmente a seguir a sua indicação e de acordo com essa informação vinda do campo holístico, o problema do computador não funcionar era pura e simplesmente consequência da minha dúvida. Assim, decidiu chamar um colega para, em conjunto, tentarem resolver o problema.

As novas tecnologias são a grande maravilha, a maior descoberta do mundo em que vivemos e porque não dizer universal, independentemente do seu tamanho, dimensão e infinidade. As tecnologias abrem-nos as portas para outros patamares nunca antes imaginados. E por último, mas não muito, a inteligência artificial é a maior conquista do ser humano até hoje. Mas não será a última, acredito que não. Com ela é possível fazer o impensável e chegar sabe-se lá onde. Quem, em sã consciência, acredita que hoje em dia poderia viver sem Internet, sem telemóvel, sem computador, etc...!?

A evolução tecnológica disparou e continua a disparar a uma velocidade sem precedentes. É importante estar a par e tentar acompanhar, o que pode não ser tarefa fácil. Cada um deve fazer o melhor que puder e contribuir para este crescimento e, mais importante do que tudo, utilizar as novas ferramentas para coisas válidas, para coisas que valham a pena e ajudem a humanidade a progredir positivamente e não de maneira fútil e desinteressante e muito menos para a destruição e para o mal. Temos toda essa pesada responsabilidade. Validar as tecnologias e seguir sempre nessa direção, sem dúvida. Contudo, por mais longe que consigamos chegar, aonde quer que elas nos levem, e não obstante a falta e a necessidade que nos fazem, para não falar da dependência… apesar de tudo e não desvalorizando absolutamente nada, a mente humana ganha pontos. Sem dúvida, e é isso que me dá força e ânimo e vontade de caminhar sem medo e sem angústia.

Há já alguns anos atrás, quando na RTP comecei a trabalhar com o computador e posso dizer com toda a verdade, que fui das primeiras mulheres a utilizar o computador para a quase totalidade do meu trabalho, estando um dia num programa de excel, aconteceu uma coisa interessante. Eu já trabalhava em excel há muito tempo, mas uma vez em que tive que parar para atender o telefone, o écran interrompeu o excel, como era natural, e começou a passar um fundo que tinha sido escolhido por mim e que era umas flores de lótus, muito bonitas e muito relaxantes.

Já tinham passado pelos meus olhos centenas de vezes, mas naquele dia, antes de reiniciar o trabalho de excel, fiquei a admirar e pensei que era muito bonito o que via. Apenas, se fosse eu que tivesse feito, teria alterado as cores das flores e ter-lhes ia dado outras tonalidades, que surgiram de imediato na minha imaginação, lamentando o facto de não conseguir ser exactamente como eu gostaria, o que não era nada de importante.

E de repente, sem mais nem menos, as flores começam a cair com as cores alteradas, precisamente como eu as tinha imaginado. Sem pôr nem tirar. Fiquei perplexa, sem perceber o que se estava a passar. Como é que podia acontecer uma coisa daquelas? Eu já tinha o programa há séculos e aquilo nunca tinha acontecido. Naquele dia pensei nas flores com outras cores e ele, como que obedecendo à minha vontade, desata a deitar as flores precisamente como eu as imaginei!?... Exatamente naquele momento!

Depois, falando com um técnico a quem relatei o assunto sem entrar em pormenores, foi-me explicado que provavelmente o programa estava muito pesado, o que de facto aconteceu, e que levou à desconfiguração da imagem. Claro, estava explicado. Tinha que haver uma explicação. Mas porque é que só aconteceu exactamente no momento em que a minha cabeça como que “pediu”? A mente humana ganha pontos ou não?!

Voltando atrás, a minha dúvida continuava em relação a fazer ou não os exames e o computador continuava a não dar sinais de querer avançar. Agora, os dois assistentes em silêncio, olhavam para o écran, na tentativa de encontrar a solução, enquanto eu ainda não me tinha decidido se queria ou não fazer os exames. Neste impasse todo, cheguei finalmente à conclusão de que mais uns exames não iriam fazer mal, antes pelo contrário, e o dinheiro, também não era por aí. Como se diz: vão-se os anéis, ficam-se os dedos.

Pois bem, naquele preciso momento decidi que sim, faria os exames. Sim, já não tinha dúvidas. E também não tinha dúvidas de que naquele preciso momento, o computador deixaria de continuar a dar trabalho aos dois assistentes, para recomeçar imediatamente a trabalhar, obedecendo à minha vontade, e repito, de querer fazer os exames, o que de facto aconteceu, para grande alívio dos dois, que estavam completamente baralhados. Coincidência? Não. Muito pelo contrário. A falta de coragem do ser humano faz com que se torne incapaz de validar os factos tal como são, preferindo enquadrá-los e qualificá-los apenas como insignificantes coincidências, sem qualquer relevância.

O homem ainda continua de olhos fechados, sem os conseguir abrir. Mas só não os abre porque não quer. Porque não acredita em si. Acredita em tudo e mais alguma coisa. Acredita em tudo o que vê e ouve, só não acredita no que não vê e não ouve. Pôr a inteligência a trabalhar para se desligar da intuição não resulta. As duas coisas têm que caminhar juntas. Continua a existir uma Verdade Maior por descobrir. E essa não se pode ensinar nem transmitir, porque é parte inerente e exclusiva do ser humano e cada um tem o que tem.

As novas tecnologias são a marca do tempo. A inteligência artificial comandará o mundo novo. Mas à frente de tudo e maior do que tudo, para os que querem e para os que não querem, para os que acreditam ou não… para nossa maior felicidade e para o nosso maior bem… a mente humana sempre se sobreporá e sempre ganhará pontos. 

 


sábado, 21 de maio de 2022

Era uma vez... um gato siamês... - 101

 

Nicole era uma inglesa, professora, dava aulas de inglês e vivia sozinha. Solteira, sem filhos, os pais viviam em Inglaterra. Apesar de ser discreta, tinha amigos e gostava de sair e divertir-se, como era normal. Tinha carro, mas raramente conduzia, porque preferia andar nos transportes públicos. E também tinha um gato. Um gato siamês que ela tratava com todo o amor, cuidando de todos os pormenores e dando-lhe tudo do bom e do melhor.

Era o seu gato, o seu bichano, que estava sempre em casa à sua espera. Nicole não tinha do que se queixar da vida. Uma mulher jovem com cerca de quarenta anos e uma vida bem confortável. De vez em quando ia a Inglaterra para matar saudades do seu país e estar com os pais e restante família.

Um dia, numa viagem, conheceu Eric. Eric era australiano e tinha uma quinta onde vivia permanentemente. Divorciado, com duas filhas adolescentes, mantinha um relacionamento civilizado com a ex-mulher. Nessa viagem, Nicole e Eric trocaram impressões, conheceram-se um pouco e ficaram amigos, tendo mantido a comunicação um com o outro por aí fora. Aos poucos foram-se aproximando emocionalmente e tornaram-se íntimos. Foi então que começou o namoro, ou seja, os dois assumiram um relacionamento. Porque não? Se se encantaram um pelo outro, se ambos eram desimpedidos e livres, porque não dar uma oportunidade a si mesmos de serem felizes e aproveitar da vida o que há de melhor?!

Tudo corria às mil maravilhas, porém, com um pequeno pormenor: a distância. A distância era realmente um grande problema, porque para nós, a Austrália é mesmo no fim do mundo, quer dizer, do outro lado do mundo. Nicole foi lá, esteve lá, não muito tempo por causa do trabalho, mas o bastante para ficar encantada e deliciada com o mundo de Eric, um mundo novo que abria um caminho sorrindo, mas com esta tremenda dificuldade, muito difícil de ser ultrapassada.

Eric também veio a Portugal por diversas vezes. Uma vez até esteve algumas semanas com as duas filhas. E dava gosto vê-los, porque todos tinham um ar radiante e feliz. Uma nova família surgia, com uma excelente perspetiva de harmonização. Enfim, o amor estava no ar, de vários lados e com várias facetas porque, ao que parece, Nicole e a ex-mulher de Eric conheceram-se e entenderam-se bem, sem problemas nem ressentimentos, o que foi muito bom para todos. Tudo parecia em ordem para poder caminhar. Somente o problema da distância se entrepunha no caminho de ambos e não era pouco.

Então, um dia, para poderem desfrutar do amor que sentiam e queriam ver crescer, foi tomada uma grande decisão. Nicole iria viver para a Austrália. Para ela era indiferente. De qualquer modo, já estava fora do seu país de origem, por isso, estar aqui ou estar ali, tanto fazia. Não tinha nada que a ligasse especialmente a Portugal. Já para Eric era muito complicado mudar-se. Porque viria, se a própria Nicole nem portuguesa era? Ele não se apaixonara por uma portuguesa, mas por uma inglesa. E para Eric vir para Portugal, quem tomaria conta da quinta? E as filhas como ficariam? Perto do pai e longe da mãe ou vice-versa?

Nicole tomou a decisão considerada por eles como certa: mudar-se de armas e bagagens para a Austrália. Estava tudo certo na sua cabeça. Alugaria o seu apartamento, até ver, para não ficar desabitado e mais adiante se veria. Mas, para já, estava resolvido. Apenas um pormenor a inquietava. Um pormenor que não era pequeno, ou seja, era e não era. O seu gato siamês. Aquele fofo que parecia uma bola de lã, lindíssimo e bem tratado, que ela tanto amava. Mas Nicole não queria levá-lo. O amor que nutria pelo seu bichano, impedia-a de o levar, pelo facto de ser um percurso demasiado longo, achando que o animal não iria aguentar tantas horas de viagem!?...

E agora, o que fazer? Decidiu então procurar alguém a quem doar, para ficar com ele e cuidar muito bem dele. Fez várias tentativas, mas ninguém respondia. As coisas começaram todas a tomar o rumo certo para a sua partida e o problema do gato não se resolvia. E apesar de ser o gato que sempre tinha estado com ela e que preenchia as suas horas de solidão, Nicole não queria levá-lo, sempre insistindo que gostava demasiado dele para o sujeitar a uma viagem daquelas!?...

O tempo estava a esgotar-se e Nicole não tinha solução, simplesmente porque ninguém se candidatava ao seu tão querido, tão “precioso” gato siamês. Mas Nicole não ia desistir do seu plano. Isso nunca, jamais… e para grandes males, grandes remédios. E assim viu-se obrigada a tomar outra dura decisão. Uma decisão de peso, mas tudo por “amor”: mandar abater o bichano. Sem dúvida, tudo por amor(!?), porque amava demais o seu bicho para o deixar a sofrer. E com ele morto, o seu (dela) problema estava resolvido e finalmente poderia partir, livre de tudo o que ficava para trás, simplesmente porque nada daquilo lhe fazia mais falta…

Agora sim, Nicole estava livre. Podia respirar aliviada, porque não havia pedra nem entrave no seu caminho. Na Austrália seria feliz, finalmente, na sua nova família, onde tudo seria perfeito. O seu gato não ficara em sofrimento, simplesmente porque tomara a decisão certa, segundo a sua ótica. Nicole desapareceu, pois, da face da terra portuguesa, para aparecer no outro lado do mundo e sem o seu tão querido gato, que muito provavelmente não aguentaria a viagem (!)…

Mas ela aguentou e como! Chegou feliz como nunca antes. Instalou-se na sua nova casa, na sua nova vida e na sua nova família. Pronta a dar tudo por tudo para ser feliz a qualquer preço. As amigas portuguesas e não só, poderiam dar disso testemunho pelos registos do Facebook e outras coisas mais. As fotos eram uma postagem infindável e fidelíssima. O seu tempo tinha chegado. A sua hora estava mais do que na hora. Nicole tinha toda uma vida pela frente com o seu amado Eric, que até parecia ser uma boa pessoa.

O amor está envolvido em estranhos sentimentos. Por vezes parece que animais sentem como humanos e humanos como animais. Que coisa estranha!? Talvez eles nos pudessem ensinar e dar lições de amor, se lhes déssemos essa oportunidade!? Quando nos pomos a analisar os sentimentos, se é que isto é possível, descobrimos um oceano desconhecido e indecifrável.

Mas o tempo passou… e um belo dia, talvez um ano depois, talvez nem tanto, no meio de tanta alegria, subitamente, apareceu quem não estava faltando, quem não fazia absolutamente falta. Nicole não queria, não queria mesmo, de tanto que já amava Eric. Mas ela foi mais forte e contra tudo e todos cumpriu a sua missão. O destino por vezes é cruel, tanto para os animais como para o homem!

 Pois é… a morte fez-se presente e levou Eric para sempre.


sexta-feira, 4 de março de 2022

A Comunicação - 100

 

Desde que me entendo por gente, ou seja, muito cedo percebi que comunicar é muito mais do que falar.  Os animais, por exemplo, eles não falam e nem por isso deixam de comunicar. Muito pelo contrário, eles conseguem comunicar-se na perfeição. Se as palavras podem induzir em erro, a comunicação a outro nível não tem erro. Isto é uma coisa fantástica que, infelizmente, continua a ser ignorada pelo ser humano e quando não é ignorada, é-lhe atribuída uma conotação de algo que é extraordinário, que só alguns têm o direito de ter, quando na verdade não é. Todos têm. Só que não usam e não usam porque acham que não têm. Mas essa facilidade que sistematicamente ignoramos está incorporada no nosso ADN. É o mesmo que ter pernas, braços e tudo o mais. Contudo, parece que são poucos os que acreditam nisso, ou melhor, que aceitam. Pois, a questão passa também por aí. Se de facto temos o poder da comunicação, ou os poderes telepáticos, então podemos entrar em sintonia com os outros, como eles connosco, certo?! E então os outros vão saber o que estou a pensar, o que estou a sentir e eu também vou saber o mesmo acerca deles!? Isso é uma grande chatice! Mas as coisas não são bem assim. Para isso acontecer é preciso uma outra coisa. É preciso estar na mesma sintonia, o que normalmente não acontece. Cada um é um universo único e singular, entregue a si mesmo. Só partilhamos quando queremos ou quando precisamos.

Desde criança que eu escutava muito os outros, mesmo quando não estavam a falar comigo. E percebia que às vezes, o que diziam, parecia não encaixar no que estava na cabeça deles. Parecia que diziam uma coisa e por trás do que diziam estava outra. Outras vezes, não falavam, mas parecia que tinham alguma coisa dentro deles, alguma coisa que ficava lá guardada e não saía. Com frequência diziam-me que eu estava sempre no mundo da lua. Só que isso não era verdade. Eu só não ouvia aquilo que não me interessava, de resto estava sempre atenta, como que estudando cada um por si. Mas isso era uma coisa que ninguém via e ninguém prestava atenção. Portanto, a questão da comunicação propriamente dita, foi algo que sempre chamou a minha atenção. Contudo, só muito mais tarde, por volta dos dezassete, dezoito anos, é que me foi confirmado com todas as letras.

Aos dezassete anos deixei Setúbal, onde vivia com a minha avó, e decidi ir para Lisboa, onde viviam os meus tios. Deixei o Liceu e fui trabalhar e continuar a estudar à noite. Achei que estava na hora de ter a minha independência em todos os aspetos e deixar de ser sustentada pelo pai, que era militar e estava em Angola. Durante o dia trabalhava no Ministério das Finanças e à noite tinha aulas num externato. Foi então que a minha vida mudou drasticamente, mas agora para melhor. Ficava para trás tudo o que não fazia falta. Eu precisava de crescer, amadurecer e fortalecer-me emocionalmente. A liberdade começava a dar os primeiros passos. E como era bom! Um mundo novo se abria, dando-me oportunidade de mudar, de evoluir.

Passava a semana inteira em Lisboa e na maioria dos fins de semana ia a Setúbal ver a minha avó e os meus primos, que viviam com ela, onde sempre vivemos todos desde que a minha mãe morreu. E assim os meus horizontes começaram a ampliar-se. Comecei a conhecer gente, tanto no trabalho como à noite no externato. E não eram tão poucos os que, como eu, estudavam à noite, pela necessidade de trabalhar. Foi precisamente no externato que conheci um rapaz da minha idade que, aparentemente igual a todos, tinha uma particularidade. Dava muita importância à espiritualidade, o que combinava comigo. Por isso tínhamos muitas conversas a esse respeito. Foi bom para mim, porque percebi que não estava sozinha. Todos os que estavam à minha volta tinham as suas características. Uns ligavam-se à moda e a tudo o que estava na vanguarda. Outros eram chegados aos namoros e aos flirts e estavam sempre à procura de parceiros e parceiras, nem que fosse para passar tempo. Outros só pensavam em ganhar dinheiro, muito dinheiro, para ter isto e aquilo. Outros ainda, concentravam-se muito na sua vida familiar, sendo que alguns já tinham família formada, os mais velhos.

Aquele rapaz, que era exatamente da minha idade, tinha uma aparência bonita, agradável, gostava de falar e enturmava-se facilmente com todos, mas para além de tudo isso tinha essa tendência de realçar o aspeto espiritual, o que muito me agradava. E não se fechava por isso. Não tinha medo de se expor, o que eu achava extraordinário. Para além disso era um indivíduo normal, como eu. Porque há quem pense que as pessoas que são mais dadas à espiritualidade têm que ser diferentes, mas não têm. Eu sempre fui uma garota muito moderna. Posso dizer com toda a verdade que era a rainha da mini saia e dos hotpants, muito em voga na altura. E apesar de magrinha eu era muito sexy, porque não? E gostava de namoriscar, porque não também? Isso fazia-me muita falta. Era muito importante dar e receber o carinho e a atenção dos outros ou de alguém em especial. Faz parte da vida. Não tem nada de mais. Isso nunca me impediu de ser o ser espiritualizado que sempre fui. Não temos que ser falsos nem pretender ser o que não somos. O mais importante é sermos verdadeiros e fiéis a nós mesmos. Assim era o rapaz que, como eu, vivia intensamente o seu mundo espiritual.

Um dia, estando num pequeno grupo, conversando sobre esses assuntos, ele propôs-me uma experiência a dois. Para mim, porque para os outros não fazia sentido. Era uma sexta-feira à noite. No dia seguinte, sábado, eu iria até Setúbal, como quase todos os fins de semana, para retornar no domingo à tardinha. E a proposta que ele me fazia era entrarmos em sintonia no sábado por volta das onze horas da noite, hora a que ele me enviaria uma mensagem com uma ordem para cumprir. Todos acharam interessante e incrível, pois mais parecia um desafio. Eu aceitei, porque não tinha nada a ganhar nem a perder. Era uma experiência que não tinha consequências de mal para ninguém. Se desse dava, se não desse não dava. E todos ficaram animadíssimos, à espera do resultado da dita experiência.

No dia seguinte lá fui na camioneta para Setúbal, para mais um fim de semana familiar com todas as turbulências inerentes e habituais, a que já estávamos acostumados. Perto das onze horas da noite fui para a cama. Primeiro, porque não tinha o hábito de me deitar tarde, porque sempre precisei muito de dormir. Segundo, porque às onze horas queria estar concentrada, para receber a mensagem que me estava destinada. Assim foi. Às onze horas aí estava eu deitadinha, em silêncio, à espera de receber a ordem. O tempo começou a passar, a passar, mas nada acontecia. Eu continuava deitada, entregue a mim mesma e aos meus pensamentos, tentando afastar tudo para estar disponível para o que viesse. Passaram cinco, dez minutos, quinze minutos e mais alguns minutos e comecei a ficar farta de estar deitada e só me apetecia ir à janela desanuviar. Mas à janela àquela hora para quê? Ali só havia a escuridão própria da noite e nada mais. Raramente passava vivalma. Virava-me para um lado e para o outro, tentando adivinhar qual seria a ordem, mas nada. A única coisa que me apetecia era ir à janela e esquecer-me daquelas parvoíces. Volta para a direita, volta para a esquerda e decidi que o melhor seria dormir, pois já estava a ficar tarde. Então, exatamente para conseguir dormir, decidi esquecer a tal da mensagem com a ordem e resolvi ir mesmo à janela respirar, para logo me deitar e definitivamente dormir. Sem pensar mais no assunto foi o que fiz, quando já passava das onze e meia.

Estive uns cinco minutos, porque afinal estava-se bem a apreciar a noite. Uma noite de verão, com uma temperatura agradável, uma noite calma e tranquila, que me deixou muito bem disposta. Posto isto, fui para a cama e dormi. O fim de semana na reta final, lá fui de volta na camioneta para Lisboa, para segunda-feira começar mais uma semana. Só que eu não estava muito satisfeita comigo, por não ter recebido a mensagem. Eu achava que tinha que adivinhar e o erro foi só esse. Mas naquela altura estava convencida disso e, portanto, para mim, tinha falhado redondamente, o que me estava a incomodar. Ia ser difícil encarar o grupo e sobretudo o meu amigo. Era um falhanço completo, mas não tinha como dar a volta ao assunto. A verdade era só uma. O que poderia eu inventar? Nem ia querer uma coisa dessas. Ou era ou não era.

Portanto, a semana não começou nada bem. Fui trabalhar e até pensei em faltar às aulas à noite. Mas isso era cobardia da minha parte. Isso eu não podia fazer, o que só aumentaria o meu mal estar. Por isso, na hora certa, lá fui eu às aulas. Foi complicado, mas fui. Para meu grande alívio, o grupo estava disperso, o que me fez pensar que talvez já ninguém se lembrasse daquilo. Contudo, no primeiro intervalo, o meu amigo estava à minha espera. Fiquei tão atrapalhada que nem conseguia falar e cumprimentá-lo. Mas ele adiantou-se e depois de me cumprimentar apressou-se a perguntar “então, fizeste o que te mandei?”… E a minha resposta que tardava em sair, só podia ser não, não consegui saber o que era, sendo que nesta altura eu estava completamente de rastos pelo fracasso da experiência, pela minha grande decepção, por tudo e por tanta coisa… e pelo tempo que demorei para responder, ele apressou-se a continuar “foste à janela ver a noite como te mandei ir”?

 


sábado, 19 de fevereiro de 2022

Encontro - 99

 

Todas as noites na hora de me deitar para dormir, sinto um fardo pesado em cima de mim, que não tem que ver propriamente com o dia ter sido bom ou mau, mas por todo o tempo que durou e por tudo o que passou por ele. Talvez pela intensidade com que vivo todos os momentos, que é como se um dia fosse muito mais do que as quinze horas habituais da minha jornada diária.

E enquanto estou a tirar a roupa para me deitar, tenho a sensação de que com ela algo mais se está a ir de vez. De repente, passa o filme pela minha memória, um filme rápido, mas onde está tudo pormenorizado e gravado, sem a mais pequena possibilidade de alteração. Penso sempre que já passou e que foi mais um, e cada um que passa é mais um que já não volta. Não há retrocesso para isso.

Quando finalmente deito a cabeça na almofada, passa na minha cabeça mais uma página do livro da minha vida, para dar lugar a outra, a seguinte - porque também não é possível saltar -, que vem em branco, pelo menos na minha consciência, para ser preenchida no dia que se segue, desde o abrir dos olhos até novamente os fechar para voltar a adormecer. E essas páginas têm uma carga enorme, porque são as páginas dos nossos registos akáshicos, devidamente elaboradas e trabalhadas pelo cosmos, onde apenas lhes damos a nossa vida, o que não é pouco.

Entre essas duas páginas, a que passou e a que vem a seguir, escolho sempre a que vem em branco. Porque é a que representa o futuro e porque é aquela que ainda não tem peso, sendo por isso, a mais leve, a que me ajuda a ir ao encontro do sonho. Porque é a que vai abrir o meu próximo dia, o dia seguinte, aquele em que as portas se podem sempre abrir para uma nova paisagem ou um novo cenário, uma boa decisão ou uma boa escolha. Um caminho diferente, mais construtivo, mais edificante e em que sempre nos podemos tornar melhores, maiores e assumir novas oportunidades, que nunca deveriam ser desaproveitadas.

E com esses pensamentos começo a aliviar a minha carga do dia que passou. É como se a minha pele, aquela pele, estivesse a sair para dar lugar a uma nova. Começo a soltar-me, a desprender-me do já passado, para poder dar lugar ao que vem, ao que se segue, porque a vida é, ou deveria ser, sempre para a frente e nunca para trás.

A nossa vinda a este mundo é exatamente uma enorme oportunidade da mudança para melhor e nunca para pior. Infelizmente, a verdade é que alguns de nós fazem o percurso inverso, o que é lastimável. Mas também, se o fazem, é porque é necessário. Contudo, dependendo do nosso ajuste espiritual, podemos sempre dar o salto quântico, tomar consciência e alterar esse padrão. E então, já terá valido muito a pena.

Mas a hora de adormecer é sempre uma hora de introversão. Uns fazem orações, preces, outros simplesmente interiorizam, fazendo um exame de consciência, projetando-se nos acontecimentos que passaram… enfim. Eu prefiro, sem dúvida, deixar ir o que foi e focar-me no que está por vir, no que vai ser ou não, sem tentar adivinhar, para não correr o risco de errar, mas desejar que o amanhã me traga seja o que for, diferente, único, o que tiver que ser, para o qual, nesse preciso momento, me comprometo comigo mesma a enfrentar da melhor maneira possível, com a bênção e a ajuda do universo, que tudo e todos rege.

E um dia, na hora de me deitar, no meio destes pensamentos, lembrei-me que tinha tido um acontecimento um pouco estranho. Estava sentada no sofá, durante a tarde, a fazer qualquer coisa que não me lembro o que era e ao mesmo tempo com a televisão ligada. De repente, senti algo que vinha do meu lado esquerdo, do fundo da sala, para onde o meu olhar foi imediatamente atraído. Senti então a presença de uma energia, mas uma energia que eu não conseguia identificar. Até pensei que era impressão minha. Mas não, não era. Ali havia alguma coisa. Uma energia envolta num vulto escuro e completamente esfumada. Contudo, ainda que sem identificação, eu conseguia perceber que se tratava de uma energia masculina. Porém, não conseguia reconhecer, nem perceber o que queria e o que estava ali a fazer.

Prossegui com os meus afazeres, mergulhada nos pensamentos em que estava. E naquele dia quando me deitei, logo me veio à ideia aquele acontecimento inusitado, porque eu não via ligação daquilo com nada da minha vida. A coisa parecia que não encaixava. Foi o que mais uma vez pensei, mas ao mesmo tempo, não descartando a hipótese de haver algo de mais concreto por de trás daquilo. Nada feito, porque continuava sem resposta. E adormeci, esquecendo de vez aquele incidente.

No outro dia ao acordar, já não me lembrava daquele assunto e na verdade o dia foi decorrendo normalmente, sem pensar naquilo, até que ao final da tarde, uma colega e amiga da universidade sénior me telefonou, como muitas vezes o faz, falando de projetos e de decisões a tomar sobre a universidade. Estivemos cerca de uma hora a trocar informação e já no final do telefonema, surgiu uma novidade sobre uma outra colega, que veio esclarecer tudo. Essa outra colega era a Fátima.

A Fátima foi alguém com quem, desde o início, tive uma ligação muito forte e muito boa. Desde o primeiro dia percebi que sentimos uma pela outra uma verdadeira simpatia. E logo no primeiro convívio que tivemos, o almoço de natal, ela fez questão de me apresentar ao marido, como uma amiga muito especial, o que muito me lisonjeou. O marido levantou-se e cumprimentou-me com um simpático aperto de mão e um sorriso que lhe era muito peculiar, mas que eu só com a continuação o perceberia. E aquele casal eram umas pessoas com quem sempre mantive um excelente e especial relacionamento, pelo carinho que sempre me dispensavam.

A Fátima frequentava as aulas, já o marido era só sócio, mas acompanhava a mulher em todos os eventos, por isso era conhecido de todos. E sempre que ela estava sozinha eu fazia questão de perguntar por ele, que para a idade que tinha, estava muito bem conservado, o que não é muito comum nos homens que, em geral, envelhecem mais cedo que as mulheres. E eu falava muito com os dois. Dava-lhes sempre uma especial atenção, porque eles mereciam e faziam por isso, sendo também especialmente carinhosos comigo. E quem não gosta disso?

Um dia a Fátima adoeceu. Foi diagnosticada com cancro na mama. Todos gostávamos muito dela, até hoje, pelo que todos lastimámos o acontecido. Tanto assim, que nas minhas aulas de Meditação lhe dedicámos um tempo, canalizando e enviando energia positiva com todo o nosso amor. Nesse dia tivemos notícias ótimas. Tinha sido operada e a cirurgia tinha corrido muito bem.

A Fátima continuou com o seu processo de recuperação e sempre a evoluir de modo muito positivo, para grande satisfação de todos à sua volta que muito a estimam, por ela ser a pessoa especial que é, de facto.

Sempre que nos encontrávamos eles eram uns queridos. E o marido, apesar de discreto e sem muita intimidade comigo, sempre me falou muito bem, dando para perceber que não era indiferente, pelo menos comigo, pela maneira como falava e até do que falava.

Lembro-me de um dia, em que a Fátima e eu estávamos em conversa, porque ela é uma pessoa com quem é possível desenvolver um assunto. Sabe do que fala, é sensata, tem uma opinião formada e um pensamento claro. Não é dramática, pelo contrário, é uma pessoa muito positiva e com experiência da vida. E quando acabámos o que estávamos a falar, mais uma vez lhe perguntei pelo Agostinho, que já não o via há algum tempo e estava com saudades de o ver. A Fátima sorrindo, agradeceu o cuidado e em resposta afirmou que o marido também gostava muito de mim e tinha um grande carinho pela minha pessoa.

Achei surpreendente, mas nem por um instante duvidei do que ela acabava de dizer, porque isso não faz o género dela. Definitivamente, não é pessoa para estar a ser agradável só para agradar aos outros. Nem havia porque fazê-lo, mas esse não é o seu género.

Voltando atrás, estava eu no final de conversa, ao telefone com a minha outra colega, quando de repente ela se lembrou de me dar uma notícia desagradável. Sabes quem morreu, dizia ela. Não faço ideia, respondi. O marido da Fátima. O marido da Fátima(?!)…

Sim, continuava ela, foi ontem, às não sei quantas horas (já não me lembro). Fui completamente surpreendida com tal notícia, pois não estava nada à espera e acho que ninguém estava, mas foi aí que de repente voltei algumas horas atrás no tempo e imediatamente me lembrei da visita que tinha tido no dia anterior durante a tarde, quando surgiu uma entidade que não reconheci.

Ao pensar nele, senti exatamente a mesma sensação, ou seja, a mesma energia, que não identifiquei na altura porque, apesar de tudo, nós não tínhamos intimidade nem convivência suficiente para que eu o pudesse ter reconhecido. E, se algumas pessoas fazem a sua passagem de uma forma, outras fazem de outra, dependendo única e exclusivamente de si mesmos. Tem que ver com o seu estado evolutivo ou vibracional. Não quero dizer que ele não fosse uma pessoa espiritualmente evoluída, não é nada disso. Mas, digamos que, para haver uma identificação, as portas têm que estar abertas de ambos os lados e provavelmente não era esse o caso. Além disso, o facto de ele ser uma pessoa muito discreta, só isso, já pode justificar não se ter deixado identificar por mim.

Não deixou de ser relevante, porque a presença da sua energia tal qual ela se apresentava, era a prova do que ela um dia me tinha dito: que o marido gostava muito de mim. E estes acontecimentos são sempre dignos de registo, porque eles revelam o mundo para além da matéria e confirmam a sua poderosa existência. Ele veio anunciar a sua partida para uma outra esfera, a sua partida definitiva para outra dimensão, querendo ser ele mesmo a dar-me conhecimento disso. E ele sabia que eu era recetiva, embora não o tivesse reconhecido. Talvez se me tivesse debruçado um pouco mais sobre o assunto e tivesse levado mais a sério, talvez o tivesse reconhecido. Mas eu nem sabia que ele estava doente, por isso mesmo estava longe de imaginar tal coisa.

Independentemente disso, agradeço sempre esse especial encontro de almas, que mesmo em planos diferentes se conseguem comunicar, o que considero uma coisa extraordinária e que nem por isso deixa de ser um encontro.