Desde que me entendo por gente, ou seja, muito cedo percebi que comunicar é muito mais do que falar. Os animais, por exemplo, eles não falam e nem por isso deixam de comunicar. Muito pelo contrário, eles conseguem comunicar-se na perfeição. Se as palavras podem induzir em erro, a comunicação a outro nível não tem erro. Isto é uma coisa fantástica que, infelizmente, continua a ser ignorada pelo ser humano e quando não é ignorada, é-lhe atribuída uma conotação de algo que é extraordinário, que só alguns têm o direito de ter, quando na verdade não é. Todos têm. Só que não usam e não usam porque acham que não têm. Mas essa facilidade que sistematicamente ignoramos está incorporada no nosso ADN. É o mesmo que ter pernas, braços e tudo o mais. Contudo, parece que são poucos os que acreditam nisso, ou melhor, que aceitam. Pois, a questão passa também por aí. Se de facto temos o poder da comunicação, ou os poderes telepáticos, então podemos entrar em sintonia com os outros, como eles connosco, certo?! E então os outros vão saber o que estou a pensar, o que estou a sentir e eu também vou saber o mesmo acerca deles!? Isso é uma grande chatice! Mas as coisas não são bem assim. Para isso acontecer é preciso uma outra coisa. É preciso estar na mesma sintonia, o que normalmente não acontece. Cada um é um universo único e singular, entregue a si mesmo. Só partilhamos quando queremos ou quando precisamos.
Desde
criança que eu escutava muito os outros, mesmo quando não estavam a falar
comigo. E percebia que às vezes, o que diziam, parecia não encaixar no que
estava na cabeça deles. Parecia que diziam uma coisa e por trás do que diziam
estava outra. Outras vezes, não falavam, mas parecia que tinham alguma coisa
dentro deles, alguma coisa que ficava lá guardada e não saía. Com frequência
diziam-me que eu estava sempre no mundo da lua. Só que isso não era verdade. Eu
só não ouvia aquilo que não me interessava, de resto estava sempre atenta, como
que estudando cada um por si. Mas isso era uma coisa que ninguém via e ninguém
prestava atenção. Portanto, a questão da comunicação propriamente dita, foi
algo que sempre chamou a minha atenção. Contudo, só muito mais tarde, por volta
dos dezassete, dezoito anos, é que me foi confirmado com todas as letras.
Aos
dezassete anos deixei Setúbal, onde vivia com a minha avó, e decidi ir para
Lisboa, onde viviam os meus tios. Deixei o Liceu e fui trabalhar e continuar a
estudar à noite. Achei que estava na hora de ter a minha independência em todos
os aspetos e deixar de ser sustentada pelo pai, que era militar e estava em
Angola. Durante o dia trabalhava no Ministério das Finanças e à noite tinha
aulas num externato. Foi então que a minha vida mudou drasticamente, mas agora
para melhor. Ficava para trás tudo o que não fazia falta. Eu precisava de
crescer, amadurecer e fortalecer-me emocionalmente. A liberdade começava a dar
os primeiros passos. E como era bom! Um mundo novo se abria, dando-me
oportunidade de mudar, de evoluir.
Passava
a semana inteira em Lisboa e na maioria dos fins de semana ia a Setúbal ver a
minha avó e os meus primos, que viviam com ela, onde sempre vivemos todos desde
que a minha mãe morreu. E assim os meus horizontes começaram a ampliar-se.
Comecei a conhecer gente, tanto no trabalho como à noite no externato. E não
eram tão poucos os que, como eu, estudavam à noite, pela necessidade de
trabalhar. Foi precisamente no externato que conheci um rapaz da minha idade
que, aparentemente igual a todos, tinha uma particularidade. Dava muita
importância à espiritualidade, o que combinava comigo. Por isso tínhamos muitas
conversas a esse respeito. Foi bom para mim, porque percebi que não estava
sozinha. Todos os que estavam à minha volta tinham as suas características. Uns
ligavam-se à moda e a tudo o que estava na vanguarda. Outros eram chegados aos
namoros e aos flirts e estavam sempre à procura de parceiros e parceiras, nem
que fosse para passar tempo. Outros só pensavam em ganhar dinheiro, muito
dinheiro, para ter isto e aquilo. Outros ainda, concentravam-se muito na sua
vida familiar, sendo que alguns já tinham família formada, os mais velhos.
Aquele
rapaz, que era exatamente da minha idade, tinha uma aparência bonita,
agradável, gostava de falar e enturmava-se facilmente com todos, mas para além
de tudo isso tinha essa tendência de realçar o aspeto espiritual, o que muito
me agradava. E não se fechava por isso. Não tinha medo de se expor, o que eu
achava extraordinário. Para além disso era um indivíduo normal, como eu. Porque
há quem pense que as pessoas que são mais dadas à espiritualidade têm que ser
diferentes, mas não têm. Eu sempre fui uma garota muito moderna. Posso dizer
com toda a verdade que era a rainha da mini saia e dos hotpants, muito em voga
na altura. E apesar de magrinha eu era muito sexy, porque não? E gostava de
namoriscar, porque não também? Isso fazia-me muita falta. Era muito importante
dar e receber o carinho e a atenção dos outros ou de alguém em especial. Faz
parte da vida. Não tem nada de mais. Isso nunca me impediu de ser o ser
espiritualizado que sempre fui. Não temos que ser falsos nem pretender ser o
que não somos. O mais importante é sermos verdadeiros e fiéis a nós mesmos. Assim
era o rapaz que, como eu, vivia intensamente o seu mundo espiritual.
Um
dia, estando num pequeno grupo, conversando sobre esses assuntos, ele propôs-me
uma experiência a dois. Para mim, porque para os outros não fazia sentido. Era
uma sexta-feira à noite. No dia seguinte, sábado, eu iria até Setúbal, como
quase todos os fins de semana, para retornar no domingo à tardinha. E a
proposta que ele me fazia era entrarmos em sintonia no sábado por volta das
onze horas da noite, hora a que ele me enviaria uma mensagem com uma ordem para
cumprir. Todos acharam interessante e incrível, pois mais parecia um desafio.
Eu aceitei, porque não tinha nada a ganhar nem a perder. Era uma experiência
que não tinha consequências de mal para ninguém. Se desse dava, se não desse
não dava. E todos ficaram animadíssimos, à espera do resultado da dita
experiência.
No
dia seguinte lá fui na camioneta para Setúbal, para mais um fim de semana
familiar com todas as turbulências inerentes e habituais, a que já estávamos
acostumados. Perto das onze horas da noite fui para a cama. Primeiro, porque
não tinha o hábito de me deitar tarde, porque sempre precisei muito de dormir.
Segundo, porque às onze horas queria estar concentrada, para receber a mensagem
que me estava destinada. Assim foi. Às onze horas aí estava eu deitadinha, em
silêncio, à espera de receber a ordem. O tempo começou a passar, a passar, mas
nada acontecia. Eu continuava deitada, entregue a mim mesma e aos meus
pensamentos, tentando afastar tudo para estar disponível para o que viesse.
Passaram cinco, dez minutos, quinze minutos e mais alguns minutos e comecei a
ficar farta de estar deitada e só me apetecia ir à janela desanuviar. Mas à
janela àquela hora para quê? Ali só havia a escuridão própria da noite e nada
mais. Raramente passava vivalma. Virava-me para um lado e para o outro, tentando
adivinhar qual seria a ordem, mas nada. A única coisa que me apetecia era ir à
janela e esquecer-me daquelas parvoíces. Volta para a direita, volta para a
esquerda e decidi que o melhor seria dormir, pois já estava a ficar tarde.
Então, exatamente para conseguir dormir, decidi esquecer a tal da mensagem com
a ordem e resolvi ir mesmo à janela respirar, para logo me deitar e
definitivamente dormir. Sem pensar mais no assunto foi o que fiz, quando já
passava das onze e meia.
Estive
uns cinco minutos, porque afinal estava-se bem a apreciar a noite. Uma noite de
verão, com uma temperatura agradável, uma noite calma e tranquila, que me
deixou muito bem disposta. Posto isto, fui para a cama e dormi. O fim de semana
na reta final, lá fui de volta na camioneta para Lisboa, para segunda-feira
começar mais uma semana. Só que eu não estava muito satisfeita comigo, por não
ter recebido a mensagem. Eu achava que tinha que adivinhar e o erro foi só
esse. Mas naquela altura estava convencida disso e, portanto, para mim, tinha
falhado redondamente, o que me estava a incomodar. Ia ser difícil encarar o
grupo e sobretudo o meu amigo. Era um falhanço completo, mas não tinha como dar
a volta ao assunto. A verdade era só uma. O que poderia eu inventar? Nem ia
querer uma coisa dessas. Ou era ou não era.
Portanto,
a semana não começou nada bem. Fui trabalhar e até pensei em faltar às aulas à
noite. Mas isso era cobardia da minha parte. Isso eu não podia fazer, o que só
aumentaria o meu mal estar. Por isso, na hora certa, lá fui eu às aulas. Foi
complicado, mas fui. Para meu grande alívio, o grupo estava disperso, o que me fez
pensar que talvez já ninguém se lembrasse daquilo. Contudo, no primeiro
intervalo, o meu amigo estava à minha espera. Fiquei tão atrapalhada que nem
conseguia falar e cumprimentá-lo. Mas ele adiantou-se e depois de me
cumprimentar apressou-se a perguntar “então, fizeste o que te mandei?”… E a
minha resposta que tardava em sair, só podia ser não, não consegui saber o que
era, sendo que nesta altura eu estava completamente de rastos pelo fracasso da
experiência, pela minha grande decepção, por tudo e por tanta coisa… e pelo
tempo que demorei para responder, ele apressou-se a continuar “foste à janela
ver a noite como te mandei ir”?
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