Eram umas onze horas da manhã e eu estava bem tranquila, parada no
semáforo bem pertinho de casa, porque o sinal estava vermelho.
Quando comecei a subir a rua ainda estava verde, mas resolvi
abrandar a marcha porque calculei que não ia chegar lá a cima ainda no verde. E
foi o que de facto aconteceu.
Naquela zona, com quatro escolas nas imediações e passadeiras
necessárias, não é exactamente o lugar certo para acelerar. E enquanto estava
parada, concentrada na luz vermelha à espera que passasse a verde, vejo pelo
rectrovisor um smart branco, que vindo da estrada nacional, entra na Luis de
Camões, a rua em que eu estava, começando a subir. Exactamente o mesmo percurso
que eu tinha feito. A questão é que, assim que o smart surgiu lá ao fundo, no
início da rua e que eu apenas vi de relance pelo espelho, imediatamente me
passou pela cabeça isto: “ele não vai parar no semáforo”.
Mas logo dei por mim a reagir àquele pensamento, justificando-me
comigo mesma. Porque não haveria de parar? Era disparate. Claro que ia parar.
Até porque, entretanto, o sinal já poderia estar aberto, mas não havia motivo
algum para pensar que ele não iria parar. Não era pelo andamento, porque vinha
a uma velocidade perfeitamente normal. Então porque haveria de ser? E continuando
à procura de justificativas para não dar como certo aquele pensamento que me
havia ocorrido, foquei a atenção novamente no sinal vermelho.
É claro que tudo isto se passou em fracções de segundo. E focada
no sinal decidi esquecer o smart e a questão de ele passar ou não. Se ele
passasse era complicado. Havia um semáforo à direita e outro à esquerda, na
perpendicular à rua onde estávamos. E naquele sinal só estava eu, pelo que ele
haveria de posicionar-se atrás de mim. Continuei a olhar para a luz vermelha e
esqueci o smart. Era estupidez minha. Claro que ia parar. Mas porque razão
aquele pensamento me tinha ocorrido assim que o vi? A isso não sabia responder.
Nos quatro anos que vivi nos Açores, em S. Miguel, aconteceram-me cenas
incríveis. Foi nos Açores que tirei a carta de condução, há cerca de quarenta
anos atrás. Mas não aprendi a conduzir em nenhuma escola de condução. A minha
escola foram os pilotos de rally. O meu marido, entre outras coisas, na altura
era rádio amador e os rádio amadores juntavam-se para fazer a cobertura das
competições. No final das provas fazíamos grandes farras, todos juntos e isso
promovia a nossa amizade e a nossa intimidade como grupo. Então, era frequente
sairmos nos carros dos pilotos e eles convidarem-nos para conduzir,
aproveitando para nos dar dicas que faziam uma grande diferença na condução.
Isto era frequente. Bem antes das provas, lá apareciam os pilotos para testar
os carros, os caminhos e tantas outras coisas que estavam em jogo. Mas havia
sempre a oportunidade para pormos as mãos nos volantes dos carros deles, em
ameno passeio e era uma sensação e tanto. E assim aprendemos a conduzir.
O inusitado da coisa é que, não raras vezes eu advertia para o
facto de que adiante encontraríamos polícia de trânsito e se fôssemos
apanhados a conduzir sem carta era complicado. Eu nem queria pensar. Portanto,
o meu alerta era sagrado e assumidíssimo por todos. No início, o pessoal achava
aquilo estranho, como é natural. Até eu achava estranho! Como é que ela sabe que
vai aparecer polícia se a estrada está livre, sem o menor sinal deles? O facto
é que, mal eu recebia esta mensagem ou este pensamento, imediatamente parávamos
para fazer a troca e pôr no volante alguém com carta. E um pouco à frente, na
verdade, a polícia aparecia.
Era coincidência? Não, não era coincidência porque, do mesmo modo
que eu alertava para a ameaça de polícia, também sabia quando não havia perigo
algum. E às vezes, na brincadeira, quando queriam fazer graça com o assunto,
perguntando se ia haver polícia, eu respondia com toda a clareza que não, que
estava tudo calmo e sereno. Com efeito.
Eu apenas seguia a minha intuição. Mas não é só isso, é um pouco
mais do que isso. Eu era absolutamente fiel à minha intuição e por isso ela se
activava e se mantinha alerta, caso contrário falharia, como falha tudo aquilo
que não é usado e que não responde, porque não tem utilidade. Não houve uma
única vez que eu não reagisse, quando a minha voz interior se fazia ouvir. E só
por isso ela nunca me deixou ficar mal.
Mais tarde, quando estava em plenas funções do meu papel de mãe e
o meu filho ainda pequeno me perguntava se podia ir para a rua brincar, eu
ouvia a mim própria antes de tomar uma decisão. E às vezes dizia-lhe que
esperasse um pouco, só um pouco. E ele esperava até que eu dissesse que podia
ir, sem qualquer reserva, porque sabia que as minhas decisões tinham a sua
razão de ser. Alguma coisa não ia dar certo quando lhe dizia para esperar um
pouco. Alguma criança dava uma queda, uma briga se desencadeava, e ele nunca
contestava porque sabia que a minha única preocupação era sempre a segurança
dele.
Há alturas em que ando mais desligada, é verdade, mas nunca
completamente cortada do cordão umbilical do eu mais profundo, que sabe
verdades que nós próprios desconhecemos.
E aí estava eu focada na luz vermelha do sinal, divagando sabe-se lá por onde e esperando que passasse a verde, já esquecida do smart branco que tinha avistado lá atrás, quando de repente, ainda com o sinal bem vermelho, apercebo-me de um carro que me ultrapassa, passando o traço contínuo e entrando na contramão vira à direita, como se fosse a coisa mais natural do mundo, trazendo-me de volta à circunstância, perplexa e sem entender – o smart branco, conduzido por um indivíduo que mal deu para ver, tinha cumprido a sua mensagem, isto é, deliberadamente, passou, impecável, sem parar no semáforo.