segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Mári - 60



Mári é uma jovem Guineense de trinta e um anos, que está em Portugal há quatro. Viveu dois anos no Porto e agora está em Lisboa. 

Quando veio do Porto para Lisboa ficou provisoriamente em casa de uma irmã, mas logo providenciou a sua independência e encontrou um apartamento para alugar, nada mais, nada menos, no prédio onde vivo. 

Quando a vi pela primeira vez, na porta de entrada, percebi que estava de mudança. Depois, surpresa das surpresas, era precisamente para o meu patamar, um apartamento que estava constantemente a mudar de inquilinos, para onde só iam Africanos e Brasileiros, que depois não podiam pagar a renda e tinham que sair. 

Mas, como ia dizendo, quando a vi e percebi que ia para o meu andar, pensei “pelo menos agora vamos ter sossego durante algum tempo”. É que vi nela coisas que me fizeram acreditar nisso. Tinha bom aspecto, um ar diligente, enérgico e ao mesmo tempo calma, tranquila… segura, é esse o termo certo. E gostei. Achei-a decidida e gosto de gente assim. Senti imediatamente uma forte empatia com ela e a verdade, também, é que logo o destino se encarregou de armar situações que nos puseram lado a lado, frente a frente. 

Eu sabia que a última família que tinha estado na casa para onde ela ia, tinha levado tudo o que lhe pertencia e o que não lhe pertencia, de modo que, a pobre da Mári, que devia ter alugado um apartamento minimamente mobilado, não tinha nada, absolutamente nada. 

O prédio tem seis apartamentos por andar e no meu andar, damo-nos todos excepcionalmente bem, como uma verdadeira família. Assim, logo nos reunimos e acolhemos a mais recente vizinha, da melhor maneira possível, incluindo-a desde logo na nossa pequena “comunidade”. Todos gostaram muito dela e logo se disponibilizaram para a ajudar. 

Então, aproveitámos que uma vizinha estava em obras e sabendo que ia mudar os móveis, pedimos-lhe para os deixar para a Mári. Mais uma amiga, mais uma ajuda. Agora já havia mesa, cadeiras e um enorme móvel de parede, um misto de estante e louceiro, tudo em madeira. Eu tinha um divã que não usava, lá foi ele para a Mári, cheio de almofadas, umas maiores, outras mais pequenas, que bem que ele ficou. 

Depois, fomos todas aos nossos armários da cozinha e da sala e lá veio louça, tachos de cozinha, panelas, copos, pratos e tudo o mais. A casa que, inicialmente estava vazia, compunha-se com uma rapidez excepcional e com uma vantagem: aquilo não era da casa, era tudo dela. E por cada novidade que aparecia, lá íamos todas ver como ficava e era uma festa. 

Cortinados, que deram logo um ar acolhedor; umas plantas, que deram vida à sala e até livros para a estante apareceram. Realmente, quando queremos ser solidários, acontecem milagres. E no ar pairava um não sei quê de festa, de alegria por toda aquela partilha. Muito bom! Muito bom, mesmo. 

Por ser verão, começámos a ir à praia e lá chamávamos a Mári para ir connosco, até porque ela, coitada, não conhecia nada de Lisboa. Passeio aqui, passeio ali, a Mári lá se foi familiarizando com tudo e com todos. Estava deliciada com a recepção que tinha tido. Achava que aquilo não existia. Mas existiu e existe. 

Enfim, o tempo foi passando e a vida acontecendo. 

A Mári tinha muitos irmãos e irmãs. Como uma boa Guineense, não fugia à regra. O pai já tinha falecido e a mãe era uma senhora dos seus setenta e muitos anos e a Mári era a segunda mais nova. Depois dela, só havia um rapaz. A Mári tinha uma filha de dez anos, que tinha ficado aos cuidados da mãe, na Guiné-Bissau. A menina adorava a avó, mas é claro que queria vir para perto da mãe, com quem falava frequentemente. 

Um dia, de manhã muito cedo, a Mári ligou-me pelo telemóvel, a chorar, que queria vir ter comigo. A mãe tinha falecido. A Mári estava muito, muito triste e preocupadíssima, por causa da filha. Tinha lá irmãos e irmãs, mas a menina estava muito habituada à avó, com quem vivia. Bom, perante esta situação a Mári foi à Guiné para estar com a família e porque a filha precisava dela mais do que nunca. 

Resolvido que foi tudo por lá, regressou a Portugal, à sua nova vida. A menina ficou, agora por conta de uma das irmãs que também tinha uma filha da mesma idade. Menos mal. Mas a Mári sempre prometia à filha que tudo faria para a trazer para Portugal e ficar definitivamente com ela, o que era mais do que justo, mas muito complicado. 

E o tempo foi passando e as coisas normalizando. 

Um dia, eu estava em casa, sozinha, sentada no sofá da sala, vendo qualquer coisa na TV e de repente a minha atenção é atraída para a porta da rua. Olhei e vi um vulto negro, escuro, sem luz alguma. “Que estranho”! – pensei. E logo se foi. Soube de imediato que aquela energia era a falecida mãe da Mári. Claro que não era ela em pessoa, porque simplesmente já não estava neste mundo, mas era o seu espectro, por assim dizer. Não tinha dúvida nenhuma, só não conseguia entender porque estava ela ali. Comecei a tentar descodificar e ela estava colada à porta, de lado, vestida de negro e o rosto escondido pelo lenço da cabeça, porque era muçulmana. 

Levantei-me, dei umas voltas, sempre pensando no que aquilo poderia querer dizer, mas não sabia. Não tinha nenhuma luz. Alguma coisa ela queria, o quê, eu não imaginava. Ela estava envolta no escuro, mas isso não era de estranhar. Tinha falecido recentemente, portanto, ainda não havia luz, quero dizer, ainda estava muito ligada à matéria, ao mundo físico. Bom, não havia nada que eu pudesse fazer. Assunto encerrado e desliguei-me daquilo. 

Umas duas horas depois, a campainha da porta tocou. Fui abrir, era a Mári. De repente, lembrei-me do que tinha acontecido, mas não falei nada. Nem todas as pessoas entendem e eu não sabia qual seria a reacção dela e não a queria assustar, porque não havia necessidade. A Mári entrou, esteve um pouco comigo, disse que estava com saudades minhas, falou um pouco das coisas dela, do trabalho, da filha e aparentemente, tudo estava bem. Isto era o que ela dizia, mas alguma coisa parecia ficar por dizer - foi a sensação com que fiquei. Ela sabia que podia falar comigo tudo o que fosse preciso. Sabia que podia contar comigo, como eu com ela, por isso, não forcei nada. Quando ela entendesse, falaria. Ou também podia ser impressão minha. E até a história da mãe ali, podia ter sido da minha cabeça. Nada era dado como certo.  

Os dias passaram normalmente, com o trabalho, os afazeres de cada uma, a rotina, os convívios, mas a Mári começou a ser diferente. A sua alegria natural e expontânea começou a esbater-se, a esfumar-se a olhos vistos e todas percebíamos isso. Era como se fizesse um esforço para estar connosco, para nos agradar, para nos ser reconhecida e grata pela maneira como a tínhamos recebido e ajudado. Mas ela não precisava nada disso, era isso que eu pensava. Ela já sabia que o tínhamos feito de alma e coração e era evidente que nada queríamos em troca, apenas e somente, que ela se sentisse muito feliz. Mas alguma coisa atormentava a minha amiguinha, embora ela tentasse esconder o melhor que podia. 

Uma tarde, estando eu a descansar no sofá, novamente senti a presença de alguém e a mesma necessidade de olhar na direcção da porta da rua e lá estava ela, a falecida mãe da Mári, exactamente da mesma maneira. A mesma energia. Eu sabia que era ela. Não que alguma vez tivesse visto uma só foto e mesmo que tivesse visto, não era por aí, porque a figura não apresentava sequer o rosto, que estava de costas, mas é que a alma sabe disso, a alma sabe reconhecer aquilo que nunca os olhos viram. Era ela. Virada para a porta, como se quisesse entrar, mas se sentisse acanhada, receosa, vestida de negro, com o lenço e na maior escuridão. Tudo igual. “Que estranho(!)”, pensava eu. Mas continuava a não ter a menor ideia do que ela poderia querer de mim. O que se estaria a passar?! 

Uma coisa era certa, se aparecia era porque alguma coisa queria. Alguma coisa muito importante. Só um motivo muito forte pode levar uma entidade desencarnada a baixar de novo à terra, materializando a sua energia, porque isso é atrasar a sua sua ascenção aos mundos da luz e nenhum ser quer isso para si. Não é o percurso correcto nem desejado. 

No dia seguinte a Mári liga-me, porque já tinha ido a minha casa no dia anterior e não me tinha encontrado, o que era perfeitamente natural. Liga-me e diz-me que precisa de ter uma conversa comigo. Ah! – pensei – aquilo que anda escondido, mas que não quer, não pode mais calar. Disse-lhe que estaria em casa logo após o almoço, portanto, que aparecesse. 

Às duas e meia da tarde, a Mári apareceu. Bateu à porta, abri e ela entrou. E mais uma vez me calei em relação ao aparecimento da mãe. Com o seu ar aparentemente sereno, sentou-se olhando para mim com um sorriso que era só por fora, que não vinha de dentro, sendo evidente que parecia ser um caso de vida ou de morte. Aí, comecei a ficar pouco à vontade. O que seria? Precisaria de dinheiro? Não me parecia que fosse isso e os problemas graves das pessoas não passam por ser só de dinheiro!... Mas era uma hipótese. Seria alguma coisa com o namorado? Bom, com trinta e um anos e já no terceiro casamento, já devia saber resolver os problemas dela!? Já não sabia o que pensar, mas que estava a ficar ansiosa, estava. Então, a Mári toda constrangida e agoniada, muito receosa, com a voz quase a tremer, começou a falar. 

Posso dizer que, logo que ela começou a falar, me desdobrei em duas dimensões: a real e a não menos real, mas… a outra. Uma, que via e sentia o sofrimento daquela jovem mulher, que só Deus sabe o quanto estava a custar-lhe tudo aquilo, que não era pouca coisa, não, e na verdade, era de uma responsabilidade de todo o tamanho e que ela não tinha mais a quem pedir senão a mim, porque não tinha meios para resolver por si mesma. Impossível. E a outra dimensão, aquela que nunca sei onde é, onde fica... 

Mas eu só a ouvia, dando-lhe espaço para falar, para se justificar e aliviar a carga que trazia, para a fazer desabafar e descontrair, mas que em nada resolvia e nem pensar interrompê-la para ser eu a falar. 

E enquanto olhávamos uma para a outra, na expectativa de arrancar de mim um sim, claro, foi então que percebi o significado da estranha “visita”. Agora tudo fazia sentido. Ela precisava que eu assinasse um termo de responsabilidade e assumisse toda a burocracia necessária para poder trazer a filha para junto dela. A estranha visita era a mensagem antecipada, codificada. O pedido de uma mãe que, mesmo ausente, não deixa nunca no desamparo uma filha amada. Onde quer que o seu espírito se encontrasse nesse momento, veio correndo, descendo à terra, antecipando-se, fazendo o possível e o impossível, por amor. 

Apenas isso.