sábado, 3 de fevereiro de 2024

Vazio - 116

 

O vazio é uma sensação estranha e perturbadora, por vezes. O próprio nome já por si diz tudo. Nada. Nada mesmo. E será apenas uma sensação ou uma condição? Mas o vazio acontece, assim como o contrário, a plenitude ou a realização.

Era o mês de Julho e eu estava na Grécia, numas férias de verão, com um calor arrasador. Hermíoni é linda e atrai muitos turistas de variadíssimas nacionalidades. O Riaz, com quem tive uma relação durante sete anos, foi para lá trabalhar. Estávamos sempre em contacto, mas as saudades eram muitas e, aproveitando o facto, fui ter com ele.

Não tinha a menor ideia do que me esperava, mas adorei e como! A Grécia tem a água de mar quente, maravilhosa para ir ao banho. A Grécia tem o céu azul com um sol maravilhoso e uma terra óptima, que dá frutos e legumes soberbos. A minha estadia foi muito para além do que eu poderia imaginar. Pela primeira vez na vida tive uma praia à beira de casa, com que sempre tinha sonhado. Era só abrir a porta, atravessar o jardim, sentindo no ar o perfume das flores e em especial das imensas roseiras de várias cores e tonalidades, passar para o outro lado da estrada e entrar naquela água deliciosa. Foram umas férias abençoadas. Mas, é claro que, o facto do Riaz ser Paquistanês e, portanto, muçulmano, deu uma nota diferente a todo o contexto da situação.

Se eu fosse uma turista qualquer, sem esta ligação “especial”, teria passado completamente despercebida, como todos os outros. O facto de ser a mulher europeia e portuguesa, de um indivíduo muçulmano, de nacionalidade paquistanesa, deixou as pessoas deveras intrigadas. O que não é muito de estranhar, porque até as minhas colegas da televisão achavam estranho e curioso. Isto foi há mais de trinta anos. Se fosse agora, ainda assim seria intrigante, quanto mais naquela altura! Era uma grande admiração por causa das coisas que tínhamos que mudar em nós, para que a nossa relação pudesse funcionar. Contrariamente ao que os outros pensavam, não tínhamos certas atitudes por obrigação, muito pelo contrário, o que mudávamos em nós era porque queríamos, era pela nossa vontade e jamais obrigados a isso. Compreendo que não era fácil os outros entenderem, porque para nós também nem sempre era fácil. O relacionamento entre duas pessoas é sempre complicado. Uns mais, outros menos, mas nunca é fácil. Nestes casos é muito mais difícil. Por isso eu entendia a estranheza dos outros. Mas é uma escolha.

Um dia aconteceu uma coisa inusitada, que até hoje não esqueci. Acordei, numa manhã de sol, tão linda como as outras. Estava na cama, num quarto que não era muito grande. Na parede em frente, tinha um guarda roupa e de ambos os lados havia as mesas de cabeceira com candeeiros pequenos. Do lado do Riaz havia uma cómoda e do meu lado não havia nada, além da mesinha de cabeceira. Abri os olhos, tive consciência de ter acordado e estava virada para a parede branca. Imediatamente ao abrir dos olhos tive a sensação de que estava sozinha. Claro que o Riaz dormia comigo, mas naquele dia acordei e soube de imediato que ele não estava. Não é que isso representasse algum problema, mas se eu estava virada para a parede, portanto, de costas para ele, como poderia saber que ele não estava na cama? Essa é que foi a grande questão.

Porque razão me teria ocorrido tal coisa? Acordar, simplesmente, pensar que estava na Grécia, que iria fazer isto ou aquilo, e quando me virasse, logo perceberia, que ele já se tinha levantado, isso é que era o normal. Abrir os olhos e na primeira sensação do acordar, sentir o vazio da falta dele, não fazia muito sentido, dado que eu até estava virada para o outro lado. Ele até poderia estar quieto, a dormir tranquilamente. Mas não, não foi nada disso. Acordei e, em menos de um piscar de olhos, antes mesmo de ter consciência fosse do que fosse, soube que ele não estava lá. Em vez dele, havia um completo vazio que me deixou muito intrigada, pela sensação desse reconhecimento, sem base alguma. Apenas o meu “sexto” sentido, ou será que há aí alguma coisa mais? O quê, então? E porquê?

As perguntas que não têm resposta e vice-versa, porque há respostas para as quais não há perguntas. E tudo começa por aí. Primeiro a pergunta, depois a resposta. Neste caso, rapidamente, pensei que podia estar enganada e isso tranquilizava-me. O Riaz podia perfeitamente estar lá, como nos outros dias. Porque não estaria? Apenas porque eu tive a sensação de que ele não estava? O problema é que não foi a sensação de que… mas sim a consciência e, portanto, a certeza, a certeza de que ele não estava. E tudo por causa do vazio que senti. Uma sensação desconfortável, como se me faltasse alguma coisa, não sabendo bem o quê, porque eu estava inteira.

No meio desta aflição, tentei resolver o problema, revertendo o pensamento, determinando de imediato que estava simplesmente enganada e que tudo aquilo não tinha razão de ser. Claro que ele estava. Era eu que, para começar o dia, tinha tido um devaneio. Portanto, nada daquilo era válido. Tonteiras da minha cabeça, a que eu já devia estar habituada. Contudo, sempre me surpreendia.

Fingindo-me tão calma quanto tranquila, porque estava de férias na Grécia e não havia razão para não estar, porque estava tudo mais que bem, tudo era lindo, maravilhoso… virei-me para encontrar o Riaz, acordado ou a dormir e acabar logo com aquela charada filosófica ou existencial.

Vazio. O mais completo vazio.

 

sábado, 6 de janeiro de 2024

Ofélia - 115

 

Ofélia!... Ofélia… tão doce, tão suave… uma querida. A Universidade Sénior é um mundo e uma segunda família para cada um de nós, porque depois da reforma, é o lugar onde voltamos a conhecer pessoas, fazer novas amizades e outro ritmo, absolutamente necessário nas nossas vidas, para além de ficar sentado no sofá a ver televisão.

Na Universidade Sénior descobrimos muitas facetas que até então desconhecíamos, porque até aí a vida era só trabalho e casa. Somente e apenas isso. O tempo não chegava para mais e o cansaço também não ajudava.

Com a Universidade Sénior um novo caminho se abre, para quem está disposto a continuar com uma certa qualidade de vida. E a descoberta de coisas que não sabíamos que tínhamos, é fascinante! Podemos descobrir o caminho das artes: desenho, pintura, artes manuais (as mais diversas), a escrita, enfim. Com toda a certeza tudo isso sempre esteve dentro de nós. Pois é, mas tempo para acender essa chama e a poder aplicar concretamente? Esse é o problema.

E as amizades, o convívio que tanta falta faz, em qualquer idade!? As afinidades que descobrimos ao enfrentarmo-nos com os outros? Os novos laços que se formam, são mais caminhos para descobrir, aproveitar e tirar o melhor partido disso tudo.

Ofélia, como tantas outras pessoas era uma querida, muito simpática e muito comunicativa. Uma mulher linda e ainda nova, apesar dos seus sessenta e tal anos. Branca, loura, de olhos azuis, com umas feições muito perfeitas e um sorriso delicioso. Ofélia era casada, tinha filhos e netos, como a maioria de nós, porque nem todos se casam, nem todos têm filhos, nem todos têm netos. Alguns nem família têm.

Aparentemente, era uma mulher feliz e realizada. Mas tudo isso já era, porque à data, tinha problemas no casamento. Mas quem os não tem? O marido tinha mudado de repente, nos últimos tempos, e segundo ela, só piorava de dia para dia, o que tornava difícil o convívio e a comunicação de ambos.

Nas minhas aulas de meditação eu dava oportunidade às pessoas de exporem os seus problemas pessoais, a fim de serem avaliados e confrontados por todos e, muitas vezes, ouvimos Ofélia falar do que a atormentava. Era uma maneira de desabafarem, sem julgamentos, podendo até ter ajuda psicológica uns dos outros. Todos sabemos que, só o facto de se poder falar abertamente sobre os assuntos que nos incomodam, pode ajudar no campo emocional. Receber a compreensão e o apoio dos outros é, no mínimo, consolador.

Mas, então, veio o Covid e tudo se acabou. As aulas da Universidade Sénior, como em todo o lado, deixaram de ser presenciais para serem online e nem todas. Foi o isolamento e o silêncio total. As pessoas foram obrigadas ao recolher obrigatório e esperar, esperar que a crise passasse. Para falarmos uns com os outros só mesmo por telefone. O desejo e a saudade de tudo e de todos, foi a única coisa que sobrou, durante um longo período de tempo. Mas como tudo passa… um dia, as coisas, lentamente, começaram a voltar ao normal. E assim, a universidade começou também as suas aulas presenciais. Só que a frequência baixou consideravelmente. Muita gente ainda tinha medo. Outros, acomodaram-se. Mas a universidade retomou a sua actividade dentro do possível e como pôde. Com poucos, é verdade, mas foi o que foi. E no ano seguinte percebemos o aumento, e a pouco e pouco as pessoas foram perdendo o medo e percebendo que a vida era para continuar e não podíamos de maneira nenhuma parar. Parar é morrer.

Mas nunca mais foi o mesmo, isso não. Por essa razão, dávamos por falta de pessoas. Pessoas a que éramos mais agarrados, com quem tínhamos mais afinidade, com que nos relacionávamos melhor, etc. De alguns conseguíamos ter notícias através de outros, mas de muitos, nem isso. Parecia que tinham desaparecido completamente do mapa.

Ofélia, por exemplo, foi uma dessas pessoas que desapareceu completamente. Nem adiantava perguntar, porque ninguém sabia do seu paradeiro. Às vezes eu pensava numa ou outra pessoa e mais tarde essa mesma pessoa acabava por aparecer. Outras não apareciam, mas sabíamos através de outras, onde estavam, o que faziam. Muitas vezes os números de telefone “desaparecem” ou as pessoas não atendem.

Mas Ofélia, e praticamente todas as pessoas com quem ela mais se dava, também não voltaram depois da pandemia. Quando as pessoas desaparecem de circulação eu costumo apagar os números, porque é uma lista interminável e se não são usados, não fazem falta. É assim.

Ofélia, porém, eu gostaria muito de saber dela, de ter notícias, perceber o que se estaria a passar. Paciência. Talvez um dia ela ainda voltasse. Ou talvez não. Ela nem sequer morava para as minhas bandas. Era uma zona completamente oposta à minha. Por isso, encontrá-la, era muito pouco provável. Mas a cada dia que passava eu ficava mais fixada na ideia de chegar e ela de alguma maneira. Porém, o tempo é curto para tanta coisa que há a fazer e as coisas sucedem-se uma após outra e a pergunta vai ficando sem resposta, embora sem se apagar da nossa cabeça.

O dia a dia é uma solicitação constante de afazeres inadiáveis que vão tirando a oportunidade a outras coisas aparentemente secundárias. Foi o caso. Todos os dias eu pensava na minha amiguinha, mas acabava sempre ficando por aí. Eu só queria vê-la. Saber se estava bem. Como estava a vida dela, com todos os problemas que tinha com o casamento e a família.

Mas pronto. Já me estava a conformar em não conseguir uma aproximação com ela. A vida é como é e o almoço e o jantar estão primeiro, portanto, nada a fazer. Ou continuar à espera de uma oportunidade, quem sabe?! Mesmo tendo que aceitar isso, continuava a pensar nela, o que também já me parecia uma obsessão, sem razão para isso. Porque haveria de estar sempre a pensar nela?

Era hora de almoçar e não tinha preparado comida, por isso decidi ir ao take away, ali mesmo, do outro lado da rua, depois de sair a Praceta. Entrei, escolhi a ementa e fiquei à espera de ser atendida. Olho para a minha esquerda, na direcção da caixa de pagamento, para ver se havia muita gente… impressionante!

No lugar mais inusitado possível, completamente fora da sua zona! Já eu, vou ali de vez em quando e aquela era mesmo uma dessas vezes, de vez em quando. Sem mais nem menos, onde jamais pensaria, mas como que respondendo ao meu chamado, isso sim, espantosamente e sem qualquer outra explicação, lá estava ela, igual a si mesma, igual ao de sempre… tão doce, tão suave… Ofélia!


quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Os documentos - 114

 

Carlos aproximou-se de mim, beijando-me com a mesma ternura como sempre o faz e a que já estou mais do que habituada. Só que desta vez era especial.

Cerca de meia hora antes, acabara de me dizer que não sabia dos documentos da mota. Achava que os tinha guardado no bolso das calças ou do casaco, mas já tinha procurado e revirado tudo, sem sucesso. Por isso, deduzia que os tinha perdido, o que o deixava muito chateado. Perder os documentos, significava ter de ir à loja do cidadão, perdendo horas de trabalho, o que não lhe dava jeito nenhum.

Disse-lhe que deviam estar na roupa, para procurar melhor, mas ele insistia que já tinha visto tudo e não encontrava. Estava convencido de que os tinha deixado cair na bomba da gasolina e, porque já era noite cerrada, não tinha dado por isso. Voltei a dizer-lhe que, garantidamente, estavam num bolso qualquer. Qual, eu não sabia, mas estava decidida a ajudá-lo a procurar.

Era dia de Natal e eu, em especial, estava embrenhada nos preparativos para irmos almoçar a casa do Henrique, onde estaria a Sofia, minha neta, a passar o dia com o pai. Talvez por isso, não lhe tenha dado uma atenção mais merecida e porque também estava perfeitamente convencida de que os documentos estavam em casa, algures na roupa dele. Mas podia estar enganada!

Achando que não podia fazer mais nada, decidiu alhear-se daquele assunto, para não estragar o dia. Tanto mais, que ele sabia como era importante o facto de irmos a casa do Henrique. Além de que Carlos, é uma pessoa cem por cento positiva, o que muito me encanta e aprecio. E assim, os dois continuámos a preparação para o almoço.

Chegou a hora de nos vestirmos para sair. Escolhi cuidadosamente a roupa, calçado, bijuteria… dei um jeito no cabelo, uma ligeiríssima maquilhagem, escolhi um casaco comprido de pelo sintético, porque estava muito frio e fui para a sala acabar de fazer uns embrulhos.

Daquele dia eu só queria que desse tudo certo. Não era um almoço qualquer. Era um almoço de Natal com o Henrique, meu filho. E isso, por razões que agora não vem ao caso, era de suma importância para mim. Carlos tinha essa noção e isso também o influenciou a esquecer momentaneamente a chatice dos documentos, que eu continuava a acreditar que não estavam perdidos. Ma enfim… enquanto não apareciam, estavam perdidos. Essa era a verdade.

Voltando ao almoço, se tudo desse certo, isto é, se não houvesse nenhum mal-entendido e tudo corresse na santa paz, ou no mínimo, em harmonia, o meu dia estaria ganho e a minha alma estaria feliz, muito feliz. Era como que um resgate de muitas horas, muitos dias de angústia, raiva e outros tantos sentimentos negativos, que me tinham deixado completamente de rastos, sem opção de dar a volta ao assunto. Mas agora, parecia que tudo tinha ido na corrente e já não voltariam mais, para me atormentarem de todo. Era uma enorme dádiva do universo. Eu tinha consciência, reconhecia e estava infinitamente grata, assim como pronta para aceitar essa mudança, mais do que tudo. O vento trouxera, a brisa levara para bem longe. Era tudo o que eu queria.

Quase prestes a sair, Carlos chega novamente perto de mim e, coisa que nunca faz, pergunta-me que casaco deve levar. Hum!... Fiquei a olhar para ele, curiosa pela pergunta, mas rapidamente, respondi que levasse o casaco de cabedal, que era óptimo e ficava-lhe muito bem.

Na noite anterior, tínhamos ido jantar a Setúbal, a casa do João, com mais família, e ele não me questionou sobre o que vestir. Isso é o normal nele. É um homem com uma figura bonita, como poucos, e fica bem com tudo o que usa. E por si mesmo, decidiu levar um sobretudo que raramente veste, muito bonito. Podia ter-lhe respondido que levasse o mesmo casaco da noite anterior. Mas não sei porquê, veio-me à ideia o blusão de cabedal e achei que esse estaria bem, no meio de tantos que tem. Podia ter dito outro qualquer, mas foi aquele que visualizei e foi aquele que disse.  Portanto, quase sem pensar, respondi-lhe que levasse o tal blusão de cabedal. Sem comentários, deu meia volta e foi para o quarto.

Estava tudo bem. Estava tudo mesmo a correr muito bem. Só era pena a história dos documentos. Parece que tem sempre que haver um senão. Paciência. Há coisas piores.

Cerca de cinco minutos depois, e voltando ao início da história, estava agora de volta de mim, enchendo-me de beijos e agarrões e, no meio do seu característico ataque de ternura que, apesar de já estar habituada, nunca deixa de me surpreender, acrescentava ainda que eu era uma pessoa muito especial, uma alma preciosa, iluminada… e sei lá que mais o quê. O seu olhar estava diferente, com um brilho notável e parecia leve que nem uma pluma. É que a minha sugestão de levar o blusão de cabedal tinha um fundamento, e embora inconscientemente, tinha resolvido o único senão para um almoço de Natal perfeito.

Carlos estava mais do que aliviado. Os documentos da moto, que para ele estavam perdidos, e que poderiam estar no bolso de qualquer outro casaco, estavam precisamente nesse mesmo blusão que vestiu seguindo a minha orientação.


domingo, 8 de outubro de 2023

Um sonho - 113

Ju(ventino) tinha um sonho: ir ao Canadá acompanhado e não sozinho, como sempre fizera a vida inteira, por não ter a companhia certa, a companhia desejada. A irmã, dois anos mais nova, casada, vivia no Canadá com o marido e os filhos. Por esta altura, já eram emigrantes há cerca de vinte anos, onde tinham uma vida razoável. Ambos trabalhavam e estavam perfeitamente adaptados à sua rotina, no país que tinham escolhido. Ju, todos os anos tirava férias para ir ver a família. Naquele ano tinha decidido que não iria mais sozinho. Na verdade, estava cansado de sempre ter sido visto como um solteirão, sem uma apreciada companhia feminina, o que fazia com que permanentemente o interrogassem sobre a sua vida privada, deixando-o sempre desconfortável.

Quando a Rádio se juntou à RTP, apareceu uma nova imagem da empresa, com caras novas, novos colegas e muitos conhecimentos se fizeram. Um ano depois de me ter mudado, porque a minha Direção foi a última, um dia, vi a figura entrar pelo open space dentro. Tinha um ar um pouco estranho, não posso negar. Um ar difícil de definir porque, por um lado, um aspeto intelectualizado, talvez pelos óculos demasiado pesados, de lentes muito grossas, por outro, parecia um pouco alucinado. E ambas as coisas me confundiram, impedindo-me de traçar um perfil exato.

Deixei que saísse e perguntei à colega com quem foi falar, e que era o seu apoio administrativo, quem era, apenas porque nunca o tinha visto, o que era natural. Afinal, era tanta gente nova, que muito provavelmente não chegaria a conhecer muitos deles, como não conhecia toda a gente da RTP. Respondendo à minha pergunta sobre o colega, ela disse-me quem era, o que fazia e pouco mais. Para meu grande espanto ou talvez nem tanto, nunca tinha casado e, em princípio, vivia sozinho. Um solteirão veterano, com cinquenta e quatro anos.

Cerca de uma semana mais tarde, Ju, voltou ao lugar. Pensei para comigo mesma que nunca na vida tinha visto aquele sujeito e, agora, em tão pouco tempo, era a segunda vez que ali vinha. Percebi que aquela criatura me intrigava por demais. Ele era estranho, sem dúvida. Mas o que é isso? Há tanta gente estranha! Quem sabe se algum vez não me acharam estranha a mim, que acho que sou uma pessoa normalíssima!? É tudo muito relativo. E desta vez falou com outra colega, também da Rádio. Aproveitei para me aproximar e logo ela tentou despachá-lo para mim, por ser eu a secretária da Direção.

Ju, não ficou indiferente, tendo mostrado um certo interesse na minha pessoa, a colega nova, que ele também não conhecia. Apercebendo-se disso, depois da sua saída, as colegas da Rádio vieram falar comigo, alertando-me de que ele não era para mim, isto é, que eu merecia uma pessoa diferente e muito melhor. Fiquei intrigada, mas elas continuaram martelando, dizendo coisas nada abonatórias a seu favor e justificando o facto de nunca ter casado, com o seu mau feitio e as suas esquisitices. Em todo o caso, para mim, havia nele um pormenor importante: o facto de ser solteiro e sozinho. Eu também estava sozinha! Pelo menos, podíamos tentar uma aproximação e perceber como seria o nosso relacionamento, sem grandes consequências!? Porque não uma boa e nova amizade?

Começámos a falar um com o outro, aproveitando as questões de trabalho, depois combinando almoços aos fins de semana e, finalmente, a sair juntos para algumas coisas, até que chegou o dia em que ele ficou na minha casa. A partir daí, começou a ficar com mais frequência e só ia a casa quando tinha mesmo necessidade.

Ju, não era o homem mais bonito do mundo, nem o mais simpático, nem o mais inteligente, etc… mas era solteiro e isso era importante. Na faixa etária em que os encontrávamos, não era fácil encontrar pessoas sozinhas. Com o tempo, apesar de ele achar que eu tinha um bom feitio, que não implicava e para parafrasear as suas próprias palavras “era fácil viver comigo porque eu não chateava em nada”, pensei para comigo mesma, que era fácil enquanto ele deixasse, caso contrário, não seria mesmo nada fácil. Contudo, aprendi a lidar com o “machismo” dele, com a mania de que era o “melhor” dos profissionais no trabalho que fazia, pois exagerava e muito na sua performance, apenas para se convencer de que os outros o achavam o máximo dos máximos.

O problema é que a opinião dos outros era o oposto do que ele idealizava. Uma das coisas de que me avisaram sobre a sua pessoa, é que ele bebia e não era pouco. E muitas outras coisas, definindo-o assim como doido, maluco, enfim… nada abonatório. E toda a gente queria que me afastasse dele, por causa de tudo o que ele representava. Em todo o caso, verdade seja dita, eu não tinha do que me queixar. Os defeitos dele eu conseguia ultrapassar e nunca deixei de ser eu mesma com ninguém, portanto, isso não iria acontecer com ele.

Voltemos ao sonho. Todos temos sonhos. Todos temos sempre algum desejo secreto ou não, que alimentamos nas profundezas do nosso ser, tornando-se um sonho. E como já disse, o sonho de Ju era uma companheira que viajasse com ele até ao Canadá, para não ir sozinho, e poder apresentar à família, como uma pessoa com potencial para um eventual futuro. Por isso, logo nas primeiras conversas, veio à baila o assunto “férias”, com o programa viagem ao Canadá. Estava implícito no seu discurso, que ele queria muito que eu fosse com ele. Até se propunha pagar-me a passagem, coisa que eu logo descartei por completo. Já íamos ficar em casa da família, pelo que não pagávamos alojamento nem alimentação, o que era ótimo, portanto, jamais eu deixaria que ele me pagasse a passagem.

O facto é que concordei em ir. Nunca na vida tinha pensado ir ao Canadá. Mas o que já viajei por esse mundo fora, foi muito mais o que teve de ser, do que o determinado por mim. As coisas vêm, proporcionam-se e é esse o caminho. Portanto, uma vez mais, o destino abria uma porta desconhecida. E coisas assim eu sempre considerei um presente, um presente da vida. Porque negar? Não fazia o menor sentido. E assim foi.

A viagem ao Canadá foi muito boa. Sem dúvida, enriqueceu o meu conhecimento, o meu património cultural, a minha pessoa e diverti-me bastante. Eu estava mais completa, por assim dizer. E não posso negar que Ju foi impecável comigo, preocupando-se em me mostrar isto e aquilo, levando-me a todos os lugares que ele achava importante, etc. A família e os amigos acolheram-me muito bem e todos manifestaram o seu agrado na minha ligação com ele. Ainda que a irmã não escondesse de mim todas as suas dúvidas, o que não deixei de agradecer, porque tinha consciência de que o irmão era um pouco “doido” e sempre seria. Mas isso era uma decisão minha e só a mim cabia julgar. E por enquanto não tinha do que reclamar. Por enquanto, sim… por enquanto.

De regresso a Portugal, as coisas mudaram. Melhor dizendo, tudo mudou. Não me vou alongar com os pormenores, mas tudo virou de cabeça para baixo. Foi então que, aquele Ju(ventino) de que todos me falavam na empresa e que a irmã no Canadá reforçou, veio ao de cima. O comportamento dele alterou-se e deu uma volta de cento e oitenta graus. Começou a aparecer bêbado na minha casa. O feitio dele começou a ser insuportável, até que uma noite pirou de vez. De tal modo, que fiquei bastante assustada e me fez pensar que assim não. Não mesmo. Eu não ia aturar cenas daquelas a ninguém. Ele já tinha realizado o seu sonho e eu não precisava de um homem como ele. Não havia nada de bom. A cabeça batia mal de todas as maneiras. E assim, fui obrigada a pôr um fim àquele episódio. Tinha vivido com ele sete meses, que tinham sido muito bem aproveitados. Estava na hora de terminar.

As nossas vidas continuaram com cada um para seu lado. De quando em vez, encontrávamo-nos de passagem na empresa, mas nem sequer havia assunto ou vontade de falar. Ele continuava com aquele ar alucinado de que todos me falavam. E percebi que realmente ele me tinha escolhido para ir com ele ao Canadá e por isso me mostrara o melhor dele. Só isso. Tudo bem.

Doze anos passaram. Eu já estava reformada havia dez anos. Um dia, ao fim da tarde, sentindo-me um pouco cansada, deitei-me no sofá, a fim de fechar os olhos e relaxar um pouco. Tive um sono muito, muito superficial, em que dormia e acordava, dormia e acordava. Mas estava confortável. De repente, uma vez mais, fechei os olhos. Mas então, comecei a sentir um mal-estar, que rapidamente foi aumentando. Uma energia muito ruim tinha-se apoderado de mim, sem que eu a conseguisse expulsar. Um frio de morte percorreu todo o meu corpo, que gelou por completo. Sem entender porquê, senti realmente a presença da morte. Mas eu sabia que não ia morrer. Aquela morte não era minha, mas era a anunciação de uma morte. Foi horrível. Nunca tinha tido uma sensação daquelas. Naquele preciso momento, fiquei a saber que alguém, relativamente próximo, ou do meu conhecimento, tinha partido. E como fora ruim! Uma coisa muito má. Horrível de descrever. Mas era a morte, sem sombra de dúvidas. Isso eu sabia. Depois de ter percorrido todos os cantos do meu corpo, passou, deixando-me finalmente liberta. Alguém, naquele preciso momento, tinha sido levado pela morte. Quem seria?...

Dois dias depois eu estava ao telefone, falando com uma amiga, que mantinha contacto com colegas que ainda estavam na empresa. Sabes quem morreu?... Perguntei:  quando?

Ju(ventino) tinha partido naquele exacto momento em que senti a energia da morte percorrer todo o meu corpo.

Apesar de tudo, eu tinha tido alguma importância na sua vida. Eu tinha realizado o seu sonho. 


quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Dezoito - 112

 

Andar nos supermercados nem sempre é fácil. Uns vão para fazer compras, outros parece que vão passear. Uns levam uma listinha, mas outros nem por isso. E depois levam o que nem precisavam e o que realmente era preciso não chega a casa. No meio disto tudo acho interessante olhar para os carros e respetivos “donos”. Tem tudo a ver. Normalmente, os mais gordinhos são os que levam os carros recheados de tudo o que não deviam. Quantas vezes me dá vontade de chegar perto e perguntar se não tem vergonha de levar as porcarias que leva, não tendo em conta a saúde. Mas cada um tem o direito às suas escolhas, porque não?! E quanto maior é o supermercado maior é a canseira.

Por regra, vou sempre ao mesmo supermercado, mas às vezes vou a outro, porque não encontrei o que queria ou porque quero uma coisa diferente. Por exemplo, gosto muito do pão de alfarroba, além de que alfarroba é bom para o fígado. E, apesar de raramente comer pão, quando me apetece, é o pão de alfarroba que tenho de comprar. Não há no meu supermercado habitual. Só há num a que raramente vou. Portanto, quando quero, vou lá propositadamente, o que é um pouco estranho, ir a um espaço tão grande só por causa disso. Mas vou.

Um dia, estando numa fase dessas, lá fui ao Continente, para apenas comprar o pão de alfarroba. Claro que sempre invento mais qualquer coisa, só por vergonha. Todos os outros vêm com os carros cheios e eu com um pão na mão!? Aproveito para trazer uma salada diferente, uma aveia também diferente da habitual, com a desculpa de que é bom variar, etc… e depois de escolhidas as compras, dirigi-me para a fila da caixa, a fim de pagar e sair dali para fora.

As caixas são numeradas e é preciso ficar na fila para chegar a vez de cada um. Chegada a vez, temos de nos dirigir para a caixa correspondente à chamada. Portanto, lá fui eu para a fila, com umas quantas pessoas à minha frente, aguardando vez. Enquanto estou na fila, que aos poucos vai avançando, vou dando uma olhadela para as pessoas e respetivas compras e fazendo as minhas silenciosas observações e considerações, achando que aquilo sim, aquilo não, como se alguém estivesse a dar importância ao meu pensamento.

E foi aí que aconteceu uma coisa interessante. Ou talvez não. Dependendo de cada um. Aquilo a que alguns chamam simplesmente de coincidência, para mim, não deixando de ser uma coincidência, tem muito mais do que isso. Não é uma coisa vã, passageira, do momento. É muito, mesmo muito relevante. As coincidências. Sempre as coincidências, que nos deixam a pensar se se trata de uma coisa sem importância ou se, pelo contrário, tem realmente importância, porque é muito mais do que uma coincidência.  E o que seria mais do que isso? Capacidades das quais não temos conhecimento e que nem sonhamos ter?!

Um cérebro que foi feito para ser muito maior do que o uso que até hoje lhe damos. Claro que se a coincidência não for devidamente evidenciada e levada em conta, não serviu de nada e cai por terra, desfazendo-se na poeira global. E aí passou, talvez, uma grande oportunidade de nos defrontarmos com o que não sabemos, com o que desconhecemos.  E se não mudarmos a nossa atitude em relação a isso, isso e outras coisas ainda mais importantes, nunca serão direcionadas para o mundo a que pertencem.

Ah, mas não sabemos nada disso, nunca ninguém nos falou disso… etc. Cabe a cada um de nós lá chegar, sem o empurrão de ninguém. Trata-se da evolução individual da espiritualidade, um mundo que nos liga a outra dimensão mais elevada do que esta que temos atualmente. Que existe e está há séculos ou milénios, para não dizer, desde sempre, à nossa espera e para o qual, sempre teimamos em fechar os olhos. É um deslumbramento a que parece que fazemos questão de não querer assistir. Porque temos medo, insegurança e nos tira da nossa zona de conforto. Teimamos em continuar parados, fazendo todos o mesmo caminho. Mas esse caminho é já muito velho e, embora muito gasto, ninguém se quer desviar dele.

E assim, dia após dia, hora após hora, continuamos a mentir, cada um a si mesmo, para não sermos perturbados pela nossa consciência que, contudo, não deixa de, continuamente, apelar ao seu deus, quem quer que ele seja, onde quer que ele esteja ou exista, para ser feliz, e isto e aquilo. E das coisas mais importantes do ser humano a “independência”, onde fica ela no meio disto tudo? A independência que revela ou desmascara a real natureza o “homem”, porque perdeu a sua liberdade e não a consegue recuperar. Em cada coincidência há o censor da grandiosidade do ser humano que pode muito bem começar nas pequeníssimas coisas.

Eu estava na fila e já só tinha duas pessoas à minha frente. Pensei, só mais dois números e depois eu, que número será? Dezoito, veio à minha cabeça. Disparate, pensei, sei lá que número é, e depois o que é que isso interessa? Pus-me a olhar para um lado e para o outro, para dispersar as minhas habituais parvoíces. Ouvi chamar vinte e tal. E a pessoa da frente seguiu em direção à respetiva caixa. Passado um bocadinho, novamente vinte e qualquer coisa. Posicionei-me no lugar certo para a próxima chamada que seria eu. Neste entretanto, ainda pensei, mas o dezoito existe, não existe?! Se estão a chamar vinte e tal! E de novo, em pensamento, ralhei comigo mesma, por continuar a dar crédito a uma coisa que não tinha ponta por onde se pegar, pois qualquer número serviria para apenas poder chegar à caixa e pagar.

E finalmente, a chamada veio, dando resposta ao meu dilema e mostrando-me, uma vez mais, que este tipo de coisas acontece por uma razão muito simples. É quando a mente entra pelo tempo dentro, a caminho do futuro, longe ou perto, não interessa. Ali foram apenas uns minutos. Mas muito ou pouco, ela entra na linha do tempo, avançando o necessário até onde está a resposta, para imediatamente voltar à posição do aqui e agora. E assim, para minha grande surpresa, mas nem tanto, porque eu sabia que não era uma simples coincidência, o número de chamada aparecia no écran, ao mesmo tempo que uma voz dizia: dezoito.


quinta-feira, 8 de junho de 2023

O cão - 111

 

O cão ladrava, ladrava, ladrava… o que não era usual. Regra geral, os cães iam para ali bem tranquilos. Eu até ficava espantada com o comportamento deles. Muitas vezes, os donos ficavam, outras vezes, não. Iam-se embora para virem mais tarde buscá-los. E dum modo geram, todos se comportavam espantosamente bem. Quietinhos! Alguns até parecia que se deliciavam em estar ali.

A jovem tratadora era uma garota muito dedicada ao seu trabalho e o spa estava sempre muito bem cuidado. Os cães chegavam com os seus donos, levados pela trela, entravam, alguns com o rabo a abanar, e ali ficavam. Às vezes até tinham que aguardar a sua vez, porque ainda estava outro a acabar, mas nem por isso se chateavam. Eram pacientes. E os donos ficavam sentados a apreciar ou iam à sua vida.

Algumas vezes me detive a apreciar, espantada com o facto de eles ficarem quietos, sem se manifestarem, sem medo, sem ladrarem e sem estranharem por serem entregues a outra pessoa, e nunca vi nenhum cão reagir. Eles sempre obedeciam à garota que trata deles e o facto de os donos se irem embora ou ficarem, não os perturba nada, independentemente do que vão fazer.

A loja é toda envidraçada e vê-se tudo o que lá se passa. Às vezes as crianças estão por ali a brincar e ficam encantadas a ver o cão a ser tratado com todo o cuidado. Eles cortam o pelo, tomam banho, vão à secadora, são muito bem escovados e sei lá o que mais. No meio de tudo isto, fico admirada com a submissão deles ao que lhes fazem.

Um dia destes, porém, a situação foi diferente. Quando saí a porta do prédio, ouvi ladrar. Um ladrar forte e insistente. Parecia que o cão dizia: “não quero estar aqui, não quero, não quero, tirem-me daqui” … e fui atraída pela inquietação do animal, que reagia sob forte tensão. Percebi que estava sozinho, sem dono ou dona. A jovem do spa falava com ele enquanto o tosquiava e falava bem alto, ralhando e dando-lhe ordens para que se aquietasse, mas não tinha sucesso e o cão continuava a manifestar-se contrariado.

Não posso dizer que me incomodou muito, mas fiquei curiosa. Se fosse uma criança a chorar ou a gritar, isso sim, ter-me-ia incomodado bastante, mas um animal é diferente, até porque não sou amante de cães, especialmente se não os conheço. Nesse caso até prefiro distância. Incomodou-me mais, a garota estar a aguentar aquilo, porque o cão estava mesmo desassossegado de todo, sem obedecer às ordens dela, que estava com ar chateado.

Então, aproximei-me para apreciar ou perceber melhor, a situação embaraçosa que estava a acontecer por dentro dos vidros da loja e em vez de me ir embora, decidi tomar as rédeas da situação. Dobrando a esquina, dei a volta à loja para ficar de frente para o cão. A menina estava de costas, pelo que não se apercebeu de nada, o que foi bem melhor para mim. E agora estávamos bem de frente um para o outro, separados apenas pelo vidro.

Aí, olhei bem nos olhos dele, deixando-o igualmente fixar-se nos meus olhos. Os animais reagem melhor que os humanos à linguagem telepática, porque é assim que se comunicam entre si. Os humanos, porém, há muito que perderam, ou simplesmente esqueceram essa essa faculdade. Dessa maneira, ficámos os dois, somente os dois, olhos nos olhos. E imediatamente a minha ordem foi enviada. Mentalmente, dizia-lhe: “calou, calou, não ladra mais”. Ele fez um ar de surpresa, como quem diz “quem és tu(?) …, mas sem ladrar. Todavia percebi que estava prestes a continuar a fazê-lo e como isso não podia acontecer de jeito nenhum, ergui a minha mão direita, esticando o dedo indicador que estava apontado para ele, enquanto os nossos olhos continuavam completamente fitos um no outro. O cão, apercebendo-se de que estava a receber uma energia diferente, abria o focinho na tentativa de contrariar aquilo que o estava a travar e a impedir de ladrar, mas logo o fechava. E assim ficou alguns segundos, abrindo e fechando, sustendo o ar, reprimindo o fôlego, enquanto eu continuava olhando fixamente nos olhos dele, mantendo tão firme quanto possível, o dedo apontado, enviando a ordem: “calou, não ladra mais, não, não, não” …

Eu sabia que o cão tinha captado aquela energia que era superior à vontade dele e que o deixou completamente hipnotizado, sem conseguir fazer aquilo que lhe apetecia e que, até antes de eu aparecer, tinha feito: ladrar, ladrar, ladrar. Mas ele também sabia que aquela energia era mais forte do que ele. Não teve medo. Apenas não conseguiu rejeitar. E eu segurava com todas as minhas forças, canalizando e segurando cada vez mais, a cada respiração, a cada segundo, a cada milésima de segundo, aquela energia vinda do campo holístico, que me permitia uma voz de comando superior à dele e que só ele conseguia ouvir. Ao mesmo tempo, ouvia o meu inconsciente dizendo: “tu consegues, tu consegues, não pares, continua e nem por um instante duvides, caso contrário tudo vai falhar”.

Mas isso eu sabia. Tinha a certeza absoluta de que, à menor possibilidade de dúvida, nunca mais iria dar certo, porque esse é o segredo. A vontade é soberana, sim, mas apenas e somente, quando se faz cem por cento presente, sendo que para isso não pode haver a menor dúvida.

O cão deixou de ladrar, manteve-se calado, normalizou a respiração ofegante e entrecortada. E deixou de ladrar assim que fixei os meus olhos nos dele. Parou imediatamente, sem conseguir ladrar nem mais uma única vez. Ainda fiquei um pouco, observando, mas agora com a certeza absoluta de que ele não iria ladrar mais, por aquele motivo.

Afastei-me em direcção ao carro, para ir fazer o que me tinha tirado de casa e o silêncio reinou, com um cão muito bem-comportado, deixando de importunar a pessoa que estava a cuidar dele.

O recado estava dado.


segunda-feira, 17 de abril de 2023

Intuição - 110

 

Já de saída, apressei-me a ver a notificação acabada de chegar ainda antes de sair, pois nunca se sabe o que pode ser importante ou não. Pego no telemóvel e vejo uma mensagem do meu querido e amado filho, como anónima, isto é, num número que não era o dele, dizendo apenas que aquele era o novo número dele. Sem pensar muito, mas já pensando alguma coisa, não apaguei o anterior, limitando-me a acrescentar o “novo”. E saí, porque ia almoçar com um colega da Universidade Sénior e não o queria fazer esperar, uma vez que ele já estava com o carro à minha porta.

Fomos almoçar num restaurante muito perto, mas como ele naquela altura estava com algumas dificuldades de locomoção, não podia andar a pé, a não ser o absolutamente necessário. Além de que, logo a seguir ao almoço tinha que ir à fisioterapia. Entrei no carro e, pouco depois, estávamos a estacionar mesmo ao pé do restaurante. Saímos do carro, vi se ele precisava de ajuda e dirigimo-nos à esplanada, porque estava um belo dia de inverno e era bom apanhar um pouco de sol, ainda que de baixo do toldo.

Depois de estarmos sentados e já termos escolhido a ementa, enquanto aguardávamos pela comida, o meu telemóvel tocou. Pedi-lhe licença para atender e quando desliguei a chamada que tinha terminado, lembrei-me da mensagem que tinha recebido do meu filho. Olhando e relendo novamente, a minha intuição começou a dar sinal de alarme. Comecei a pensar naquilo que estava escrito, a pensar no meu filho e ainda que, aparentemente, não fosse nada esquisito, havia alguma coisa que não me parecia certo, porque era e não era.

Achando que eu estava apreensiva, o Luís perguntou se estava tudo bem. Levei algum tempo para lhe responder, mas acabei dizendo que tinha recebido uma mensagem do meu filho e que me parecia estranha. Estranha porquê, perguntou ele. Eu já sabia que essa seria a reacção dele. E o pior é que o conteúdo, para qualquer pessoa, não diria nada. Mas eu era a mãe! Li em voz alta, ao que ele respondeu que era tudo normal, não vendo nada de estranho e, portanto, eu estava numa atitude de negação. Pois é. O problema era mesmo esse, ou seja, era demasiado normal. Eu conheço o meu filho. Conheço-o como ninguém. E continuei dizendo-lhe que, para mim, era quase certo que alguém se estava a fazer passar por ele. Claro que uma vez mais ele reagiu com críticas à minha opinião, rindo de gozo e de escárnio, descartando por completo o que tinha acabado de lhe dizer. A atitude dele era como se me estivesse a chamar de tola, de idiota ou sei lá o quê.

Por aquela altura eu andava um pouco perdida, é verdade, e de vez em quando trocávamos ideias por telefone. Ele sabia do momento complicado por que eu estava a passar e então justificou-se com esse motivo, que eu tinha que ter uma atitude ou uma postura mais positiva perante a vida, como sempre tivera, como ele me tinha conhecido. A fragilidade em que me encontrava não combinava comigo, ia explicando ele e divagando, também. Mas eu sabia que uma coisa não tinha nada que ver com a outra. Eram coisas perfeitamente distintas. O almoço foi correndo e tirando isso, em todos os outros assuntos nos entendíamos. Só ali, a coisa não tinha mesmo como funcionar. Provavelmente, se fosse com qualquer outra pessoa, teria o mesmo resultado. Faltavam-me as bases para comprovar o que, embora não tivesse como comprovar, comprovado estava para mim. Mas só para mim. E isso chegava-me.

Acabado o almoço, veio outra mensagem. Aí, ele já estava muito excitado, e à espera que lhe dissesse, olha, afinal tens toda a razão. É o meu filho. Só que não. A mensagem dizia que ele estava com o telemóvel avariado e só no dia seguinte o teria novamente, pelo que aquele era um provisório. E o Luís, perfeitamente convencido do que estava a dizer, dizia-me que era perfeitamente razoável e que podia acontecer a qualquer pessoa. Sim, podia, mas não a ele, o meu filho. Além disso, ali já havia uma contradição. Primeiro tinha dito que tinha um número novo. Agora já dizia que era apenas provisório. Mas eu nem precisava de tanto. Claro que aquela situação podia acontecer a qualquer um. A qualquer um, mas nunca ao meu filho. A relação dele com as tecnologias informáticas, mais precisamente na área da “segurança”, tinham-no elevado a um patamar dificilmente compatível com fosse quem fosse. Mas isso os outros não tinham que saber. Eu sabia. Logo, aquela pequena contradição do telemóvel avariado e do número provisório, queria dizer exactamente o que eu já tinha suspeitado desde o primeiro instante.

Acabado o almoço, ele deixou-me em casa e cada um foi à sua vida. Já em casa, relembrava a reacção do Luís, e mais, a estranheza dele em não haver resposta da minha parte àquelas mensagens que ele acreditava piamente serem do meu filho. Responder o quê, se eu tinha a certeza de que não era ele? Ah, e se não fosse, isto é, se eu estivesse enganada e fosse realmente ele? Pois bem… nem aquelas mensagens exigiam uma resposta, nem eu iria arriscar entrar em contacto com “aquilo”, pelo menos por enquanto. Eu não sabia que raio de emboscada era aquela. Porque, não sendo o meu filho, alguma coisa muito estranha estaria por trás daquilo. Já vi muita gente meter-se em sarilhos com coisas do género. Portanto, as coisas ficariam por aí mesmo.

Um pouco cansada da cabeça, deitei-me preguiçosamente no sofá da sala, ouvindo o som da televisão. Daí a uma hora teria uma consulta, portanto, não podia correr o risco de adormecer e a páginas tantas o telemóvel dava sinal de mais uma mensagem. O que seria agora? Mais uma mensagem do meu falso filho que, sem mais nem menos me pergunta o que é que estou a fazer. Pensei, pensei e decidi dar resposta, para ver se descortinava qualquer coisa daquela treta. Respondi então se precisava de alguma coisa. A resposta não se fez esperar, respondendo afirmativamente. Perguntei o que queria. Precisava de fazer uma transferência bancária “avultada” até ao final do dia, sem falta, mas como estava sem o telemóvel dele, não tinha a aplicação para isso. Ele dava-me os dados para eu a fazer por ele e logo no dia seguinte ele faria o pagamento à minha pessoa.

Estava bem feito. Isso eu tinha que reconhecer. Um filho em dificuldades! Qual é a mãe que não ajuda? Só que aquela mãe não era eu, como aquele filho não era o meu. Jamais o meu filho me pediria dinheiro. Jamais! Primeiro, porque ele tem muito dinheiro e eu não. Segundo, porque, se eventualmente ele precisasse, era certo que pediria ao pai. Esse sim, tem dinheiro. Jamais a mim. Mas isto também ninguém tem que saber. Eu sabia. Além de que, de certeza absoluta, ele teria outros recursos para resolver o problema, sem aquela lengalenga toda, o que era o mais importante de tudo.

Não dei mais resposta e encerrei o assunto, porque sim, e porque também estava na hora de ir para a consulta que tinha. Entrei no carro e liguei para a minha norinha que me atendeu logo o telefone. Perguntei-lhe se o Henrique tinha um número novo. Estranhando a minha pergunta, respondeu que não fazia ideia do que eu estava a perguntar. Logo, o Henrique não tinha nada um telemóvel com um número provisório e coisa e tal. De seguida liguei para o meu filho, que não atendeu a minha chamada. Mais ou menos a meio do caminho o telemóvel chama. Era o meu filhote, dizendo que estava numa reunião e não tinha podido atender. Perguntei se ele estava com problemas no telemóvel e se por acaso tinha um número provisório. Não. Disse-lhe que estava a receber mensagens de alguém a passar-se por ele e tudo o resto. Pediu-me o número e assim que pude parei o carro para lhe responder. Passado um pouco voltou a ligar, dizendo que o número não estava atribuído e que simplesmente apagasse tudo o que tinha recebido.

Quando, à noite, decidi ligar ao Luís, ele não queria acreditar. O maior espanto dele era o facto de, desde a primeira hora, desde o primeiro instante, eu ter percebido isso, porque ele realmente achava que não tinha como. Estava perplexo e embasbacado. Praticamente, sem palavras. Mas também não precisava mesmo porque, aqui, a única palavra certa, que encaixava e que resumia e definia tudo, tudinho, era uma só: intuição.