terça-feira, 17 de março de 2015

O roubo das jóias - 57


As histórias da minha vida não fazem de mim a melhor das criaturas, nem tão pouco uma heroína. Esta, muito particularmente, serve de exemplo e talvez nem a devesse escrever. Mas essa não seria eu já que, a primeira pessoa a quem devo fidelidade, é a mim mesma.  

Uma tia minha, octogenária, tinha muito ouro que sempre foi comprando em Portugal ou por esse mundo fora, nas viagens que fazia. Caixas e mais caixas de tudo: anéis, brincos, colares, gargantilhas, enfim, muita coisa. 

Há uns anos atrás, tive umas dificuldades financeiras e a minha cabeça começou a trabalhar no sentido de encontrar uma solução para o problema. Passei dias, semanas, a pensar, mas no fim, nada me parecia viável. 

Eu acredito que o ser humano nasce com o bem e o mal, o que todos têm em medidas diferentes, porque ninguém é igual a ninguém. Começa-se a crescer e começa-se assim a definir a quantidade ou tendência para o bem e para o mal, porque não há ninguém que seja cem por cento bom, assim como não há ninguém que seja cem por cento mau. A vida que levamos e as experiências que vivemos levam-nos e conduzem-nos a bons ou maus caminhos e pronto. Por isso, muitas vezes somos surpreendidos com atitudes de outras pessoas com que realmente não contávamos, mas esquecemo-nos de que nós também estamos sujeitos a cair nessas teias. 

Mas eu tinha um problema para resolver ou achava que tinha. O certo é que um dinheiro extra dava jeito naquela altura e aquilo não me saía da cabeça. E durante bastante tempo, todos os dias pensava nisso, à procura de um milagre que não acontecia, é claro, até que um dia, estando em casa da minha tia, mais propriamente no quarto dela, que estava a escolher as jóias que usaria naquela noite para ir à ópera, me dei conta da quantidade de ouro que ela possuía e de repente bateu-me uma ideia. Se eu levasse alguns anéis e mais umas coisas, ela nem daria por isso porque, com tanta coisa, era quase impossível perceber. 

Até hoje, não sei como aquela ideia maluca me veio. Nunca tinha feito nada igual nem parecido. Considerava-me uma pessoa “boa”, correcta, justa e honesta… mas são muitos predicados para uma só pessoa. Mas era assim que todos devíamos ser(!). 

E a minha cabeça que, tinha andado semanas infrutíferas a pensar em como arranjar dinheiro, de repente, viu-se a braços com uma solução especialmente embaraçosa - roubar - sim, porque seria um roubo. Na minha cabeça, inventava mil e uma desculpas e razões para o fazer, mas era apenas para me justificar e não me sentir uma pessoa tão vil, só isso. E a mesma ideia que uns dias me parecia inofensiva, outros dias parecia-me abominável. 

Os dias passavam e a minha cabeça trabalhava, trabalhava sem descanso. O facto é que era uma solução viável. Pelo menos eu assim achava e todos os dias ensaiava a cena, tornando-a mais verídica para a conseguir concretizar. Fui amaciando a ideia, visualizando, encenando, preparando o espírito para uma coisa que nunca na minha vida tinha feito, pensando que para tudo havia uma primeira vez; não, nem tudo tem que ter uma primeira vez. Mas, digamos que, naquela altura, me dava jeito pensar assim.  

E o tempo passando e eu me torturando, dando cabo da minha cabeça a inventar as mil e uma maneiras de me sair bem daquela história, com o problema resolvido e sem ninguém dar por nada porque, ninguém, jamais, saberia desta história. Não me achava esperta por isso. Tinha apenas que me desenrascar e de entre todas as hipóteses, aquela ainda era a que me parecia mais “praticável”, por assim dizer. Ela não precisava nada daquilo tudo e a mim dava-me imenso jeito, só isso. 

O tempo foi passando, passando, até que um dia, a minha cabeça voltou a ser a minha cabeça, porque aquela outra não era a minha, com certeza. Aquela não era eu e nisso estava certíssima, porque eu jamais faria uma coisa daquelas e no final das contas, vendo bem, eu nem precisava nada de um dinheiro extra. Tinha tudo o que precisava e o que não tinha não precisava. Não havia mais o que pensar. Pedi desculpa a mim mesma, conscientemente me perdoei a mim mesma e senti vergonha de ter pensado numa coisa daquelas. Eu não podia. Se tivesse cometido aquele deslize, nunca mais seria a mesma. Era impossível fazer semelhante coisa. Não é da minha índole nem faz parte dos meus princípios; não tem nada que ver comigo. Eu não sou assim. E respirei aliviada, ainda sem saber muito bem como me tinha passado pela cabeça semelhante coisa e ainda que ninguém, a não ser eu mesma, soubesse daquela treta. E a história deveria terminar aqui. Mas não termina. 

Oito dias depois, exactamente oito dias depois, uma senhora estranha, da maneira mais idiota possível, entrou lá em casa, levou boa parte das jóias e foi-se. Não havia muito o que explicar. Ao que parece, enquanto a minha tia estava na casa de banho a tomar o seu duche e a fazer a sua higiene diária uma desconhecida qualquer tocou à campaínha e quando a empregada foi atender ela disse que ia fazer uma visita à senhora. A empregada pediu-lhe que aguardasse na sala de estar, tendo-se retirado para a cozinha. Com a passagem livre, foi direita ao quarto, levou o que pode e pôs-se a andar sem a empregada dar por isso. E a minha tia, infeliz, telefonou-nos, dizendo: fui roubada.

A história também podia terminar aqui. Mas ainda não vai terminar. 

As casas são assaltadas – acontece. A minha tia ficou sem as suas queridas jóias, no entanto e estranhamente, nem ficou tão abalada quanto eu supunha. Mas eu pensava: aquele roubo foi planeado por mim! Porque não aconteceu antes? Antes, enquanto eu decidia sobre o assunto? Podia ter sido; mas não. Aconteceu exactamente quando eu decidi que não faria semelhante coisa. Coincidência! 

Mas coincidências não existem, isto é, para além da coincidência, as coisas têm uma razão de ser. O roubo só aconteceu depois, “depois” de eu ter decidido que não o faria. Se tivesse acontecido uma semana antes, na altura em que eu ainda estava a decidir o que fazer, o meu livre arbítrio não teria sido posto em causa e a minha escolha não teria mérito algum. 

Pois é. Estava escrito que ela ficaria sem as jóias, por razões que se prendem a ela e só a ela dizem respeito. A vida pôs-me à prova, só isso. Deu-me a mim a oportunidade de escolha. A escolha, claro está, não se trata da posse das jóias, mas do acto em si: um roubo. A vida deu-me uma lição. Disse-me para roubar as jóias. Eu disse que não e ela enviou outra pessoa que aceitou a tarefa. 

E é aqui neste ponto que se define o ser humano, a qualidade da alma, a delicadeza do espírito. Todos somos chamados e postos à prova. Cabe a nós escolher o caminho que queremos. 

Agora sim, a história chegou ao fim.