quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

A manga - 89

 

Numa bela tarde de calor tropical na Guiné Bissau, sentada no chão da varanda da sala do primeiro andar onde morávamos, percebi que a árvore mais próxima, do conjunto de árvores que se seguiam à beira da estrada pela rua fora, tinha ramos que se estendiam até muito próximo de mim. A varanda tinha um gradeamento de ferro com desenhos floreados, através da qual eu metia as mãos na tentativa de chegar aos galhos. Mas apesar de chegarem muito perto do gradeamento, eu não conseguia alcançá-los. E uma coisa que eu gostava de fazer era sentar-me no chão e meter os meus braços de fora para ir ao encontro dos ramos e tentar tocar nas folhas, pelo que todos os dias fazia esse exercício para ver quando os meus bracitos alcançariam a mangueira. 

Não havia muito o que fazer, a não ser descobrir por mim mesma formas diferentes de me entreter. A casa ficava dentro do quartel e a única distracção eram as paradas militares e os exercícios da tropa. De resto, a minha irmã era bebé, passava muito tempo com a nossa mãe e eu, com cinco anos, tinha que me virar sozinha, entretendo-me com o que quer que fosse. Assim, passava muito tempo comigo mesma, sentada num canto da varanda, olhando lá para fora para ver quem passava e quem não passava. Qualquer coisa do exterior era uma distracção para mim. Gostava de apreciar as diversas formas de vestuário dos nativos e os seus múltiplos adornos. Era como uma passagem de modelos, que naquela altura ainda não sabia o que isso era.

Num belo dia, ao chegar ao meu canto da varanda descobri que havia uma bolinha minúscula no ramo mais próximo da varanda. Meti o braço, mas a minha mão ainda não conseguia alcançá-la. Chamei o faxina que me disse que era uma manga pequenina que estava a crescer. Eu estava habituada a ver as mangas grandes, prontas para comer. Uma manga pequenina como aquela eu nunca tinha visto. O faxina explicou que ela iria crescer e ficar igual às outras que se compravam e logo a minha reacção foi exprimir-me no sentido de lhe fazer saber que eu queria aquela manga. Ele explicou-me que ela tinha que crescer para se poder comer. Compreendi, mas era ponto assente que aquela manga era minha, uma vez que era eu que a tinha descoberto e porque estava ali mesmo junto à varanda, como se estivesse a espreitar-me no meu canto preferido de muitas horas. De facto, se eu já passava bastante tempo naquele lugar para ver a rua e quem por lá passava, a partir daquele momento passaria muito mais tempo para apreciar e vigiar a minha manga.

É então que começa uma saga. A cada dia a manga crescia um pouquinho. Às vezes notava-se menos, outras vezes mais. E a certa altura eu já queria apanhá-la. A sorte da manga é que, apesar de todos os meus esforços, eu não conseguia lá chegar, ainda que fosse por muito pouco. Por outro lado, o faxina chegava na perfeição e isso já me bastava. Na hora certa ele apanhá-la-ia por mim, ou melhor, para mim. A manga era minha.

Muitas e muitas vezes eu ia com ele ao mercado. A minha mãe ficava com a minha irmã, ainda bebé, deixando-me ir com ele, no qual confiava. Todos os militares tinham em casa faxinas. Faxinas eram os Guineenses que faziam parte do corpo militar e que eram destacados para ajudar em casa dos militares que eram acompanhados das respectivas famílias em África. O facto de lhes chamarem faxinas não tinha nenhuma conotação depreciativa. Eles auxiliavam nas tarefas domésticas da mesma maneira que na metrópole havia as empregadas ao domicílio. Ali quem lhes pagava era o exército e os militares ensinavam-lhes muitas coisas. Se calhar também aprendiam coisas com eles, não sei. Nas outras casas não faço a menor ideia como seria. Em nossa casa os trabalhos que eles faziam eram trabalhos de rotina: limpeza e às vezes cozinhavam. Era tudo pacífico e eles faziam parte da família. E na verdade eu ia sempre com ele ao mercado, que era uma coisa que adorava. Aquilo era uma festa para mim. Muitas tendas com tudo o que se possa imaginar. Desde a alimentação até às mais variadas coisas. Às vezes ele dizia-me para ficar sentada num determinado sítio até ele voltar e eu tinha ordens expressas da minha mãe para lhe obedecer, o que sempre fazia. Compreendia que era assim que tinha que ser. Nunca houve problemas. Limitava-me a ficar sentada a observar o movimento, a barulheira, a confusão e a tudo eu prestava imensa atenção.

Mas voltando à saga da manga. Todos os dias quando acordava lá ia eu a correr para o meu posto de vigia observar a minha manga. E dia a dia ela crescia ao mesmo tempo que ia mudando de coloração. Muitas vezes chamei o faxina para a apanhar, porque eu a queria, mas ele dizia que ainda não estava na altura, que tinha que esperar. E lá ficava eu sentada a observá-la e a admirá-la, conformada com o facto de ter que esperar. A manga cresceu e ficou grande e bonita. Uma maravilha! Um presente dos deuses. E todos os dias eu chateava o faxina para a apanhar, mas ele ia sempre dizendo que ainda não estava na altura. Até que um dia, ao chamá-lo mais uma vez, finalmente disse que no dia seguinte a apanharia. No dia seguinte? Ainda tinha que esperar mais um dia? Se já estava no ponto, porquê mais um dia? Não percebi porquê mas não tinha outro remédio. Afinal eu não chegava lá, portanto tinha que ser ele a apanhá-la. Mas pronto, pelo menos o dia tinha chegado. Era só mais umas horas e a manga estaria enfim nas minhas mãos e o meu desejo seria uma realidade.

E o dia seguinte chegou. Mal abri os olhos lembrei-me imediatamente daquilo a que estava destinado o meu dia. O encontro com a minha preciosa manga. É que aquela não era uma manga qualquer. Aquela era uma manga especial porque eu a tinha visto praticamente nascer e tinha assistido ao seu crescimento, à sua maturação, etc. Além disso ela foi aparecer mesmo em frente à minha varanda, bem próximo do gradeamento, como se realmente quisesse ser adoptada por mim. Não havia volta a dar, aquela manga era minha. Ela mesma sabia que era minha, com toda a certeza.

Mas chego à varanda e nem queria acreditar no que os meus olhos viam, ou melhor, não viam. A manga não estava lá. A minha bela manga evaporara-se. Já era. Justamente no momento em que viria para mim, fora-se. Olhei imediatamente para baixo, para ver se estaria no chão, mas nem rasto dela. Era uma vez uma manga. Chamei o faxina que não ligou muita importância e desatei a chorar. Fiquei muito triste. Tanto tempo de espera, tanta paciência, eu sempre a resistir e a poupar a minha manga para ela ser o que tinha que ser e no momento certo foi-se. Fiquei mal. Aquilo não estava certo e era uma grande injustiça. O fachina disse que alguém a tinha apanhado e pronto. Acabou-se.

Este episódio aparentemente insignificante e sem interesse nenhum, foi relevante. Pela vida fora acompanhou-me em momentos de maior introspecção em que eu sempre lembrava a manga que um dia me tinha escapado. A manga que me tinha sido sonegada, para não dizer roubada. É claro que eu sabia que a manga na verdade não era minha. Não era de ninguém. Era da árvore e de quem a apanhasse. Mas no meu íntimo era minha. Quem a teria levado, exactamente no dia em que estava previsto ser apanhada? Era uma grande coincidência e isso não me saía do pensamento.

Fui crescendo e percebendo que aquela cena me tinha marcado não sem um propósito, por isso estava dentro de mim de uma maneira tão intensa. Os anos passavam mas havia sempre alguma altura, algum momento, em que aquela lembrança voltava a assolar o meu espírito e a pergunta permanecia no ar, sem resposta. E porque era aquilo assim tão importante?

Acima de tudo eu era uma criança feliz. A melhor e a maior coisa que os meus pais me deram foi amor. Eu não era propriamente uma criança mimada, mas uma criança feliz, muito feliz. Eu tinha tudo o que queria, sendo que o que eu queria era ser livre e era livre porque era amada. Posso dizer que tive uns pais maravilhosos, sem dúvida. Apanhei uma ou outra palmada do meu pai, sim, quando mereci, mas o amor estava lá sempre. E eu sabia disso. Aquele episódio da manga foi o meu primeiro buraco negro. O meu primeiro confronto com os reveses da vida. Mais tarde eu haveria de perceber que ali estava o selo do meu destino. A manga representava tudo o que a vida me daria para em seguida me tirar. Ao longo de toda a minha jornada estabeleci comparações entre aquela história e cenas “tristes” que por mim passaram. Pessoas que vêm e vão, coisas que vêm e vão.   

Mas não foi só isso. Toda a vez que eu pensava naquilo havia uma pergunta que nunca tinha tido uma resposta. Seria porque não havia resposta? Não, claro que não. Nós temos sempre a resposta para tudo ou quase tudo. A resposta estava lá, todo o tempo esteve lá, mas eu não conseguia vê-la. Um dia, tinha eu uns quarenta e tal anos, estava a trabalhar e por qualquer razão que nem me lembro uma vez mais a manga veio à minha memória. Quem levaria a “minha” manga? Só que dessa vez a resposta caiu logo, sem mais demoras. E não foi inútil, não. Aquela resposta era finalmente o fecho de uma história que duraria mais do que muito. Se arrastaria por toda uma vida. O faxina. O faxina, claro, apanhou a manga para ele. Por isso ele disse que no dia seguinte a apanharia para mim. Estava fechado o puzzle. E eu não sabia disso? Claro que sabia. Porque demorei tanto tempo a perceber ou admitir? Assim é na nossa vida. As respostas para tudo estão lá, juntamente com os problemas, com as dificuldades, com as situações. Não vemos porque não queremos. E ao admitir isso, alguma coisa significativa mudou em mim. Eu tinha que admitir que a manga definitivamente não era minha. E ele tinha o direito de a apanhar, tanto quanto eu. Não me disse nada porque não tinha que me dizer. Só isso. Percebi que naquele exato momento o quebra-cabeças estava resolvido e eu não precisava mais de matar a minha cabeça com aquele dilema. Estava tudo bem. A verdade estava finalmente assumida. Até porque ele podia. Ele era meu cúmplice. Antes mesmo que eu tivesse nascido e existido já ele apanhava mangas. Todas as mangas eram muito mais dele do que minhas. Estava resolvido um problema que me acompanhara por toda a vida estupidamente. Ou não, não tão estupidamente. Percebi nesse momento porque o episódio da manga tinha tido uma dimensão tão vasta e relevante e porque fora tão importante encontrar a resposta. A resposta encerrava um assunto que estaria subjacente em toda a estrada da minha vida. O que vem, o que vai, o que eu não quero ver ou a verdade “oculta” e a capacidade para enfrentar a realidade: o amadurecimento ou o desenvolvimento espiritual.

Eu era muito pequena, mas tinha a noção de que aquilo era importante. Um espelho onde toda a minha vida se reflectiria. O faxina? Bem, o faxina é parte integrante desta história. Sem faxina a história não teria sido completa. O faxina representa todas as barreiras que se interpõem na nossa vida para as ultrapassarmos, para nos ajudarem a crescer e sem as quais nunca aprenderíamos a aceitar a vida como ela é, sem fantasias e sem delírios.