Era um dia de semana normal e eu estava no
Marquês de Pombal, onde tinha acabado de estacionar o carro no parque
subterrâneo, para me dirigir à clínica onde fazia acupuntura com regularidade.
Caminhando tranquilamente, de repente
avisto a escassos metros de mim o Presidente Jorge Sampaio, acompanhado de um
jovem, muito provavelmente seu filho, não tenho a certeza. E os dois
conversavam normalmente enquanto caminhavam na via pública, numa zona bem
central da cidade de Lisboa.
Pensei para comigo mesma, Sampaio a pé,
sem escoltas nem protecção, um homem como outro qualquer, na maior discrição,
que quase passava despercebido. O mesmo não aconteceu com outros presidentes,
especialmente com um que vi variadíssimas vezes sempre enfiado num carro cheio
de seguranças e mais outro(s) carro(s) atrás para ainda maior segurança e de
todas as vezes em que isso aconteceu foi uma má experiência, sendo que uma
delas foi mesmo uma péssima experiência. Eu ia também de carro, com o meu filho
no banco de trás, que era pequeno, e quando os carros do “senhor presidente”
passaram, com ele todo cheio das importâncias como era habitual, fizeram tanta
bagunça para passarem nem que fosse à força, que me empurraram
intencionalmente, o que é espantoso, para a berma da estrada, sem dó nem
piedade, como se o meu carro não existisse e as pessoas lá dentro, no caso o
meu filho e eu, fossem um lixo desprezível. Fiquei tão nervosa que quase fui
arrastada pela berma que era muito inclinada e por pouco não capotei. Foi de
tal modo humilhante que tive que esperar para me recompor. Se eu já não gostava
dele, a partir daí, até hoje, não gosto nem quero gostar nem saber.
Quando Jorge Sampaio foi eleito vasculhei
um pouco acerca dele, como faço com frequência com todas as figuras de relevo
que por algum motivo vão estar implicadas na vida da sociedade. Por isso
preciso de ter um mínimo de informação para perceber quem é e o que será. Com
Jorge Sampaio, por ser presidente dos portugueses, mas um pouco mais do que
disso. Desde as primeiras imagens que vi dele percebi que era uma pessoa
especial. Não foi por ele ter morrido, nem pelas homenagens que então lhe foram
prestadas. É pena que estas coisas só sejam sempre feitas e evidenciadas depois
das pessoas partirem. Nunca entendi o porquê, porque é quase sempre assim. Por
mim, não preciso de nada disso porque eu sempre vi nele uma pessoa especial.
Tracei o seu perfil desde o início. E desde o início, como não sou bruxa, não
sabia se ia ser um bom presidente, mas que era um homem íntegro, honesto e
confiável, sim. Tinha a certeza disso. E não foi preciso procurar saber muito à
cerca dele. Bastava-me olhar o seu rosto, a sua expressão e observá-lo
atentamente para o ver além do seu aspecto físico. Porque para além do que era
possível ver, havia uma profundidade que me era muito acessível e que eu
gostaria que pudesse ser visto por todos.
Mas continuando e voltando à Praça do
Marquês de Pombal, única vez em que vi Jorge Sampaio ao vivo, na sua vida
normal como era normal tudo nele, passa um indivíduo do sexo masculino que
aparentava estar na casa dos cinquenta anos, de aspecto rude e abrutalhado, que
se deu ao trabalho de chegar bem próximo dele e apontando-lhe o dedo começou a
insultá-lo, dizendo-lhe apenas que não gostava dele, num tom nada amigável e
fazendo um escarcéu dos diabos sem razão aparente, nada polido, nada a
propósito, dizendo-lhe que se podia ir embora, que não precisava nada dele e
repetia que não gostava e não gostava, como se da pessoa mais desprezível se
tratasse, enquanto gesticulava e esbracejava abusadoramente.
A minha vontade foi correr, “bater” no
homem e chamar-lhe nomes. Como era possível duas pessoas, no caso ele e eu,
verem Sampaio de maneiras tão diferentes!? Neste caso, o oposto. Fiquei tão
indignada com aquela situação que só me apetecia gritar em defesa de Jorge
Sampaio por achar aquela atitude de uma trementa injustiça e completamente fora
de propósito. Porém, a reacção a este incidente não só me acalmou como
enalteceu em mim o que já sentia e pensava acerca do nosso querido Presidente
Jorge Sampaio, que sempre teve a minha humilde mas merecida e especial
admiração.
Com toda a calma e dignidade Jorge Sampaio
atendeu o homem, deixou-o desabafar, por assim dizer, deixou-o dizer todos os
disparates, deu-lhe toda a atenção e apenas lhe dizia “sim… sim… está bem…
certo… o senhor é que sabe, está no seu direito…” e coisas assim deste género,
da maneira mais civilizada possível. Quem estava longe e não ouvia a conversa
deve ter pensado que o homem aproveitou o “encontro” com o Presidente para
reclamar de alguma coisa, só isso. Mas quem estava a pouquíssimos metros como
eu, e ouviu toda a conversa, a reacção do presidente foi sublime. Uma coisa
absolutamente espantosa. Sampaio mostrou-se um ser humano da maior dignidade
possível. De uma compreensão fora do comum. De uma aceitação incrível. Uma
imparcialidade invejável. Enfim… não há palavras que descrevam o altruismo e a
capacidade de encaixar uma situação tão inusitada e imprevisível, de tanta
baixaria como esta, a meu ver.
E depois desta cena que durou alguns
minutos, cada um seguiu o seu caminho, incluindo eu, sem que nada restasse.
Tudo igual a antes. O Presidente continuou sem qualquer alteração, como se não
tivesse havido nada. Grande homem!
Sempre o achei uma pessoa especial, essa é
que é a verdade. E não é por ter sido mais um Presidente da República
Portuguesa. Não tem nada a ver com isso. Fiquei feliz por ele ter sido
presidente, sim, claro, como não?! E nem nunca o conheci pessoalmente como
aconteceu com outros, nomeadamente Ramalho Eanes, com quem trabalhei
directamente por ter sido indicada como pessoa de total confiança para os
assuntos altamente confidenciais enquanto Presidente da RTP, quando eu era
ainda uma jovem de 21 anos apenas, ingénua, inocente, sem experiência da vida,
mas já reconhecida por ser de total confiança. Isso envaidecia-me? Nem por
isso. Reforçava sim a minha noção de responsabilidade. Eu apenas tinha um foco:
ser uma boa profissional porque era para isso que me pagavam e relativamente
bem para a minha idade e para a minha experiência. Eu e Ramalho Eanes
entendíamo-nos bem. Nunca houve nada a reclamar de parte a parte. Eu
ficava enfiada num gabinete relativamente pequeno que só tinha uma janela lá no
alto, onde eu não chegava, e um telefone só para me comunicar com ele. E só
saía dali com a sua autorização. Mas era o meu trabalho e não havia do que
reclamar. Trabalho é trabalho. Falávamos o estritamente necessário. “Sim,
com certeza, claro, naturalmente, como entender”… etc. Não havia conversa fora
deste contexto. Era tudo muito formal como convinha e como também era uma sua
característica, convenhamos. Depois disto Ramalho Eanes foi para a Presidência
da República. Não tenho nada contra. Está tudo certo.
Jorge Sampaio era realmente uma pessoa
especial. A minha alma reconhecia a sua alma. E eu tinha uma verdadeira
admiração por esse homem, sem precisar de motivo especial e muito menos de um
motivo que fosse meu.
Quando adoeceu e vi as primeiras imagens
dele, fiquei impressionada e algo em mim deu sinal de que o seu fim estava
próximo. Fiquei triste mas disse para mim mesma que talvez não, talvez eu
estivesse enganada.
De todos os adjectivos que o caracterizam
há um que ainda é para mim o mais importante de todos, a “simplicidade” que tão
bem o caracterizavam e acho que ainda não mencionei. Mas é, sem sombra de
dúvida, o que mais admiro no ser humano, seja quem for, e tenho como provar.
Meu ex-marido com quem estive casada cerca
de doze anos, com uma relação complicada e que tinha todos os defeitos do mundo,
como eu, apesar de ser um homem muito inteligente e notável no seu trabalho,
era de uma simplicidade a toda a prova, sem dúvida alguma... meu filho
Henrique, nosso filho, que tão novo deu um passo gigantesco na ciência
elevando-o para os mais altos patamares, com defeitos e qualidades, é de uma
simplicidade impressionante…
Dez de Setembro, véspera dos atentados em
Nova York, primeiras notícias do dia, Jorge Sampaio já não estava mais entre
nós. Jorge Sampaio simplesmente partira desta vida. Coincidência das
coincidências, dez de Setembro, nunca vou esquecer, dia do meu aniversário.