domingo, 12 de setembro de 2021

Jorge Sampaio - 92


Era um dia de semana normal e eu estava no Marquês de Pombal, onde tinha acabado de estacionar o carro no parque subterrâneo, para me dirigir à clínica onde fazia acupuntura com regularidade.

Caminhando tranquilamente, de repente avisto a escassos metros de mim o Presidente Jorge Sampaio, acompanhado de um jovem, muito provavelmente seu filho, não tenho a certeza. E os dois conversavam normalmente enquanto caminhavam na via pública, numa zona bem central da cidade de Lisboa.

Pensei para comigo mesma, Sampaio a pé, sem escoltas nem protecção, um homem como outro qualquer, na maior discrição, que quase passava despercebido. O mesmo não aconteceu com outros presidentes, especialmente com um que vi variadíssimas vezes sempre enfiado num carro cheio de seguranças e mais outro(s) carro(s) atrás para ainda maior segurança e de todas as vezes em que isso aconteceu foi uma má experiência, sendo que uma delas foi mesmo uma péssima experiência. Eu ia também de carro, com o meu filho no banco de trás, que era pequeno, e quando os carros do “senhor presidente” passaram, com ele todo cheio das importâncias como era habitual, fizeram tanta bagunça para passarem nem que fosse à força, que me empurraram intencionalmente, o que é espantoso, para a berma da estrada, sem dó nem piedade, como se o meu carro não existisse e as pessoas lá dentro, no caso o meu filho e eu, fossem um lixo desprezível. Fiquei tão nervosa que quase fui arrastada pela berma que era muito inclinada e por pouco não capotei. Foi de tal modo humilhante que tive que esperar para me recompor. Se eu já não gostava dele, a partir daí, até hoje, não gosto nem quero gostar nem saber.

Quando Jorge Sampaio foi eleito vasculhei um pouco acerca dele, como faço com frequência com todas as figuras de relevo que por algum motivo vão estar implicadas na vida da sociedade. Por isso preciso de ter um mínimo de informação para perceber quem é e o que será. Com Jorge Sampaio, por ser presidente dos portugueses, mas um pouco mais do que disso. Desde as primeiras imagens que vi dele percebi que era uma pessoa especial. Não foi por ele ter morrido, nem pelas homenagens que então lhe foram prestadas. É pena que estas coisas só sejam sempre feitas e evidenciadas depois das pessoas partirem. Nunca entendi o porquê, porque é quase sempre assim. Por mim, não preciso de nada disso porque eu sempre vi nele uma pessoa especial. Tracei o seu perfil desde o início. E desde o início, como não sou bruxa, não sabia se ia ser um bom presidente, mas que era um homem íntegro, honesto e confiável, sim. Tinha a certeza disso. E não foi preciso procurar saber muito à cerca dele. Bastava-me olhar o seu rosto, a sua expressão e observá-lo atentamente para o ver além do seu aspecto físico. Porque para além do que era possível ver, havia uma profundidade que me era muito acessível e que eu gostaria que pudesse ser visto por todos.

Mas continuando e voltando à Praça do Marquês de Pombal, única vez em que vi Jorge Sampaio ao vivo, na sua vida normal como era normal tudo nele, passa um indivíduo do sexo masculino que aparentava estar na casa dos cinquenta anos, de aspecto rude e abrutalhado, que se deu ao trabalho de chegar bem próximo dele e apontando-lhe o dedo começou a insultá-lo, dizendo-lhe apenas que não gostava dele, num tom nada amigável e fazendo um escarcéu dos diabos sem razão aparente, nada polido, nada a propósito, dizendo-lhe que se podia ir embora, que não precisava nada dele e repetia que não gostava e não gostava, como se da pessoa mais desprezível se tratasse, enquanto gesticulava e esbracejava abusadoramente.

A minha vontade foi correr, “bater” no homem e chamar-lhe nomes. Como era possível duas pessoas, no caso ele e eu, verem Sampaio de maneiras tão diferentes!? Neste caso, o oposto. Fiquei tão indignada com aquela situação que só me apetecia gritar em defesa de Jorge Sampaio por achar aquela atitude de uma trementa injustiça e completamente fora de propósito. Porém, a reacção a este incidente não só me acalmou como enalteceu em mim o que já sentia e pensava acerca do nosso querido Presidente Jorge Sampaio, que sempre teve a minha humilde mas merecida e especial admiração.

Com toda a calma e dignidade Jorge Sampaio atendeu o homem, deixou-o desabafar, por assim dizer, deixou-o dizer todos os disparates, deu-lhe toda a atenção e apenas lhe dizia “sim… sim… está bem… certo… o senhor é que sabe, está no seu direito…” e coisas assim deste género, da maneira mais civilizada possível. Quem estava longe e não ouvia a conversa deve ter pensado que o homem aproveitou o “encontro” com o Presidente para reclamar de alguma coisa, só isso. Mas quem estava a pouquíssimos metros como eu, e ouviu toda a conversa, a reacção do presidente foi sublime. Uma coisa absolutamente espantosa. Sampaio mostrou-se um ser humano da maior dignidade possível. De uma compreensão fora do comum. De uma aceitação incrível. Uma imparcialidade invejável. Enfim… não há palavras que descrevam o altruismo e a capacidade de encaixar uma situação tão inusitada e imprevisível, de tanta baixaria como esta, a meu ver.

E depois desta cena que durou alguns minutos, cada um seguiu o seu caminho, incluindo eu, sem que nada restasse. Tudo igual a antes. O Presidente continuou sem qualquer alteração, como se não tivesse havido nada. Grande homem!

Sempre o achei uma pessoa especial, essa é que é a verdade. E não é por ter sido mais um Presidente da República Portuguesa. Não tem nada a ver com isso. Fiquei feliz por ele ter sido presidente, sim, claro, como não?! E nem nunca o conheci pessoalmente como aconteceu com outros, nomeadamente Ramalho Eanes, com quem trabalhei directamente por ter sido indicada como pessoa de total confiança para os assuntos altamente confidenciais enquanto Presidente da RTP, quando eu era ainda uma jovem de 21 anos apenas, ingénua, inocente, sem experiência da vida, mas já reconhecida por ser de total confiança. Isso envaidecia-me? Nem por isso. Reforçava sim a minha noção de responsabilidade. Eu apenas tinha um foco: ser uma boa profissional porque era para isso que me pagavam e relativamente bem para a minha idade e para a minha experiência. Eu e Ramalho Eanes entendíamo-nos bem. Nunca houve nada a reclamar de parte a parte. Eu ficava enfiada num gabinete relativamente pequeno que só tinha uma janela lá no alto, onde eu não chegava, e um telefone só para me comunicar com ele. E só saía dali com a sua autorização. Mas era o meu trabalho e não havia do que reclamar. Trabalho é trabalho. Falávamos o estritamente necessário. “Sim, com certeza, claro, naturalmente, como entender”… etc. Não havia conversa fora deste contexto. Era tudo muito formal como convinha e como também era uma sua característica, convenhamos. Depois disto Ramalho Eanes foi para a Presidência da República. Não tenho nada contra. Está tudo certo.

Jorge Sampaio era realmente uma pessoa especial. A minha alma reconhecia a sua alma. E eu tinha uma verdadeira admiração por esse homem, sem precisar de motivo especial e muito menos de um motivo que fosse meu.

Quando adoeceu e vi as primeiras imagens dele, fiquei impressionada e algo em mim deu sinal de que o seu fim estava próximo. Fiquei triste mas disse para mim mesma que talvez não, talvez eu estivesse enganada.

De todos os adjectivos que o caracterizam há um que ainda é para mim o mais importante de todos, a “simplicidade” que tão bem o caracterizavam e acho que ainda não mencionei. Mas é, sem sombra de dúvida, o que mais admiro no ser humano, seja quem for, e tenho como provar.

Meu ex-marido com quem estive casada cerca de doze anos, com uma relação complicada e que tinha todos os defeitos do mundo, como eu, apesar de ser um homem muito inteligente e notável no seu trabalho, era de uma simplicidade a toda a prova, sem dúvida alguma... meu filho Henrique, nosso filho, que tão novo deu um passo gigantesco na ciência elevando-o para os mais altos patamares, com defeitos e qualidades, é de uma simplicidade impressionante…

Dez de Setembro, véspera dos atentados em Nova York, primeiras notícias do dia, Jorge Sampaio já não estava mais entre nós. Jorge Sampaio simplesmente partira desta vida. Coincidência das coincidências, dez de Setembro, nunca vou esquecer, dia do meu aniversário.