segunda-feira, 20 de julho de 2009

O combóio - 6


Eu vinha de casa do meu pai, em Queluz e ia apanhar o comboio para o Rossio. Optei pelo caminho mais curto, que era seguir sempre junto à linha do comboio. Cheguei, atravessei a Estação e dirigi-me para o exterior, porque o comboio partia da plataforma contrária. Não me apetecia nada atravessar a pé as linhas do caminho de ferro, mas era preciso, pois não havia alternativa.

 

Aproximei-me da berma e antes de começar a descer os degraus de acesso às linhas tive uma visão. Um comboio apitava para sinalizar a aproximação de entrada na gare. Via-se o comboio ao fundo e ouvia-se o apito. Eu, que já estava no meio da linha, tropecei, caí e com o comboio a aproximar-se não me conseguia mover. Fiquei paralisada sem me poder levantar. O comboio continuava a apitar, a apitar e a aproximar-se cada vez mais. As pessoas gritavam "cuidado, cuidado, acudam", mas ninguém fazia nada. E o comboio apitava cada vez mais, cada vez mais próximo e eu sem me conseguir libertar, pensava "vou morrer, vou morrer"...

 

Nisto, como que acordei do "delírio" e voltei à realidade. Respirei fundo e preparava-me para descer os degraus quando comecei a ouvir os gritos das pessoas e o comboio a aproximar-se e a apitar insistentemente. Parei, olhei na direcção em que todos os olhares apontavam e exactamente na mesma situação em que eu me tinha “visto” ou imaginado, estava um senhor já de uma certa idade, caído na linha, aflito, sem se poder levantar com o comboio a aproximar-se.

 

A cena que eu tinha visto acontecer comigo, estava a acontecer, só que eu não estava lá. Outra pessoa qualquer tomava o meu desafortunado lugar. Depois, o comboio foi afrouxando, afrouxando e o maquinista conseguiu parar mesmo ao pé do homem, que estava apavorado. Algumas pessoas finalmente chegaram junto dele ajudando-o a levantar-se, limpando-lhe o fato e compondo-o.

 

O homem estava transido de medo e eu aterrada, sem conseguir entender, se é que havia como entender!?


O globo - 5


Eu trabalhava no Ministério das Finanças e era o meu primeiro emprego. Uma sala enorme a perder de vista, com muito espaço de uma pessoa para a outra. As secretárias estavam ao lado uma das outras mas espaçadas em toda a volta da sala, de modo que havia sempre alguém à frente, nunca atrás. Atrás, ficava sempre a parede, mas com bastante espaço. A iluminação geral eram uns globos brancos e redondos, no tecto e cada pessoa tinha um candeeiro de secretária. 

Um dia de manhã cheguei e fiz o ritual do costume. Cumprimentei quem já estava, tirei o casaco e vesti a bata. A maioria das pessoas usava uma bata azul escura para preservar a roupa e eu também usava, embora por outra razão. Era muito jovem e usava mini-saias muito curtas, "hot-pants", tudo o que na altura se usava e para não dar muito nas vistas nem me sujeitar a ser chamada à atenção, defendia-me, vestindo a bata. Posto isto, sentei-me. Comecei a ver os papéis, a organizar o trabalho, enfim, a preparar-me para mais uma manhã, mais um dia. 

Entretanto, chegou a senhora que se sentava na secretária que ficava em frente à minha, do outro lado da sala. Disse olá, bom dia, e todas as outras pessoas puxavam as cadeiras sentando-se, enquanto eu fiquei um pouco a observar o movimento rotineiro a que não se dá atenção todos os dias. Mas naquele dia eu estava predisposta a observar. Olhei a sala em redor, planei um pouco e depois olhei para cima e vi os globos da luz. Pus-me a observar e pela primeira vez reparei no tamanho deles, que eram enormes. Um horror! Também, para salas daquele tamanho, tinha que ser assim e haviam vários, claro. Pus-me a observar bem o tamanho daquelas bisarmas e constatei que havia um mesmo por cima da minha cabeça. Não havia memória de acontecer, mas se aquela coisa caísse, matava-me, sem sombra de dúvida e no espaço de um piscar de olho, imaginei aquilo a cair, a partir-se em mil bocados, todos na minha direcção. Era o fim... 

Assustei-me com aquela visão e num impulso empurrei a cadeira para trás com toda a força, encostei-me à parede, sempre a olhar para cima e zás, pus as mãos na cabeça. Não é que, no mesmo instante, o globo se despenca lá de cima, caindo sobre a minha secretária e desfazendo-se em mil bocados que saltaram pela sala?... Uma coisa de doidos! Toda a gente a gritar, ui, oi, ah... A senhora que ficava sentada na secretária em frente à minha gritava "ela pressentiu porque se afastou antes do globo cair, ela pressentiu"!... 

Aquilo para ela era uma coisa extraordinária, nunca antes vista. Eu estava branca, surda e muda, sem perceber nada. Não sabia o que pensar. Estava em choque, mas estava a salvo. 

Porquê? 

Nunca havia resposta para essa pergunta.


quinta-feira, 16 de julho de 2009

O acidente de moto - 4


Num fim de tarde de Verão, passeava eu na baixa, descendo a rua do Ouro pelo lado esquerdo, olhando as montras, solta e descontraída, vendo tudo e não vendo nada em especial. As ruas estavam completamente cheias naquela altura e muito especialmente àquela hora em que as pessoas saíam dos empregos. Ainda não havia os Centros Comerciais onde hoje em dia todo o mundo aflui, seja para fazer compras, seja por outras razões. E tudo o que aí se faz hoje, fazia-se naquela altura na baixa Lisboeta. Àquela hora a vida acontecia ali. E lá estava eu, depois de sair do Ministério onde trabalhava então. 

Em estilo de passeio eu tinha o costume de andar na berma do lancil. Naquela tarde dei-me conta do ruído de fundo, da poluição sonora, dos carros e autocarros, eléctricos, etc… que faziam um barulho ensurdecedor e cansativo, pensando quão melhor seria se não houvesse aquele ruído desagradável, que não tinha nada que ver com a paisagem de fundo com o rio tão azul, tão relaxante.

De repente, lembrei-me de que a minha mãe costumava dizer-nos que não devíamos andar do lado de fora dos passeios por causa do trânsito. Devíamos andar mais por dentro, não fosse algum carro perder a direcção, entrar pelo passeio e apanhar-nos. Vieram-me também à memória as palavras de uma freira que tinha sido minha catequista e que nos chamava a atenção para sermos humildes, discretos e não dar nas vistas(!). Devíamos ter uma atitude de “recolhimento” e andar junto às paredes, do lado de dentro dos passeios. O contrário era atrair as atenções, era vaidade e a vaidade era "pecado"(!).

Não que eu concordasse com isso, mas tendo juntado essas duas advertências que subitamente tinham regressado à minha memória, sem saber porquê - porque todos os dias eu fazia o percurso idêntico e nunca tinha pensado naquilo -, senti um arrepio e tive um impulso de me desviar. Ao mesmo tempo que o fiz, em fracções de segundo, um flash de arrepiar passou na minha mente. Um barulho estrondoso, assustador, que se foi aproximando com uma rapidez colossal. De seguida, aquele barulho horrível transformava-se num pesadelo: dois indivíduos numa moto que perdeu a direcção, embateu no lancil, saltou a calçada e estatelou-se em grande estilo, exactamente no sítio onde eu estava, tendo sido apanhada por eles. Via três pessoas no chão, ensanguentadas, sendo que uma delas era eu e as pessoas a gritar e uma confusão danada.

Abanei a cabeça com força e disse "não" àquela imagem. Não, não e rapidamente desviei-me ainda mais para dentro. Nesse preciso momento começo a ouvir o mesmo ruído da aceleração duma moto, igualzinho ao que eu tinha ouvido no flash, mas agora era real. E num instante, dois indivíduos jovens estavam ali estatelados à minha frente, exactamente como eu tinha visto em pensamento. A cena repetiu-se, com uma diferença fundamental: eu não estava lá. E começou a confusão das pessoas a gritar e eu parada, encostada à parede, a pensar, meu Deus, que horror, eu era para estar ali!? Chamaram o 115 e eu fui-me embora, tremendo por todos os lados. Não queria ver nem assistir a mais nada.

Foi por pouco. Muito pouco mesmo. Porquê?

Talvez tudo não tenha passado de uma simples coincidência(?!)… Afinal, acidentes de moto acontecem todos os dias!...


Eu tinha um dom - 3


Eu tinha um dom. Um dom muito especial.

Desde muito nova eu ansiava a idade e o rumo certo para ter um filho. Eu queria ser mãe e educar na perfeição uma criança, como se isso fosse possível e se fosse um filho meu, tanto melhor. E sempre que via uma grávida sentia uma grande atracção. Essa atracção começou a tomar proporções maiores e eu ficava quase que hipnotizada. No meio dessa estranha sensação, descobri que conseguia ver perfeitamente se a criança, independentemente do tempo de gestação, era menina ou menino. Essa coisa tornou-se um hábito regular, normal e aprendi a viver com isso.

Era como se a mulher grávida  se tornasse transparente, deixando-me ver o seu interior, ao mesmo tempo que emanava uma energia que eu canalizava e definia sem o menor esforço. Muitas vezes cheguei a dizer, inclusive, com quem a criança se pareceria e outros pormenores subtis, mas relevantes para a futura mãe. Eu tinha a certeza absoluta. Não era uma questão de me pôr a adivinhar nem a pensar. Apenas olhava e um olhar fortuito bastava. Não havia magia nenhuma nem truque algum. Nem poderia haver. Como isso se explicava não sei. Não era um jogo. Havia um elo inexplicável entre mim e o feto, independentemente do tempo de gestação. Não era uma coisa que se pudesse explicar.

Aos 26 anos engravidei. Seria menino ou menina? Havia pouquíssimos médicos que já faziam ecografia e o meu médico era um deles. Aos seis meses de gravidez fiz a ecografia mas a posição da criança não deixava ver o sexo e eu não tinha a menor ideia do que seria. Foi surpresa total.

Com o nascimento do Henrique perdi essa faculdade que nunca mais voltou. 

Ainda hoje não tenho explicação para isso. Mas eu tinha algo que considerava um verdadeiro "dom".


segunda-feira, 6 de julho de 2009

A telepatia - 2


Nas suas diversas vertentes o fator telepático tem-me acompanhado toda a vida. Desde criança que percebo as coisas e sinto a vida com uma intensidade e uma vibração mais forte do que a maioria das pessoas em geral. Mas também é verdade que ao longo do meu caminho encontrei pessoas como eu e foram elas que serviram de referência e de ajuste na minha sintonia com a vida. Elas foram estando aqui e ali, nos locais certos, à hora exata, para restabelecer o meu equilíbrio, do mesmo jeito que eu servi de sinalização para outros quantos, que precisaram do mesmo que eu.

E tudo se harmoniza. O puzzle vai-se construindo com um pouco de cada um de nós. É como se déssemos as mãos e fizéssemos uma roda virtual, sem começo nem fim. 

A telepatia é a linguagem universal que liga tudo e todos.

É onde todos nos encontramos livres do tempo e da matéria.

É onde a liberdade se define indefinida. 

Eu sempre quis ser uma pessoa normal. Isto, porque sempre soube que algo de transcendente havia em mim. Algo um pouco diferente do comum. 

Um estado mais elevado, talvez... uma consciência mais profunda... um contacto de maior afinidade... uma visão mais limpa, uma ligação mais atenta, talvez... 

E o que isso tem de transcendente é que nem todos se situam nesta frequência. 

Mas eu sempre rejeitava e pedia a Deus que me fizesse uma pessoa comum. Eu só queria ser como os outros, que só viam o que todos viam, ou seja, o que estava lá, o que era visível e nada mais. Eu tinha medo das consequências, quaisquer que elas fossem, boas ou más, vinha tudo do mesmo saco e eu tinha medo. Eu não queria. Levei a minha adolescência a debater-me comigo mesma, nesta luta de não aceitação do que eu era. Porque, se às vezes era um benefício, outras vezes era um pesadelo. E eu lá. 

Hoje vejo as coisas de uma maneira diferente. Entre o benefício e o pesadelo ficou o benefício, que considero uma dádiva. Com o tempo a vida ensinou-me que aprendemos com as dificuldades, com as contrariedades, com todo o tipo de barreiras. Elas estão no nosso caminho para nos ensinar a viver. Assim, em vez de achar pesadelos, passei a considerar um aprendizado, por isso se tornou um verdadeiro benefício. Hoje dou graças à vida por ser quem sou e acredito que sou uma pessoa normal.

Nós não temos a noção do poder a que podemos aceder, nem como usá-lo a nosso favor. É isso que me leva a crer que as coisas que se passam comigo não fazem de mim uma pessoa "anormal". Quando começamos a ter consciência, a intuição ganha uma nova dimensão, ampliando-se, fazendo-nos ver a vida numa perspetiva diferente. A consciência confronta-nos com a verdade. O controle emocional passa por ativar a sensação e respeitar a intuição, pois é ela que nos conduz à origem de tudo. Conviver com essa realidade faz-nos mais felizes, na medida em que nos tornamos mais completos. A intuição tem um poder inestimável e hoje eu sei que rejeitar as nossas sensações e abdicar da intuição é retroceder. É dizer "não" à natural evolução do espírito. 

A minha relação com o mundo e com os homens sempre foi uma relação forte e a minha relação com "deus" - o sobrenatural -, muito intensa. Isto é mais do que uma afirmação. É uma intuição. E a intuição é o sensor mais próximo da verdade, que conheço, quando estamos em sintonia cósmica. Não quer isto dizer que tenha sido fácil. Nessa força e nessa intensidade, deparei-me com muitas dificuldades. 

Tive uma educação católica, apostólica romana e se por um lado teve coisas positivas, por outro, atrasou muito a minha evolução espiritual. Na minha infância segui caminhos ditados por outros: a família, naturalmente, mas havia perguntas às quais ninguém respondia e respostas a quem ninguém dava ouvidos. Sempre precisei de mais. Na minha tenra idade de seis, sete anos, não me contentava com o que me queriam ensinar. No meu íntimo, sabia que havia uma outra história, uma outra verdade. Lembro-me de uma vez ter confrontado uma freira, catequista, sobre como seriam as "Bíblias" dos outros mundos, dos outros planetas e ela me ter respondido que só havia este mundo. Claro que a questão da "bíblia" não é relevante, já a resposta dela é assaz pertinente, por isso a minha credibilidade em relação a ela caiu imediatamente por terra. E eu ficava muito triste e até indignada com coisas desta natureza.  

Mais tarde, já na adolescência, saciei a minha sede em livros que encontrei, esquecidos, nas estantes lá de casa. Livros que pertenciam a um tio. Eles estavam lá à disposição de todos, mas ninguém me tinha falado deles e eu nunca tinha visto nada igual. Mas o que vinha deles era bom para mim, para as minhas dúvidas, receios e carências de toda a ordem. À medida que os lia o meu fascínio aumentava. Abriam-se finalmente as janelas, os cortinados e definitivamente, a luz que ninguém me tinha mostrado e, sobretudo, que tinha desaparecido completamente da minha vida, desde os meus dez anos de idade, aquando da morte da minha mãe. Essa luz, que tanta falta me fazia, voltava por si mesma, numa outra dimensão, dando-me notícias de um mundo novo e eu não entendia porque toda a gente ignorava aquilo que estava ali ao alcance de todos. O facto é que ninguém valorizava, porque se perdiam em caminhos já muito velhos, cheios de pó, percorridos pelos antepassados e que não tinham levado ninguém a lado nenhum. Mas tinham um nome e era importante preservar - tradição.  

Hoje eu sei e posso dizer que aqueles livros foram os responsáveis por toda a minha caminhada e representam praticamente a totalidade daquilo que sou, porque são a minha filosofia de vida - YOGA.

O que eu pretendo neste blogue não é contar a história da minha vida. Na vida das pessoas anónimas como eu, em que o decurso da vida é um quotidiano equiparável ao da maioria dos comuns mortais deste mundo, há episódios que se destacam naturalmente, pela força das suas cores ou pela originalidade das suas tonalidades. As Cores profundas do Oriente são uma herança espiritual, que me proporciona uma mágica empatia com a vida, pessoas e acontecimentos. Acontecimentos que, podendo até ter escapado aos outros, para mim foram marcantes. Os meus sentidos apuraram e registaram com mais calor, com mais sensibilidade ou simplesmente, com mais verdade. Uns mais transcendentes do que outros, sem dúvida. 

A telepatia é a transmissão do pensamento. Mas não é só isso. É a manifestação da vontade. Ninguém está só. Formamos um todo e esse todo comunica de forma consciente e inconsciente. Estamos constantemente a trocar informação na forma de comunicação. 

Comunicar é estabelecer laços de vida, é marcar presença, é assinalar a existência. 

Quando a comunicação se faz sem palavras, usando apenas o pensamento, estamos na presença da telepatia e isso é acessível a toda a gente, independentemente de quem é, de onde está e do que quer transmitir. Não existe barreira alguma. Qualquer ser pode comunicar telepaticamente com o mundo inteiro, visível ou não visível, humanos ou não, encarnados ou desencarnados, animais, plantas, qualquer que seja a forma de ADN ou a sua origem e composição genética. 

A telepatia interage no cosmos de forma absoluta. Mundos e submundos estão infinitamente ligados.  

Nada se perde na poeira cósmica.  

No mundo físico em que habitamos podem falhar todas as possibilidades de comunicação: telefones, telemóveis, Internet, etc..., mas quando isso acontecer ainda nos resta a telepatia. 

A telepatia não tem custos, não paga impostos e está sempre disponível. E quanto mais uso se faz dela, mais ela se propaga. Não tem que ser poupada, porque não corre o risco de se gastar. 

No caos, ela terá um papel preponderante e à medida que o homem utilizar a inteligência na sua frequência mais elevada e o espírito for evoluindo, ela assumirá a sua expressão máxima - liberdade.

As coisas às vezes são tão fáceis, tão simples, que temos dificuldade em aceitá-las. Às vezes estão ali mesmo na nossa frente, sem ser preciso nenhum esforço para lá chegar ou para entender. Basta dizer sim e seguir adiante. Nem sequer fomos postos à prova para acreditar e parece que é quando menos as vemos e quando menos as aceitamos. As dúvidas e os receios abafam-nos completamente. 

Faz parte de uma educação decadente, que tudo nesta vida é ganho com esforço. Por isso passamos a vida a lutar para ter e para ser. Mas a vida dá-nos muitos presentes. A própria vida já é um enorme presente. Quando nos daremos conta dessa divina oferta!? 

A perfeição

é o conjunto de todas as imperfeições. 

A perfeição

é aceitar os outros como são.


domingo, 5 de julho de 2009

A cobra capelo - 1


Quando eu estava para nascer aconteceu um facto insólito que, provavelmente, viria a marcar toda a minha existência neste mundo. 

O meu pai, militar de carreira, estava em serviço no antigo Estado da Índia Portuguesa, onde eu nasci. A minha mãe era muito jovem, tinha 20 anos e estava grávida. Passava as manhãs à espera da vinda do marido para o almoço e as tardes à espera do seu regresso a casa, como qualquer outra esposa. 

Numa dessas tardes longas e quentes, banhadas pelas monções dos trópicos, passeava no jardim da casa onde viviam. Era uma casa colonial que tinha uns quantos degraus em pedra a guarnecer a entrada principal. Em volta havia o jardim com árvores. Estava com oito meses de gravidez e a barriga pesava-lhe. Chegou junto a uma palmeira, apoiando-se, para saborear uma brisa ou uma aragem mais fresca. 

Assim, sossegada e tranquila aguardava quando, subitamente, começou a perceber que as folhas se mexiam, adivinhando um rastejar intrigante que se tornou inquietante. Tendo dado conta de que não estava sozinha, virou-se rapidamente na direcção do rastejar, dando de caras com algo aterrador. Uma cobra esperava por ela, mesmo na sua frente. Sozinha, perplexa, ficou sem chão, paralisada, percebendo que não era uma cobra qualquer, mas uma cobra capelo e ela sabia porque já tinha ouvido muitas histórias sobre essas cobras. 

A minha mãe era uma fiel devota da Virgem Maria e nesse instante, com toda a sua devoção, apelou veementemente à Virgem que lhe valesse. Sabia que não tinha saída. Sabia que a vida dela e a vida da criança que carregava estavam perdidas. 

A cobra, que estava a menos de um metro dela, ergueu-se à altura da barriga que protegia com uma das mãos. Olharam-se mutuamente. Fitaram-se uma à outra. A cobra levantou capelo. Pensou que era o fim e que não chegaria a dar à luz. Continuou paralisada mas firme, sufocada, quase sem respirar, apenas entregue à sua fé. Alguns instantes de vazio e eis senão quando, para seu grande espanto, a cobra baixou capelo, tornou ao chão e seguiu caminho por entre a folhagem. Conforme veio, foi. 

Minha mãe recobrou forças do susto e quando o meu pai chegou encontrou-a agitadíssima. Contou tudo, tal qual se tinha passado. Meu pai nem queria acreditar no que ouvia. Um empregado da casa chamou um hindu, encantador de serpentes que, por sua vez, trouxe outros. Durante os dias que se seguiram tudo foi feito para atrair a cobra ao mesmo local, a fim de ser capturada. Mas ela não apareceu. 

Mais tarde, uma mulher hindu que soube da história, procurou a minha mãe e disse-lhe esta coisa que eu considero extraordinária: a cobra não a atacou por causa da gravidez. O instinto "maternal" foi predominante, salvando-a, bem como à criança. O respeito pela "procriação" - fantástico! 

Disse ainda que a criança que trazia no ventre a tinha salvo e mais, que essa criança era abençoada por ter tido um encontro com uma cobra capelo, símbolo de poder e fertilidade e que essa criança seria muito especial, dotada de uma grande espiritualidade e de uma rara capacidade intuitiva. 

Essa criança sou eu.