domingo, 5 de julho de 2009

A cobra capelo - 1


Quando eu estava para nascer aconteceu um facto insólito que, provavelmente, viria a marcar toda a minha existência neste mundo. 

O meu pai, militar de carreira, estava em serviço no antigo Estado da Índia Portuguesa, onde eu nasci. A minha mãe era muito jovem, tinha 20 anos e estava grávida. Passava as manhãs à espera da vinda do marido para o almoço e as tardes à espera do seu regresso a casa, como qualquer outra esposa. 

Numa dessas tardes longas e quentes, banhadas pelas monções dos trópicos, passeava no jardim da casa onde viviam. Era uma casa colonial que tinha uns quantos degraus em pedra a guarnecer a entrada principal. Em volta havia o jardim com árvores. Estava com oito meses de gravidez e a barriga pesava-lhe. Chegou junto a uma palmeira, apoiando-se, para saborear uma brisa ou uma aragem mais fresca. 

Assim, sossegada e tranquila aguardava quando, subitamente, começou a perceber que as folhas se mexiam, adivinhando um rastejar intrigante que se tornou inquietante. Tendo dado conta de que não estava sozinha, virou-se rapidamente na direcção do rastejar, dando de caras com algo aterrador. Uma cobra esperava por ela, mesmo na sua frente. Sozinha, perplexa, ficou sem chão, paralisada, percebendo que não era uma cobra qualquer, mas uma cobra capelo e ela sabia porque já tinha ouvido muitas histórias sobre essas cobras. 

A minha mãe era uma fiel devota da Virgem Maria e nesse instante, com toda a sua devoção, apelou veementemente à Virgem que lhe valesse. Sabia que não tinha saída. Sabia que a vida dela e a vida da criança que carregava estavam perdidas. 

A cobra, que estava a menos de um metro dela, ergueu-se à altura da barriga que protegia com uma das mãos. Olharam-se mutuamente. Fitaram-se uma à outra. A cobra levantou capelo. Pensou que era o fim e que não chegaria a dar à luz. Continuou paralisada mas firme, sufocada, quase sem respirar, apenas entregue à sua fé. Alguns instantes de vazio e eis senão quando, para seu grande espanto, a cobra baixou capelo, tornou ao chão e seguiu caminho por entre a folhagem. Conforme veio, foi. 

Minha mãe recobrou forças do susto e quando o meu pai chegou encontrou-a agitadíssima. Contou tudo, tal qual se tinha passado. Meu pai nem queria acreditar no que ouvia. Um empregado da casa chamou um hindu, encantador de serpentes que, por sua vez, trouxe outros. Durante os dias que se seguiram tudo foi feito para atrair a cobra ao mesmo local, a fim de ser capturada. Mas ela não apareceu. 

Mais tarde, uma mulher hindu que soube da história, procurou a minha mãe e disse-lhe esta coisa que eu considero extraordinária: a cobra não a atacou por causa da gravidez. O instinto "maternal" foi predominante, salvando-a, bem como à criança. O respeito pela "procriação" - fantástico! 

Disse ainda que a criança que trazia no ventre a tinha salvo e mais, que essa criança era abençoada por ter tido um encontro com uma cobra capelo, símbolo de poder e fertilidade e que essa criança seria muito especial, dotada de uma grande espiritualidade e de uma rara capacidade intuitiva. 

Essa criança sou eu.


 

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. - Me chamo Eliane, tenho 17 anos, e fiquei impressionada com a história, fiquei também encantada ao ler que um animal(réptil), "tido"como "irracional" pudesse obedecer uma lei tão simplesmente humana, e deixar se guiar pela lei do amor a vida,. No mais ,desejo sorte e felicidades a autora do blogue, e gostaria de parabenizar pelos textos incriveis e nobres postados aqui,.

    beijiiinhos!

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  3. Minha linda tia! Adorei como contaste a história...
    Parabéns pelo blog...
    Bjos
    Thi

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