quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A blusa azul - 12


Estávamos no começo da Primavera. A toda lua cheia aproximava-se a grande velocidade. As minhas dúvidas, os meus receios, encaminhavam-se devagarinho, resistindo, teimando em desabrochar, como os jardins severos dessa Primavera de esperanças, tão fora de estação e com que eu tanto sonhava.

O mundo das minhas fantasias avolumava-se de tal forma que por vezes necessitava de refúgio, obrigando o espírito a embrenhar-se pelo seio de uma verde e densa floresta, onde árvores frondosas abanavam seus ramos de uma flexibilidade invejável, entregando-se à aragem fresca e subtil, à melodia do silêncio, ao ritmo natural, suave e simples da vida perfumada pelo doce aroma dos frutos maduros e maliciosamente expostos numa evidente tentação, como as amoras silvestres cheias de espinhos, de perigos irresistíveis, prenúncio de mudança ante a expectativa de um Verão que se fazia anunciar quente e que, uma vez saboreado até à última gota, adormeceria estonteado de felicidade, acabando por se perder como que por encanto, esfumado no horizonte, soprado por uma brisa leve e inconsequente, como um eco, através de um túnel feito de um som delicioso, que tanto exaltava o meu sempre sequioso "império de todos os sentidos". 

 

Eu estava em S. Paulo, em plena feira hippy, que os meus sobrinhos e o meu filho, nessa altura ainda crianças, insistiram para que os levasse lá. A ideia não me desagradou. Passeámos, petiscámos, divertimo-nos e a certa altura vi uma vendedora que tinha umas blusas expostas numa corda. Eram todas iguais, de cores diferentes, cores lindas, cores de Verão. Fiquei fascinada e a minha sobrinha, a única menina das crianças que estavam comigo, comentou que eram a minha cara, insistindo para que eu comprasse.

Imaginei-me dentro de uma e achei que ela tinha razão, eram a minha cara. Não resisti. Mas qual seria a cor? Decidi levar uma no tom de azul indiano, que os garotos todos adoraram. Era linda, em algodão, com o decote arredondado e embutido de seda lavrada. Tinha uns cordões finos, também em seda, na parte exterior da meia manga. Era diferente e original. 

Em casa vesti e ainda gostei mais dela. Estava decididamente apaixonada pela blusa azul da feira hippy. Quando chegasse a Lisboa era Inverno, teria que esperar o Verão para me exibir com ela e ainda assim, deveria ser para um evento especial.

Eu tinha conhecido há uns meses atrás, o AS, através de uns amigos comuns e a nossa empatia foi muito forte. Ele era divorciado como eu e tinha um filho exactamente da mesma idade que o meu. Tinha negócios diversificados e por isso viajava muito. O nosso relacionamento durou uns três meses, depois, por conta do trabalho, teve que se afastar e a vida não foi exactamente pelo caminho que queria, mas prometia que voltava, pelo que eu tinha que esperar e acreditar nisso, ainda que não tivesse contacto com ele. Mas acreditei e sonhava com esse dia. Voltando à blusa azul que eu achava que merecia uma ocasião especial, decidi que seria para esse dia, o dia em que ele voltasse.

Já em casa, desfazendo a mala do regresso do Brasil, veio à minha mão a blusa que eu tive o cuidado de lavar, passar e guardar, tendo decidido que ela seria realmente para esse reencontro que um dia haveria de acontecer. Prometi a mim mesma que esperaria o tempo que fosse preciso. Não a usaria por motivo nenhum. Ela ficaria intacta. E gravei na minha mente essa decisão, fazendo o desafio a mim mesma, porque eu queria. 

Passou-se o Inverno e chegou a Primavera, com os dias a ficarem maiores e o sol a aparecer, trazendo mais calor. Chegou finalmente o Verão e o tempo a aquecer a cada dia que passava. Todos os dias eu olhava para dentro do guarda-roupa percorrendo o vestuário e às vezes, quando já estava cansada de tudo o que tinha e me apetecia vestir uma coisa diferente, olhava para a minha linda blusa azul, com uma vontade irresistível de pegar nela e usá-la, mas a promessa que tinha feito a mim mesma impedia-me de o fazer. 

E passou o Verão e o Outono e chegou novamente o Inverno. E tudo continuava na mesma. Acabou o ano, entrou outro ano, veio a Primavera, o Verão, o Outono e de novo o Inverno e a minha bela blusa lá parada. Eu já nem queria olhar para ela. Já estava cansada de vê-la. Quase me tinha arrependido da promessa que tinha feito a mim mesma. Mas ela continuaria lá porque, apesar de tudo, eu continuava a acreditar que ele viria e eu devia essa lealdade a mim mesma. 

O ano estava a acabar e eu pensava, talvez para o ano que vem e se ainda não fosse nesse ano, ficaria para o seguinte e nem me atrevia a pôr em dúvida. 

E chegou outro ano e o Inverno por aí adiante. E veio a Primavera, mais uma Primavera com que eu tanto sonhava, porque o tinha conhecido precisamente na Primavera... e a Primavera passou e chegou o Verão. Os dias lindos de morrer e a minha blusa lá, a morfar. Dava pena. De vez em quando tinha um impulso de pôr a mão nela e arrancá-la da prateleira do armário, mas a minha promessa era mais forte do que eu e não podia trair a mim mesma. Era preciso resistir. Eu tinha que ser fiel ao que tinha programado.

Os dias iam decorrendo com a normalidade do costume, inseridos num Verão espectacular de dias lindos, cheios de sol e calor.

Estávamos em pleno mês de Agosto. Saí do trabalho, fui buscar o Henrique, como de costume, e fomos para casa. No caminho comecei a notar a tarde linda que estava. Como era Agosto, o trânsito fluía sem complicação, pois nesta altura do ano muita gente está fora de Lisboa, em férias e eu estava particularmente calma. A condução tranquila, até dava para olhar para os lados e prestar atenção no horizonte, de cores lindas, azul, rosa e avermelhado, adivinhando mais calor. O ar estava agradável e a luz da tarde, radiosa, com umas tonalidades bem acentuadas. Às vezes o céu fica com umas cores que parece que levou umas quantas pinceladas de artista. Assim era. Tão bom, tão apaziguador. Comentei com o Henrique, que tinha nessa altura nove, dez anos de idade, "olha como está bonita a tarde"!...

À medida que nos aproximávamos de casa, aquela sensação de bem estar e de beleza no ar ampliava-se. Eu sentia o chacra do coração a abrir. Estava bem, estranhamente bem. Olhava-me no espelho retrovisor e sentia-me feliz, mais bonita do que era costume, mais sensual, mais atractiva. Estava bem com todas as sensações que estavam a chegar até mim. Algo estava para acontecer, mas eu não fazia a menor ideia do que poderia ser. 

Chegámos, estacionei o carro e entrámos em casa. Na minha casa, até hoje, há um espelho grande de parede e eu senti-me atraída por ele assim que entrei, o que não era normal. Fiquei um pouco em frente ao espelho a ver-me. Sem querer, mexi nos cabelos, mas perecia que não era eu. Era como se fosse outra pessoa que me estivesse a tocar. Continuei a olhar-me no espelho e parecia que alguém me estava a observar, alguém invisível. Estava tudo muito estranho, mas não me senti incomodada porque eram sensações muito boas. 

Vi o meu cabelo e pensei que estava sem brilho e descuidado, precisava dar um jeito porque no dia seguinte queria estar impecável, com tudo em cima. Andava esquecida de mim, mas tinha que mudar e uma sensação de alegria, de euforia, corria em mim, projectando a minha própria imagem no dia seguinte, com um astral muito acima do habitual. Era absolutamente inexplicável, mas delicioso. 

E o dia seguinte chegou. Acordei, levantei-me, tomei duche e novamente fui atraída para o espelho, que me lembrava as coisas do dia anterior. Eu queria sentir-me sempre assim, com aquela leveza toda. Sequei o cabelo e chamei o Henrique para se despachar. Fui ao roupeiro tirar roupa para vestir e hesitei. Queria uma coisa especial, de acordo com o meu estado de espírito. Era como se eu tivesse um encontro com alguém especial. Não tinha, mas era assim que me sentia. Estava bem, portanto, queria continuar a sentir-me assim com aquele estado de alma. Era uma coisa que vinha do fundo de mim, sem explicação plausível. Tirei as jeans mais recentes e parei. Vou pôr o quê? Mais uma vez olhei para a blusa, mas desta vez arranquei-a do armário. Pensei: "paciência, vou trair a promessa que fiz a mim mesma, mas chegou o dia de usá-la. Não quero saber e não vou esperar nem mais um dia, é hoje ou nunca".  

Dialoguei com a minha consciência que me dizia que estava a quebrar a fidelidade que devia a mim mesma e isso deixava-ma um pouco perturbada, mas a vontade irresistível naquele dia, de estrear a blusa, conseguia ser mais forte do que tudo. Estava na hora. Tudo o resto deixava de ser importante ou tão importante assim. Naquele momento a prioridade era seguir a minha energia, o resto era secundário. Vesti a blusa, vi-me no espelho, por fora estava tudo bem, por dentro estava dividida. Quebrava a minha promessa, mas satisfazia a minha vontade daquele momento. 

Durante todo o dia me questionei. Tinha resistido com tanta firmeza a todas as tentações e naquele dia, subitamente, mais do que uma intuição, tinha sido tomada por uma força maior que eu. Tinha quebrado a promessa que fizera a mim mesma ou com a vida, que é o mesmo. Estava feito. A blusa tinha saído do armário. Acabava ali o impasse e as certezas que eu tinha ou que julgava ter... ou não?!... 

Quase ao fim da tarde o telefone tocou. Atendi, mas apercebi-me de que estava nervosa sem compreender porquê. A telefonista disse que tinha um senhor em linha à procura de uma Luísa que achava que era eu. O nervosismo aumentou e não entendia a causa. Ouvi uma voz de homem: "olá, está lembrada de mim?" ... 

É claro que reconheci imediatamente a voz dele. 

E de repente percebi tudo, fez-se luz, o mistério estava esclarecido. Enquanto o ouvia, percebia exactamente tudo o que se tinha passado. Estava tudo explicado. Estranhamente, a minha programação tinha resultado. 

Espantosamente a minha promessa tinha sido cumprida na perfeição e a fidelidade a mim mesma tinha sido admiravelmente preservada.


segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Estava escrito - 11


Quando a minha sobrinha Tathiana ficou grávida da primeira criança fiquei muito feliz, como não podia deixar de ser. Eu ia ser tia-avó. E mais feliz fiquei quando me apercebi de que seria para Fevereiro. Com sorte, poderia ser no dia um, dia em que a minha irmã Guida e avó estreante faria cinquenta anos de idade. Uma feliz coincidência, porque não?

Passaram algumas semanas e veio a notícia de que seria uma menina. A minha sobrinha querida ia ser mãe de uma menininha. Comecei imediatamente a tentar adivinhar o que viria por aí e desfilaram na minha imaginação roupinhas de menina, vestidinhos, laçarotes, etc… e dentro de mim, intuitivamente, achei que poderia nascer no dia um de Fevereiro. Eu queria muito que ela nascesse no dia dos anos da avó materna, a minha irmã querida.

Um dia, depois de ter tido notícias das duas, da minha sobrinha e da minha sobrinha neta em gestação, fiquei tão contente que me deixei levar pela fantasia e dei por mim em plena comunicação com aquela coisinha pequena que iria aparecer por aí e entrar nas nossas vidas. Dei comigo a falar mentalmente com ela, pedindo-lhe carinhosamente que nascesse para o mundo no dia do aniversário da avó, o que seria um belo presente e um acontecimento muito agradável, sem dúvida.

E ao longo da gestação, conversei com ela longos momentos. Com frequência, concentrava-me e telepaticamente ficávamos ligadas. Inicialmente, era um segredo nosso, um assunto só meu e dela, mas a força daquela sintonia dava-me cada vez mais a certeza de que, mais do que tudo, estava escrito. Ela daria esse presente de aniversário à sua querida avó. Fui tomando consciência disso, interiorizando, e o nosso pacto tornava-se cada vez mais forte, mais convisto.

A data prevista para a menina nascer era onze de Fevereiro, de modo que, para ser no dia um, era apenas uma diferença de menos dez dias, o que poderia perfeitamente ser viável. O meu filho nasceu dez dias antes do previsto. E assim eu continuava a falar com ela, o que me dava um prazer imenso, um bem estar muito louco.

Sentia a energia dela, o respirar daquela vida já tão próxima, tão eminente. Era como se ela estivesse todo o tempo junto de mim. Conectávamo-nos com uma facilidade extrema. Entrava no silêncio e ela estava lá, inteira, com toda a plenitude do seu ser. O mundo inteiro deixava de existir, porque aquela energia se sobrepunha a tudo.

E quebrei o meu silêncio tendo começado por falar abertamente para toda a família que ela nasceria no dia um de Fevereiro, sem medo de errar, porque eu sabia que isso aconteceria. Não era um palpite, era uma certeza. Estava escrito, registado, selado e lacrado. Não podia ser violado de maneira nenhuma.

O tempo foi passando, foi-se aproximando da data e eis que chegou o dia crucial. Acordei de manhã pensando “é hoje”. Durante a manhã falei com a minha irmã, a futura avó, para lhe dar os parabéns pelos seus cinquenta anos e mais uma vez, lembrei-lhe que a neta iria nascer naquele dia. Logo que ela tivesse notícias me dissesse, que eu estava ansiosa. Ela não ligou e fez-me notar, uma vez mais, que ainda não estava no tempo.

Mas o dia foi avançando. Passou-se a tarde e eu sempre atenta aos telefonemas e mails, à espera da notícia. Passou-se a hora de jantar, vi um pouco de televisão e sempre à espera. Devia estar a rebentar. Chegaram as onze horas da noite, a hora de me deitar e dormir, mas nada acontecia. Começava a ficar inquieta. Onze e meia e o sono começava a ser mais forte do que eu.

O dia estava a terminar. É claro que havia a diferença horária mas, ainda assim, as hipóteses começavam a diminuir. Eu não podia estar enganada, era praticamente impossível. Tinha a certeza absoluta de que ela nasceria naquele dia. Deitei-me para dormir e pela última vez conectei-me, pedindo-lhe com todo o carinho e o mais profundo amor, que não se esquecesse do nosso pacto. Estava na hora e seria um presente para a avó.

Seria também uma grande decepção a minha falha ou eu estaria a perder as faculdades, o que teria que aceitar, naturalmente(!). Mas não fazia sentido.

Por volta da uma hora da manhã o telefone tocou. Lembro-me de ter ouvido o toque lá muito no fundo, porque já estava embalada no sono. Quem é que ia ligar àquela hora para o telefone fixo? Eu queria dormir. Ouvi o meu filho a chamar-me baixinho: “mãe, mãe, é do Brasil, a Inajá”. Achei estranho a Inajá ligar-me àquela hora. Nem me lembrei que era a outra tia avó por parte do pai. Além disso, supunha que a primeira pessoa a saber fosse a minha irmã, pela própria filha ou pelo genro, por isso não liguei uma coisa à outra.

Contudo, com grande excitação, acabava de ser informada de que a minha sobrinha querida estava a caminho do hospital. O meu coração disparou. Afinal não me teria enganado! Aconteceu de repente. Estavam a jantar em família e subitamente, as dores de parto surgiram, as águas rebentaram e todo o processo acelerou.

Olhei para o relógio e ainda pus em dúvida se não passaria para o dia seguinte, o que não estava no meu programa, mas um pouco depois recebemos outro telefonema confirmando o nascimento da menina. Eu sabia. Eu sempre soube.

Agora era preciso contactar a avó, minha irmã, de alguma maneira, que estava a dormir com o telemóvel no silêncio. Pedi ao meu filho para tentar chamá-lo pelo skype porque sabia que ela o tinha sempre ligado. Com muito custo, conseguimos, mas ela não acreditava, achava que era brincadeira. Brincadeira de mau gosto, por ser àquela hora e porque queria ter recebido a notícia pelo genro, em primeira mão, o que não aconteceu.

Mas estava a terminar o dia e o nosso pacto tinha que se cumprir e assim, cerca das 22,00 horas, hora de S. Paulo, a nossa pequena dava o pontapé de saída, mudando o rumo dos planos das festas para aquele dia. A minha sobrinha neta nascia no dia 1 de Fevereiro de 2006, impreterivelmente. O nosso pacto secreto, que há muito deixara de ser secreto, porque eu sempre disse que ia nascer naquele dia, cumpria-se extrictamente e rigorosamente e a Tamy nascia, para grande alegria de todos nós.

Estava escrito.