segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A verdade da mentira - 61


Diz-se que a mentira tem perna curta. A verdade é que a mentira não resolve nada e por mais dura que seja a realidade, não há por que mentir. Não faz sentido. Todavia, durante toda a minha vida e já vai longa, por duas vezes, que me lembre, me vi em situações embaraçosas e muito delicadas que, de certa forma, me obrigaram a “mentir”. E digo mentir entre aspas, porque foi exactamente isso. 

A primeira vez, foi com o meu filho, que teria uns dez, onze anos e andava no quinto ano. Estávamos mais ou menos a meio do primeiro período escolar e ele já tinha feito testes, todos com bom aproveitamento. Mas um dia, à saída da escola, percebi que alguma coisa não estava bem. Prestei atenção e sem dúvida alguma, algo não estava bem com o meu querido filhote. Dei-lhe um beijo, ele deu-me outro e enquanto nos dirigíamos para o carro, perguntei-lhe o que é que se passava. Ele também não escondeu. Estava pesado e confiava cem por cento na mãe para o que quer que fosse, por isso, logo começou a dizer que estava triste, muito triste. E uma lágrima escapou-lhe, mostrando o desalento que sentia. Aflita, perguntei-lhe qual a razão daquele sofrimento, ao que me respondeu que tinha recebido um teste de Ciências da Natureza com um suficiente menos e ainda por cima a professora tinha salientado que o teste dele tinha sido o pior da turma. 

Oh! O coitado estava arrasado. Ele não estava habituado de todo, a ter notas negativas e sempre tinha sido dos melhores, para não dizer o melhor. Pela primeira vez na vida tinha um suficiente menos. Estava explicada e entendida a razão de tanta tristeza. Pensando que se tratava de algo mais grave, posso dizer que fiquei aliviada e disse-lhe que não era relevante, porque havia muito tempo para reverter a situação e afinal, nem sequer chegava a ser uma negativa. Mas em nada o reconfortou. Dizia que eu não estava a perceber. É que ele se sentia envergonhado e humilhado perante os colegas, porque tinha tido o pior teste. Estava tão zangado que resolveu logo o problema. Ia imediatamente pôr de lado aquela disciplina, da qual não gostava e não percebia. Estava o assunto arrumado. 

Bom, pensei que não podia ser essa a solução, de jeito nenhum. Pôr de lado uma disciplina, não combinava em nada com ele, mas compreendia perfeitamente o seu sentimento de frustração e rapidamente tinha que pensar em algo para o ajudar. Olhando-o bem nos olhos, esse lugar onde não é possível encobrir seja o que for, errar ou magoar, porque é o centro da alma, na sua mais profunda essência, disse-lhe com toda a firmeza, que íamos resolver o problema, que o ia ajudar de forma que, no próximo teste, ele ia subir a nota. 

Ouviu-me, mas não foi o suficiente para o convencer. Continuava a achar que não ia ser capaz, porque não gostava daquilo, etc. Olhei para ele com a maior serenidade, mas com toda a convicção e olhos nos olhos, perguntei-lhe: “Alguma vez te menti?” Não – respondeu ele. Então, disse-lhe que não se preocupasse porque que íamos resolver o problema. Em casa, ia ver o teste, perceber as dificuldades e ajudá-lo e no próximo teste ele seria o melhor da turma. 

Ao dizer isto, uma voz em mim se sobrepôs, advertindo-me para o que estava a dizer ao meu filho. “Vais ter o melhor teste”… estas palavras ecoavam dentro da minha cabeça. Aquilo era grave, porque se revestia de uma enorme responsabilidade. Mas precisava de lhe dizer aquilo. Não tinha a menor intenção de o enganar, como nunca o enganei. Só precisava de lhe incutir a força necessária para conseguir o pretendido e para isso não podia dizer-lhe pouca coisa. Aquilo tinha que ser verdade, porque era com toda a força da minha alma que aquelas palavras me saíam. De onde elas vinham eu não sabia. Mas o que, provavelmente, seria uma grande mentira, estava dito e eu não tinha como voltar atrás. Não tinha, não podia, não queria. 

O conflito agora era dentro de mim, porque ele já começava a interiorizar e a achar que podia ser possível, o que a pouco e pouco o foi acalmando. E, para se certificar, perguntava ainda, solene e ingenuamente: “a mãe promete?” Não tinha retorno. Dentro de mim lamentava a "mentira", mas era por uma boa causa. Era a promessa de uma mãe que sempre lhe fora fiel, incondicionalmente, e em quem ele acreditava cegamente. Isto era complicado de gerir. O que seria de mim?... Jamais me perdoaria por mentir ao meu filho. Mas estava em jogo o sucesso e a felicidade daquela criança que eu amava com todo o meu ser, portanto, não podia estar a mentir. Por isso continuei firme, sem pestanejar, sem lhe mostrar a mais pequena sombra de dúvida ou de medo e sem dar a mínima atenção àquela voz impertinente, pausadamente, respondi: “Sim, a mãe promete”. 

Eu estava consciente do que lhe estava a dizer. Sim, eu sabia que estava a assumir um compromisso que não poderia falhar em hipótese alguma, caso contrário, correria o risco de deixar de ser a mãe que até então tinha sido. E isto foi tão convincente para ele, que respirou fundo e a tristeza desvaneceu-se. Enfim, por enquanto, o problema estava resolvido e eu não tinha tido alternativa. 

Fomos para o carro e pelo caminho ele já foi explicando os problemas dele. Chegámos a casa e fomos trabalhar na terra, num vaso que tinha na varanda e todos os dias de manhã lá ia ele a correr para inspeccionar os caules a crescer, as folhas, etc. É claro que as coisas na prática tiveram um impacto que na teoria não lhe bastou e então ele se encantou com aquilo que achava que não tinha interesse nenhum. 

Tudo voltou à normalidade, mas não sem que eu ficasse bastante inquieta pela “promessa” que lhe tinha feito, claro, porque não podia esquecer que, deliberadamente, tinha ultrapassado os meus limites, por amor, sim, mas tinha feito essa coisa aparentemente horrível. Contudo, acreditava que no segundo teste ele melhorasse e à parte o facto de não ser o melhor, havia de lhe dar uma boa explicação, fazendo-o entender que na vida não podemos estar sempre do lado dos campeões e que muitas vezes, temos que aceitar perder. Perder faz parte da batalha da vida. Faz parte da nossa aprendizagem, da nossa condição como seres humanos que somos. 

O importante é que ele nunca mais falou em pôr de parte a dita disciplina e um dia, à saída da escola, lá vinha ele, o lindo filhote que Deus me deu. Descontraído, com um ar leve, algo misterioso, envolvido numa excelente aura. Ah, que bem que o meu coração se sentiu ao vê-lo assim. Chegou junto de mim, dei-lhe um beijo e ele retribuiu, para logo em seguida começar a falar: “A mãe sabe… o teste de Ciências que foi o pior da turma?” - Oh, Deus! – pensei – já me tinha esquecido daquela cena e o meu coração imediatamente se apertou. Sim… respondi. “Hoje – continuou ele – a professora entregou o segundo teste – acho que até parei de respirar -  e eu já estava a ficar muito aflito, até porque eram só negativas, mas finalmente a professora disse o meu nome e disse ainda que o meu teste estava todo certo, foi a nota máxima – eu nem falava – e mostrou como exemplo, porque os outros todos baixaram a nota e eu levantei. Ainda por cima o meu teste anterior tinha sido o pior. A mãe disse que eu ia ter o melhor teste – e olhando para mim, concluíu - A mãe prometeu… a mãe cumpriu!”. Eu prometi? Eu cumpri?! - pensei e respondi-lhe “não… tu conseguiste”. 

As palavras dele perdiam-se no ar e eu estava como que anestesiada. Um peso enorme saía de cima de mim. Estava completamente de parte a ideia de descartar aquela disciplina. Pelo contrário, tinha agarrado a coisa a sério. E eu tinha prometido… como é que eu tinha feito uma coisa daquelas?! Afinal eu não tinha “mentido”? Eu não podia imaginar, mas eu realmente não tinha mentido!... Era uma coisa absolutamente espantosa, mas acima de tudo, eu continuava fiel à minha verdade, viesse ela de onde viesse.  

A outra mentira. 

A Catarina era minha colega e minha amiga. Isto, até ao dia em que nos tornámos inimigas de morte, por uma situação muito delicada, que não dava para continuarmos amigas. A mulher do chefe dela começou a receber chamadas telefónicas de alguém que não se identificava, dizendo que ela, Catarina, andava com o marido dela, o que era um facto. Toda a gente sabia, porque nem sequer o escondiam. A senhora, muito perturbada com a situação, começou a pedir responsabilidades ao marido que, por sua vez, começou a chatear todas as mulheres à sua volta na empresa querendo, a toda a força, encontrar a responsável pelos telefonemas anónimos. Mas toda a gente negava a acusação, até ao dia em que sobrou para mim.  

Eu estava sozinha, o meu chefe ainda não tinha chegado e ele entrou, começou a dizer coisas sem sentido, ameaçando-me, esquecendo-se completamente da ética, descartando todos os princípios morais e profissionais, ultrapassando todos os limites do razoável. E eu fiquei mal. Fiquei tão assustada que até fiquei de baixa médica, com o medo que ele me incutiu. Foi horrível. E tudo aquilo por causa da Catarina! Não, não dava para continuarmos amigas. Devo dizer que, mais tarde, muito mais tarde, ele deve ter percebido a injustiça que cometeu e as coisas foram ao lugar porque me pediu desculpas. Mas isso foi muito mais tarde. Então, a Catarina, para mim, deixou de existir. 

Um dia, sem mais nem menos, puseram-na na minha sala, mesmo ao pé de mim. Uma chatice. Bem, o trabalho de ambas não nos fazia colidir, por isso, nem profissionalmente tínhamos que falar. Era zero. Ela estava-me atravessada e também não parecia nada incomodada com isso. 

Mas então chegou um dia em que as coisas mudaram. Eu tive que me levantar para ir buscar um dossier à estante que ficava à direita dela e baixei-me para o apanhar. Entretanto, ela, que estava ao telefone, falando quase nada e muito baixinho, perdeu completamente a voz e desligou o telefone de uma maneira estranha. Levantei-me para ir para o meu lugar, quando a vejo com a cabeça baixa e a cara escondida entre as mãos. Percebi que alguma coisa não estava bem, mas não fazia a mínima intenção de ligar importância quando, de repente, ela desata a soluçar, num enorme sufoco, com uma jorrada de lágrimas sem cessar. 

E aí, num impulso, sem ter tempo de pensar no que quer que fosse, inclinei-me para ela, segurei-lhe as mãos que estavam frias e trémulas, perguntando-lhe o que se estava a passar. Ela continuou naquele choro sufocado, quase sem respirar e percebi que a coisa era séria, muito séria, embora não tivesse a mínima ideia do que fosse. Esqueci-me completamente que estávamos de relações cortadas e de toda aquela cena e segurei-a nas duas mãos ainda com mais força. Voltei a perguntar o que tinha acontecido e levantando um pouco o rosto para mim, disse: “É a minha Lisa”. 

Lisa, era a filha. Ela só tinha aquela filha que, na altura, tinha quinze anos. Perguntei-lhe o que é que tinha acontecido com a Lisa e ela respondeu: “Está doente, muito doente”. Interrompi logo perguntando, doente como, o que tem ela? Continuou dizendo: “Tem um problema nos ovários e todas as chances de ser maligno” e desata novamente a chorar, a bom chorar, completamente destroçada. E enquanto eu ouvia aquilo, sem querer acreditar, porque eu conhecia muito bem a Lisa, ela só se lamentava “Ai a minha Lisa… ai a minha Lisa… eu morro, se ela morrer eu morro também, não me interessa mais viver”. 

Agarrei-a com toda a força nos braços, dizendo-lhe: “Olha para mim”, enquanto ela tentava desviar, mas continuei com toda a força que tinha dentro de mim: “Catarina, olha bem para mim, olha nos meus olhos e escuta o que te vou dizer”- e só continuei a falar quando ela finalmente olhou fixamente nos meus olhos. “Não vai acontecer nada com a tua filha. Não vai acontecer nada à Lisa”. E disse isto com quanta força e convicção me moviam naquele momento, olhos nos olhos, sem lhe deixar a mais pequena sombra de dúvida, como se eu fosse dona da situação, o que fez com que aos poucos ela se fosse acalmando, silenciosa e tranquila. E repeti, marcando cada palavra que dizia: “Não, vai, acontecer, nada, à Lisa. Acredita. Acredita mesmo. Está tudo bem. Ouviste?” 

E mais uma vez eu ouvia aquela voz dizendo, "és doida, quem és tu para saberes o que vai acontecer? Tu não és deus!" Eu sabia, sabia disso tudo, mas era mais forte do que eu. Era a única coisa que conseguia dizer-lhe naquele momento e vinha algures do meu fundo, não sei de onde, mas vinha com uma força tremenda, que nada me poderia fazer parar. Era preciso que ela acreditasse com todas as forças do seu ser, tanto quanto eu parecia acreditar, embora soubesse que provavelmente aquilo também pudesse ser a maior mentira da minha vida. E mais uma vez, eu não tinha alternativa. O desassossego dela exigia aquela minha atitude, estranha, sim, que nem eu entendia, mas era daquela maneira que as coisas estavam a acontecer, como se eu não tivesse mais controle sobre mim mesma. Enxugou a cara, foi à casa de banho, voltou e a partir daí recomeçamos a falar, esquecendo o passado.

Tempos depois, um dia qualquer, ela estava muito feliz e veio ter comigo, com uma calma e um sorriso muito especial. Os olhos brilhavam, mas eram os olhos da alma. Havia ali uma felicidade transcendente. Não era uma felicidade comum. Chegou perto de mim e disse-me: “Tu estavas certa, tu tinhas razão”. E eu que já nem me lembrava daquela cena, não reagi, porque não percebia a que se referia ela. E continuava:“A minha Lisa está bem. Vai fazer um tratamento e fica bem”. Foi então que me situei e percebi a que ela se estava a referir. Confesso que fiquei aparvalhada, como se não fosse eu que lhe tivesse dito aquelas coisas. E pensei “que fiz eu, meu Deus?”… Mas ela sorria para mim com aquele brilho imaculado e continuava: “eu vi nos teus olhos a força com que me disseste que a minha Lisa ia ficar bem. Eu vi e acreditei. Era impossível estares a mentir” - Oh meu Deus! E como é que sabia eu disso?  

Pensei para comigo mesma: é a segunda vez na minha vida que minto, dizendo a verdade que desconheço. É a segunda vez que Deus fala por mim!...