domingo, 15 de fevereiro de 2015

O casamento - 56


Tinha chegado a hora da boda e todos estavam sentados à mesa enquanto iam sendo servidos. Havia uma sala com muitas mesas, para os convidados e outra com uma única mesa, muito grande, para os noivos, pais, padrinhos e os mais idosos de ambas as famílias. E tudo estava a correr na perfeição, quando um acontecimento inédito falou mais alto, elevando o nível vibratório da energia daquele evento a uma frequência ímpar.

 

A Mariana tinha tocado um tango ao som do seu violoncelo, acompanhada de uma amiguinha que tocou violino. Foi um momento lindo e relaxante. O dia estava solarengo, com uma temperatura generosamente amena, podendo os convidados estar lá dentro ou ao ar livre, nos jardins do hotel. Alguns sentavam-se por ali, na esplanada, nos espaços verdes, à volta da piscina, enquanto as máquinas fotográficas disparavam constantemente para registar e filmar um momento especial. As crianças estavam eufóricas e a Sofia sempre convencida de que o casamento era dela, tanto que, na hora de entregar as alianças e as flores, era visível o seu empenho, compenetradíssima da importância da sua pessoa naquela festa que, para ela, era só dela e dos pais. Desde que começara a ouvir falar do casamento e a perceber que teria a sua participação, desde a compra do vestido e dos sapatinhos, entendeu que não era um acontecimento qualquer. Na sua curta existência nunca tinha sido tão cuidadosamente preparada para tudo o que devia fazer. E estava certíssima porque, efectivamente, ela seria a peça chave desta história.

 

O convívio decorria sensacionalmente bem porque, de modo muito agradável e afável, todos conversavam uns com os outros e todos se davam a conhecer uns aos outros de uma forma muito natural, posto que, nem todos se conheciam. A Sofia ficou a conhecer mais primos para juntar aos que já tinha e todos ficaram a conhecer os que ainda não conheciam porque, na verdade, não havia uma única pessoa que conhecesse toda a gente. Assim, as conversas despontavam naturalmente, tornando o ambiente cada vez mais íntimo, familiar e acolhedor.

 

Em plena marginal, os carros passavam e enquanto o jovem casal posava para as fotos, as pessoas que iam nos carros abriam as janelas para acenar e desejar aos noivos votos de muitas felicidades, a que eles retribuíam com um gesto de agradecimento.

 

As crianças de várias idades, todas vestidinhas de branco com laços cor-de-rosa, brincavam com as flores, abraçavam-se, faziam rodas enquanto cantavam, corriam e sorriam de felicidade, parecendo anjos. A alegria estava no ar, estampada no rosto de todos e não era uma falsa alegria. Percebia-se que era uma alegria espontânea, que vinha de dentro, que emanava luz. É que, não era só de um casamento que esta ocasião se tratava. Era um grande encontro. Um encontro muito especial. Um encontro de duas grandes famílas, de almas e espíritos, que tornava uma simples união, num verdadeiro e grande encontro de corações verdadeiramente felizes e que, pelo menos naquele dia, naquele momento, falavam a mesma linguagem, partilhavam o mesmo sentimento, compartilhavam uma mesma vida numa única experiência, que a seu tempo iriam presenciar e da qual todos fariam parte integrante.

 

E ainda há quem não acredite no destino... quem ache que isto é tudo obra do acaso! Realmente, por vezes, a vida mais se parece com peças de um puzzle que andam todas por aí a passear, ao Deus dará, desnorteadas, sem qualquer sentido. Mas quando menos esperamos, parece que alguém se lembra de agrupá-las de modo a encaixarem no sítio certo, para então, começarem a fazer sentido, caso contrário, continuarão sozinhas, cada uma por si só, sem fazerem parte de nada, fora de contesto, desligadas do todo.

 

O cosmos cuida de tudo. O universo é a mão grande que se encarrega de dar forma, estrutura e sentido à vida. O cosmos é a "ordem" divina, o cérebro da inteligência máxima que tudo rege. E aquele casamento que, aparentemente, começava ali, já estava traçado lá muito atrás, o que equivale a dizer que estava escrito nos registos akáshicos, como tudo, aliás.

 

Enquanto se saboreava uma agradável ementa, corria uma conversa aqui, uma conversa ali, uma troca de ideias aqui, outra ali, um cumprimento, uma graça, uma piada de bom tom, enfim… foi então que um cruzamento de perguntas e respostas, recuando quarenta anos, relembrou tempos de tropa em Angola. Meu ex-marido, pai do noivo, comentou qualquer coisa relativamente a essa altura da sua vida. No mesmo instante, o tio da noiva, irmão do falecido pai da minha norinha querida, comentou que também tinha estado em Angola na mesma época. A conversa continuou acertando o paradeiro de ambos no mesmo tempo, sítio, lugar, companhia, por aí fora e só por isso, já estavam os dois animadíssimos, quando começaram a descrever um ao outro exactamente o que faziam e mais precisamente quem era quem. Foi aí que se retrataram. Um perguntou ao outro se ele era fulano tal, ao que o outro respondeu com a mesma pergunta, se ele era fulano assim, assim. Em quarenta anos uma pessoa muda completamente. Quarenta anos podem tornar as pessoas irreconhecíveis.

 

Para quem foi testemunha deste encontro, o rosto de ambos transfigurara-se por completo. O sangue tinha subido num pico de adrenalina inconcebível. Os olhos dos dois adquiriram subitamente um brilho incomparável, parecendo saltarem das órbitas, ao mesmo tempo que se levantavam em simultâneo, de lados opostos da mesa, um em direcção ao outro, com uma sofreguidão e tanto, de braços estendidos na direcção um do outro, até que chegaram um ao pé do outro e se abraçaram com uma efusão e um entusiasmo a que ninguém conseguiria ficar indiferente. Dois irmãos perdidos no tempo.

 

Por um longo momento o silêncio era aquele momento único que não era só de dois amigos, era de pais casando os filhos; era de um passado que já estava cruzado, embora sem consciência disso; era do presente que tudo trazia à tona e acabava de selar aquele momento, que era um registo ímpar nas suas vidas e nas vidas de todos que ali estavam. E enquanto eu pensava que a vida é uma coisa maravilhosa, cheia de surpresas inesperadas, a tia Ana Maria - a matriarca da família da minha querida norinha - dizia baixinho, que aquilo era obra do Armando, o falecido pai da noiva - ali representado pelo irmão -, lá em cima, unindo as duas famílias. Ouvi e pensei - as duas famílias já estavam unidas há quarenta anos atrás. Não o sabiam, mas já estavam. O não saber é apenas um pormenor que faz parte da condição humana, por isso, unidas já estavam. Mas quem poderia saber?  

 

Na verdade, ninguém poderia dizer que eles já eram uma só família porque, uma criança faria com que, só quarenta anos depois, um, fosse seu avô e outro, tio avô.

 

O tempo, onde tudo acontece, tem três faces: passado, presente e futuro. Mas, verdadeiramente, ele é um só.