Tinha chegado a hora da boda e todos estavam sentados à mesa enquanto iam
sendo servidos. Havia uma sala com muitas mesas, para os convidados e outra com
uma única mesa, muito grande, para os noivos, pais, padrinhos e os mais idosos
de ambas as famílias. E tudo estava a correr na perfeição, quando um
acontecimento inédito falou mais alto, elevando o nível vibratório da energia
daquele evento a uma frequência ímpar.
A Mariana tinha tocado um tango ao som do seu violoncelo, acompanhada de
uma amiguinha que tocou violino. Foi um momento lindo e relaxante. O dia estava
solarengo, com uma temperatura generosamente amena, podendo os convidados estar
lá dentro ou ao ar livre, nos jardins do hotel. Alguns sentavam-se por ali, na
esplanada, nos espaços verdes, à volta da piscina, enquanto as máquinas
fotográficas disparavam constantemente para registar e filmar um momento
especial. As crianças estavam eufóricas e a Sofia sempre convencida de que o
casamento era dela, tanto que, na hora de entregar as alianças e as flores, era
visível o seu empenho, compenetradíssima da importância da sua pessoa naquela
festa que, para ela, era só dela e dos pais. Desde que começara a ouvir falar
do casamento e a perceber que teria a sua participação, desde a compra do
vestido e dos sapatinhos, entendeu que não era um acontecimento qualquer. Na
sua curta existência nunca tinha sido tão cuidadosamente preparada para tudo o
que devia fazer. E estava certíssima porque, efectivamente, ela seria a peça
chave desta história.
O convívio decorria sensacionalmente bem porque, de modo muito agradável e
afável, todos conversavam uns com os outros e todos se davam a conhecer uns aos
outros de uma forma muito natural, posto que, nem todos se conheciam. A Sofia
ficou a conhecer mais primos para juntar aos que já tinha e todos ficaram a
conhecer os que ainda não conheciam porque, na verdade, não havia uma única
pessoa que conhecesse toda a gente. Assim, as conversas despontavam
naturalmente, tornando o ambiente cada vez mais íntimo, familiar e acolhedor.
Em plena marginal, os carros passavam e enquanto o jovem casal posava para
as fotos, as pessoas que iam nos carros abriam as janelas para acenar e desejar
aos noivos votos de muitas felicidades, a que eles retribuíam com um gesto de
agradecimento.
As crianças de várias idades, todas vestidinhas de branco com laços
cor-de-rosa, brincavam com as flores, abraçavam-se, faziam rodas enquanto
cantavam, corriam e sorriam de felicidade, parecendo anjos. A alegria estava no
ar, estampada no rosto de todos e não era uma falsa alegria. Percebia-se que
era uma alegria espontânea, que vinha de dentro, que emanava luz. É que, não
era só de um casamento que esta ocasião se tratava. Era um grande encontro. Um
encontro muito especial. Um encontro de duas grandes famílas, de almas e
espíritos, que tornava uma simples união, num verdadeiro e grande encontro de
corações verdadeiramente felizes e que, pelo menos naquele dia, naquele
momento, falavam a mesma linguagem, partilhavam o mesmo sentimento,
compartilhavam uma mesma vida numa única experiência, que a seu tempo iriam
presenciar e da qual todos fariam parte integrante.
E ainda há quem não acredite no destino... quem ache que isto é tudo obra
do acaso! Realmente, por vezes, a vida mais se parece com peças de um puzzle
que andam todas por aí a passear, ao Deus dará, desnorteadas, sem qualquer
sentido. Mas quando menos esperamos, parece que alguém se lembra de agrupá-las
de modo a encaixarem no sítio certo, para então, começarem a fazer sentido,
caso contrário, continuarão sozinhas, cada uma por si só, sem fazerem parte de
nada, fora de contesto, desligadas do todo.
O cosmos cuida de tudo. O universo é a mão grande que se encarrega de dar
forma, estrutura e sentido à vida. O cosmos é a "ordem" divina, o
cérebro da inteligência máxima que tudo rege. E aquele casamento que,
aparentemente, começava ali, já estava traçado lá muito atrás, o que equivale a
dizer que estava escrito nos registos akáshicos, como tudo, aliás.
Enquanto se saboreava uma agradável ementa, corria uma conversa aqui, uma
conversa ali, uma troca de ideias aqui, outra ali, um cumprimento, uma graça,
uma piada de bom tom, enfim… foi então que um cruzamento de perguntas e
respostas, recuando quarenta anos, relembrou tempos de tropa em Angola. Meu
ex-marido, pai do noivo, comentou qualquer coisa relativamente a essa altura da
sua vida. No mesmo instante, o tio da noiva, irmão do falecido pai da minha
norinha querida, comentou que também tinha estado em Angola na mesma época. A
conversa continuou acertando o paradeiro de ambos no mesmo tempo, sítio, lugar,
companhia, por aí fora e só por isso, já estavam os dois animadíssimos, quando
começaram a descrever um ao outro exactamente o que faziam e mais precisamente
quem era quem. Foi aí que se retrataram. Um perguntou ao outro se ele era
fulano tal, ao que o outro respondeu com a mesma pergunta, se ele era fulano
assim, assim. Em quarenta anos uma pessoa muda completamente. Quarenta anos
podem tornar as pessoas irreconhecíveis.
Para quem foi testemunha deste encontro, o rosto de ambos transfigurara-se
por completo. O sangue tinha subido num pico de adrenalina inconcebível. Os
olhos dos dois adquiriram subitamente um brilho incomparável, parecendo
saltarem das órbitas, ao mesmo tempo que se levantavam em simultâneo, de lados
opostos da mesa, um em direcção ao outro, com uma sofreguidão e tanto, de
braços estendidos na direcção um do outro, até que chegaram um ao pé do outro e
se abraçaram com uma efusão e um entusiasmo a que ninguém conseguiria ficar
indiferente. Dois irmãos perdidos no tempo.
Por um longo momento o silêncio era aquele momento único que não era só de
dois amigos, era de pais casando os filhos; era de um passado que já estava
cruzado, embora sem consciência disso; era do presente que tudo trazia à tona e
acabava de selar aquele momento, que era um registo ímpar nas suas vidas e nas
vidas de todos que ali estavam. E enquanto eu pensava que a vida é uma coisa
maravilhosa, cheia de surpresas inesperadas, a tia Ana Maria - a matriarca da
família da minha querida norinha - dizia baixinho, que aquilo era obra do
Armando, o falecido pai da noiva - ali representado pelo irmão -, lá em cima,
unindo as duas famílias. Ouvi e pensei - as duas famílias já estavam unidas há
quarenta anos atrás. Não o sabiam, mas já estavam. O não saber é apenas um
pormenor que faz parte da condição humana, por isso, unidas já estavam. Mas
quem poderia saber?
Na verdade, ninguém poderia dizer que eles já eram uma só família porque,
uma criança faria com que, só quarenta anos depois, um, fosse seu avô e outro,
tio avô.
O tempo, onde tudo acontece, tem três faces: passado, presente e futuro.
Mas, verdadeiramente, ele é um só.